Constituição e Pós-positivismo no Direito brasileiro contemporâneo

05/07/2016 às 06:41
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Este breve ensaio pontua algumas das importantes mudanças trazidas pela Constituição Federal de 1998 para a teoria do direito no Brasil, especificamente em matéria de interpretação e efetividade de direitos.

Primeiramente, convém esclarecer que o intuito deste ensaio é provocar um início de reflexão sobre o fenômeno jurídico na contemporaneidade. A consecução de tal fim exige do leitor que encare o Direito sob as lentes do constitucionalismo contemporâneo. Isso quer dizer que determinados dogmas, ínsitos à tradição liberal e ao positivismo, devem ser deixados de lado ou, até mesmo, suprimidos.

O Direito possui problemas tão recorrentes quanto imprescindíveis à sua autonomia e legitimidade. A inauguração de um novo marco para a vida social, como o fez a Constituição de 1988, proporcionou a potencialização de determinadas questões, eis que o jurista, até então afeto aos códigos, foi instado a lidar com um novo objeto, que exigiu um arcabouço teórico próprio (que até então não havíamos formado).

O constitucionalismo surgido após a Segunda Guerra[1] promoveu uma verdadeira mudança de paradigma, ocasião em que os textos constitucionais de diversos países ocidentais positivaram normas de índole marcadamente moral, alçando a dignidade da pessoa humana ao centro do sistema. O Brasil, por sua vez, reflete este conjunto de conquistas a partir da redemocratização (1985), formalizando-o já na Constituição de 1988.[2] O Estado Democrático de Direito será o projeto no qual se desencadearão tais mudanças (art. 1º). A efetivação dos direitos fundamentais passa a ser o foco e a razão do Estado, cujas instituições devem estar permeadas pelo ideário democrático.

É certo que a realidade demonstra que ainda há um gap a ser superado relativamente à efetividade da Constituição, o que se justifica nos mais variados fatores, aos quais não será objetivo deste ensaio adentrar. No entanto, é esta mesma realidade que deverá servir de horizonte ao jurista no momento de sua atuação, mormente ao magistrado, autêntico intérprete do Direito, para recordar Kelsen.

A (necessidade de) superação dos positivismos jurídicos[3], sobretudo aquele de cariz normativista, é fundamental, porque o Estado Democrático de Direito somente poderá por em execução seu projeto com um marco que possibilite a adequada interpretação/aplicação da Constituição, concebendo-a como centro e razão das políticas públicas, sociais e econômicas. Além disso, sem esta transposição positivista, torna-se impossível a compreensão das funções estatais, cujos Poderes, independentes e harmônicos entre si, devem possuir por foco a plena efetividade dos direitos fundamentais-sociais.

O pós-positivismo, que, por sua vez, pode ser concebido como um marco filosófico desse novo paradigma (BARROSO, 2006), traz um tempo no qual a cisão direito-moral é impossível, questão que assume feições de relevo na interpretação do Direito. Nesse sentido, para Streck (2011, p. 65), o atual estágio constitucional deve romper com o positivismo, eis que “há uma incompatibilidade paradigmática entre o Constitucionalismo Contemporâneo (compromissório, principiológico e dirigente) com o positivismo jurídico, nas suas mais variadas formas.”

Assim, o constitucionalismo pós-1988 exige que todos os atos estatais e também os entre particulares (horizontalização dos direitos fundamentais) estejam adequados e em conformidade à Constituição. Como o denomina Barroso (2006), o fenômeno da constitucionalização coloca a Constituição no centro do sistema, promovendo uma verdadeira filtragem dos atos estatais, estirpando do ordenamento jurídico aqueles que a contrariem. A garantia deste sistema de filtragem constitucional encontra amparo na jurisdição constitucional por meio dos instrumentos processuais de controle judicial, como o mandado de segurança e a ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo.

Segundo Barroso (2006), três grandes transformações podem ser identificadas com esta compreensão do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Todas estas três conquistas/transformações causaram um choque na relação entre os Poderes, mormente se compreendida sob a forma clássica da teoria da separação montesquiana.

O Judiciário passou então a ditar a última palavra em questões de grande repercussão nacional, podendo ser citados no âmbito do Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, da interrupção de gravidez de fetos anencefálicos, o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo etc. Além disso, inúmeras políticas públicas foram alvo de controle judicial, sendo a mais evidente a tutela do direito à saúde, consistente na busca judicial por medicamentos, tratamentos, internações e outros procedimentos do Estado. Segundo Carvalho (2011) este avanço do Poder Judiciário “é a grande marca das democracias ocidentais nesse começo de século.”

Assim, no atual paradigma pode-se dizer que qualquer exercício jurisdicional torna-se, também, constitucional. A previsão do controle difuso de constitucionalidade (incidental) possibilitou o exame de constitucionalidade de leis e atos normativos e administrativos por qualquer magistrado, das Comarcas aos Tribunais Superiores. Eis a dupla face de Janus. Se de um lado conquistamos a expansão, independência e autonomia dos juízes, por outro isto possibilitou o surgimento de um cenário caótico na interpretação do Direito, com a internalização de teorias estrangeiras e inadequadas à realidade brasileira[4] e com o surgimento daquilo que Streck denomina de “panprincipiologismo” (2011, p. 517 e ss.).

A hermenêutica jurídica, invadida pela Constituição, fez o magistrado e o jurista depararem-se, no plano normativo, com uma nova tipologia principiológica e aberta[5], cuja abordagem exegética difere-se da aplicação dos enunciados menos complexos que dominavam os códigos até então. O conflito entre princípios ou normas constitucionais, a delimitação de sentido de cláusulas gerais ou termos jurídicos indeterminados levou o magistrado a preencher, não raras vezes, este vazio conceitual da forma de melhor lhe aprouvesse. Streck (2010) diria que, nesta quadra da história, não é dado ao magistrado dizer “qualquer coisa sobre qualquer coisa”. E, com razão, as críticas que o jusfilósofo dirige ao positivismo kelseniano-hartiano (facilitadores da discricionariedade judicial) visam garantir a autonomia e a integridade do Direito, evitando que a atribuição de sentido à norma esteja à livre disposição do intérprete, o que se mostra antidemocrático. Eis o problema do livre convencimento - consagrador da