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A Lei 9612/98

(das rádios comunitárias)

24/06/1998 às 00:00
Leia nesta página:

"Só pode existir paz quando os povos se rejam por leis que amparam a todos por igual e quando se respeitam os direitos que resguardam da usurpação e da pilhagem os bens privados".
(González Pecotche)



A LEI 9.612/98 E O REGULAMENTO

Os nossos legisladores elaboraram e aprovaram a Lei 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, publicada no DOU do dia 20/2/98, que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária no País, e, no seu artigo 25, determinaram que o Poder Concedente baixaria atos complementares necessários à regulamentação do referido Serviço, no prazo de cento e vinte dias, contados da publicação dela.

No dia 3 de junho último, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, assinou o Decreto 2.615 que aprova o regulamento do dito Serviço, publicado no DOU do dia 4 de junho de 1998.



LEI, ORA A LEI...

Quem se interessar pelo assunto e fizer análise profunda nos vinte e sete artigos que compõem a Lei 9.612/98, cujo escopo é instituir o serviço de radiodifusão comunitária, e nos quarenta e três que o regulamentam, ao final, chegará à conclusão de que tais documentos são provas - e vergonhosas - do que é legislar com protecionismo interesseiro e descarado em prol de uma plêiade de privilegiados, que possui raízes no Congresso, em detrimento de outras pessoas que, porventura, se interessarem por rádio não-comercial. Ou seja, comunitária.

Não é objetivo desse artigo analisar um a um os artigos da Lei e do Regulamento. Vamos provar o que afirmamos acima, pinçando alguns e demonstrando a transparente inconstitucionalidade e gritantes absurdos deles.

Além de serem demonstrações cabais do desapego a artigos da Constituição Federal, nossa Lei Magna, que, aliás, eles próprios aprovaram, são também amostras da desfaçatez de muitos de nossos representantes e do poderio de força de lobistas, que, como dissemos, defendem seus pretensos direitos e, indiretamente, os de muitos deputados e senadores, que, na verdade, são os verdadeiros proprietários de muitas rádios e televisões comerciais.

Infelizmente, neste País, e neste caso, prevaleceu o "fisiologismo" famigerado. Diante da realidade irrefutável, qual seja, a impossibilidade de se impedir a criação do serviço de radiodifusão comunitária, até mesmo para imagem internacional, o que se fez - a exemplo de republiquetas dominadas por algum Senhor todo poderoso, ditador do que seja legal ou não - foi elaborar Lei e Regulamento; aquela, repetimos, com flagrantes inconstitucionalidades (que necessitam ser combatidas), com absurdos gritantes, e este, fazendo insculpir restrições e mais restrições a rádios comunitárias, numa proteção vergonhosa, porque ao arrepio da lei, às chamadas " regularmente instaladas".

Como dizem, perguntar não ofende: se o Ministério das Comunicações autorizará legalmente o funcionamento das comunitárias, não seriam elas também "regularmente instaladas" ? Ou se trata de discriminação gratuita?



UM DOS ABSURDOS

Contudo, para comprovar o que afirmamos, comecemos pelo artigo 5º da referida Lei, que projeta absurdos:

Art. 5º - O Poder Concedente designará, em nível nacional, para utilização do Serviço de Radiodifusão Comunitária, um único e específico canal na faixa de freqüência do serviço de radiodifusão sonoro em freqüência modulada.

Parágrafo único - Em caso de manifesta impossibilidade técnica quanto ao uso desse canal em determinada região, será indicado, em substituição, canal alternativo, para utilização exclusiva nessa região.

Pois bem, o Regulamento, no seu artigo 4º, repete a dicção do artigo 5º da Lei, porém, no seu parágrafo único, restringe ainda mais: Art. 4º - Parágrafo único - Em caso de manifesta impossibilidade técnica quanto ao uso desse canal em determinada região, a ANATEL indicará, em substituição, canal alternativo, para utilização exclusiva naquela região, desde que haja algum que atenda aos critérios de proteção dos canais previstos nos Planos Básicos de Distribuição de Canais de Radiodifusão Sonora em Freqüência Modulada, de televisão em VHF e de Retransmissão de televisão em VHF.

Ora, de acordo com a Lei, cada bairro ou vila só pode ter uma rádio comunitária e será instituída freqüência única. Isso significa que todas as emissoras operarão na mesma freqüência dentro da faixa do dial. O Regulamento, no seu artigo 4º, determina que a ANATEL designará um único e específico canal na faixa de freqüências do Serviço de Radiodifusão Sonora em FM.

Imaginem o que criaram - uma verdadeira complicação técnica. Criaram a salada sonora ! Como é possível limitar o som, por exemplo, numa cidade de grande ou de médio porte, se houver duas rádios em bairros fronteiriços? Ora, na mesma freqüência, sem dúvida, acarretará que, num determinado local, as ondas sonoras chocar-se-ão e as pessoas desse lugar ouvirão as duas de uma vez só!!! A não ser que a tecnologia brasileira já tenha criado a onda inteligente, que respeita divisão política ou geográfica entre bairros ou vilas!

Ora, caríssimo Presidente Fernando Henrique Cardoso, de tantas lutas inglórias no passado, como pôde sancionar este absurdo técnico? Mesmo que a rádio tenha 25 watts, em São Paulo, por exemplo, se a antena for colocada em cima de um morro, o som, induvidosamente, atingirá outras regiões e se misturará com o som de outras rádios comunitárias. Deus meu, para dificultar para quem deseje uma rádio comunitária, dificultaram tecnicamente e aprovaram um serviço de quinta categoria!!! Que confusão absurda!

Aí, para sanar este problema, juridicamente, vejam o que fizeram:

Lei 9.612/98 Art. 22- As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária operarão sem direito a proteção contra eventuais interferências causadas por emissoras de quaisquer Serviços de Telecomunicações e Radiodifusão regularmente instaladas, condições estas que constarão do seu certificado de licença de funcionamento.

Art. 23 - Estando em funcionamento a emissora de Radiodifusão Comunitária, em conformidade com as prescrições desta Lei, e constatando-se interferências indesejáveis nos demais Serviços regulares de Telecomunicações e Radiodifusão, o Poder Concedente determinará a correção da operação e, se a interferência não for eliminada, no prazo estipulado, determinará a interrupção do serviço.

Esses artigos da Lei 9.612/98 são repetidos literalmente no Capítulo VII - Da Execução do Serviço - Regulamento do Serviço de Radiodifusão Comunitária - nos seus artigos 25, 26 e 27, modificando, levemente, suas redações, quanto às provocações ocasionadas pelas Rádios Comunitárias, ou seja:

Art. 25- repete o artigo 22 da Lei 9.612/98;

Art. 26 - repete o artigo 23, porém, in fine, restringe ainda mais ao determinar: "Caso uma emissora de RadCom provoque interferência indesejável (...) A ANATEL determinará a interrupção do serviço da emissora de RadCom interferente, no prazo fixado em norma complementar, até a completa eliminação da causa da interferência.

E o artigo 27, então, trata da "interferência prejudicial" , com a ANATEL determinando a imediata interrupção do seu funcionamento, até a completa eliminação da causa da interferência.

Ora, vamos submergir nas águas dessa praia particular e fisiológica, para buscar, no fundo, o que significa o artigo 22, o artigo 23 da Lei, e os artigos 25, 26 e 27 do Regulamento. Embora, talvez, nem precisemos direcionar a lente do bom senso para eles, porque já se percebeu o que os legisladores fizeram, focalizemos, contudo, por questão de teimosia.



INCONSTITUCIONALIDADES

A Constituição de um País existe para ser respeitada. Reproduzimos, aqui, um pequeno trecho do ilustre Mestre, Professor e Tributarista, Dr. Ives Gandra Martins, em sua obra "O Sistema Tributário na Constituição de 1988", quando preleciona:

(...) No campo da interpretação do texto produzido, apenas nós, os juristas, poderemos atuar. Nesta ação reside minha esperança de uma interpretação moderada, adequada, buscando o espírito de nacionalidade em cada dispositivo e não o espírito, às vezes preconceituoso e pequeno, deste ou daquele grupo interessado que, em determinado momento, tenha assumido o controle de determinadas áreas da Constituinte. Sou otimista, porque sei que, em nível de Direito, da formação jurídica do bacharel, que tem necessariamente uma visão mais universal que as outras profissões, haverá um ingente, um difícil trabalho de adequação desta Constituição, buscando as raízes da nacionalidade, na interpretação que possibilitará, possivelmente, a redução sensível dos males que o texto frio da lei poderia acarretar a todos nós. Por esta razão, ao terminar, eu, pessimista em relação ao texto, sou otimista em relação àqueles que vão interpretá-lo e aplicá-lo. E, principalmente, na posição sempre serena do Poder Judiciário, porque, na verdade, estou convencido de que, a partir de agora, a grande nação que o Brasil deve ser dependerá não mais dos constituintes, mas daqueles que, como nós, têm sua vocação voltada para o Direito e fazem do ideal de justiça o seu grande ideal de vida."

E por que nos reportamos a questões constitucionais? Justamente pelas inconstitucionalidades que existem na Lei 9.612/98. Infelizmente, essa Lei nasceu preconceituosa, tendenciosa, pequena, e somente, mesmo, o Poder Judiciário poderá rejeitar atos e fatos praticados por interessados, ao arrepio do bom-senso, da Justiça, da igualdade, da solidariedade, enfim, de uma sociedade justa.

Senão, vejamos:

O que diz o artigo 3º, inciso I, da CF 88?

Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Reportemo-nos ao artigo 5º, caput:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residente no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...

Ora, senhores Legisladores, como "todos são iguais perante a lei" ? Se ocorrer de uma rádio comunitária interferir numa comercial, o Ministério das Comunicações puni-la-á. De que forma?

A Lei diz: "...o Poder Concedente determinará a correção da operação e, se a interferência não for eliminada, no prazo estipulado, determinará a interrupção do serviço." e o Regulamento completa: "(...) A ANATEL determinará a interrupção do serviço da emissora de RadCom interferente, no prazo fixado em norma complementar, até a completa eliminação da causa da interferência."

Esses casos se referem à "interferência indesejável". Na interferência prejudicial, então, nem se fale! E o que vêm a ser tais interferências? O artigo 8º do Regulamento estabelece:

Art. 8º - Para efeitos deste Regulamento, são adotadas as seguintes definições:

III- Interferência indesejável : é a interferência que prejudica, de modo levemente perceptível, o serviço prestado por uma estação de telecomunicações ou de radiodifusão regularmente instalada;

IV- Interferência prejudicial: é a interferência que, repetida ou continuamente, prejudica ou interrompe o serviço prestado por uma estação de telecomunicações ou de radiodifusão regularmente instalada.

Perceberam? Porém, como avaliar "de modo levemente perceptível"??? Creiam, senhores, que para os "poderosos", qualquer som será interferência e "perceptível"!!!

O choque de ondas das rádios comunitárias, pelo fato de haver uma só freqüência para elas, causará INTERFERÊNCIA !!! Pouco importa se indesejável ou prejudicial. Qualquer uma das duas é indesejada, quer pela rádio comunitária, quer pelos seus ouvintes.

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Supondo-se que causem interferência em uma rádio comercial, o MiniCom, de acordo com a Lei e com o Regulamento, deverá punir. Como? Interrupção dos serviços até à eliminação da causa da interferência. Porém, como eliminar choque de ondas, ocasionadas pela mesma freqüência? Quer dizer, a rádio comunitária sairá do ar, porque será denunciada, sem dúvida, e nunca mais voltará a ser autorizada!!!

Contudo, suponhamos que uma rádio comercial, até mesmo sem querer, interfira nas ondas de uma rádio comunitária, o que ocorrerá? NADA! ABSOLUTAMENTE NADA!!! Reportemo-nos ao que diz o artigo 22, da Lei 9.612/98, principalmente in fine:

Art. 22.- "...As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária operarão sem direito à proteção contra eventuais interferências causadas por emissoras de quaisquer Serviços de Telecomunicações e Radiodifusão regularmente instaladas, condições estas que constarão do seu certificado de licença de funcionamento!!!

Como diz o Bóris Casoy : ISSO É UMA VERGONHA!!!. Aliás, preferimos a frase do Gérson: É BRINCADEIRA!

Todavia, é a realidade. INCRÍVEL, mas é! A Lei autoriza, descaradamente, as rádios comerciais sabotarem as rádios comunitárias. Podem sabotar amparadas pela Lei. E pior: as rádios comunitárias continuam sendo tachadas de PIRATAS, porque REGULARMENTE INSTALADAS serão apenas as comerciais. Pode? E mais: se comunitária interferir em comunitária, que se ardam as duas!!! Não há proteção legal!

Pelo caráter do ilustre Mestre Dr. Saulo Ramos, que participou do processo que movemos contra a União Federal, exarando parecer para a ABERT, temos certeza de que ESSA TAMANHA INJUSTIÇA não teria o seu aval! E se resvalo no seu nome, é por causa de um excelente artigo que o ilustre ex-Ministro e respeitado Advogado escreveu na Folha de São Paulo sobre a esdrúxula Lei do Concubinato, na época.

Caríssimo Dr. Saulo, tão esdrúxula quanto àquela é esta! Usaram a Lei para se protegerem e poderem perseguir, à vontade, as rádios comunitárias. É a imposição da vontade dos que podem! Se não é possível aniquilar com as rádios, na força, como tentaram até agora, aniquilá-las-ão legalmente.

Ora, induvidosamente, esses artigos são extremamente discriminatórios por natureza!!! É de inconstitucionalidade latente. É totalmente revoltante, quando o artigo 3º da CF 88 prega a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O que há de justo e solidário nesta Lei, que, no fundo, deveria possuir cunho altamente social?



ARTIGO ABERTO

Como dissemos, este escorço apenas abre motivos para discussões e mais discussões para quem se interesse pelo assunto. A análise aqui foi bem superficial e, se o tempo permitir, voltaremos ao assunto.



PELA PAZ

Por outro lado, deixemos claro que, ao menos por parte de meus clientes, jamais eles pensaram ou pensarão em fazer concorrência com as rádios comerciais. Seria uma covardia. A comunitária é esmagada facilmente. O que se pretende é tão somente abri-la para a comunidade, para a participação da comunidade e para que cidades de pequeno porte, como Castilho, possam ter sua rádio, uma vez que, pelos parcos recursos econômicos do seu comércio, nenhuma emissora comercial estabelecer- se- ia na cidade, pois o investimento não seria compensável, dada a falta de retorno.

Agora, se o motivo for outro, como dominação política, por meio dos métodos de repetições contínuas de mensagens, para "fazer" a cabeça de um povo com pouca cultura, aí então a rádio comunitária fará o seu papel, como vem fazendo em Castilho.

Contudo, não acreditamos. Não há motivo para os proprietários de rádios comerciais sentirem-se lesados, porque o comércio dessas cidadezinhas pouco proporciona economicamente a eles. Talvez apenas a questão de audiência. E audiência de RadCom, no início, é bairrismo. Pode perdurar se a programação for boa e ajudar. Senão, como em toda concorrência, não consegue segurar-se... E quem tem mais recursos técnicos? Quem tem mais poder econômico?



TERCEIRO MILÊNIO

E mais, estamos na era da globalização da comunicação, na era da quarta revolução industrial, beirando o ano 2.000. Soa até pateticamente se querer privar uma população de pouco mais de 10 mil habitantes de ter sua emissora com seus pouquíssimos watts de potência, apenas 25!!!

Em plena era da comunicação, que mal pode fazer uma rádio, com 25 watts, que serve para cochichar músicas, notícias de aniversário ou de morte, abrir espaço para a comunidade, num raio tão restrito à cidade ( nem mesmo ao município)?

Ora, deixem as rádios comunitárias funcionarem em paz, sem tantas restrições, sem tantos embaraços, sem tantas barreiras técnicas.

Há muito mais para se fazer pelo nosso povo sofrido que querer privá-lo de ter sua radiozinha de interior! É brincadeira! Há coisas bem mais sérias para que nos preocupemos. Rádio Comunitária, senhores, é "titica", podem crer! Para que toda essa preocupação com elas?

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Sobre o autor
Wilson Paganelli

advogado e professor em Castilho (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAGANELLI, Wilson. A Lei 9612/98: (das rádios comunitárias). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 25, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/503. Acesso em: 22 dez. 2024.

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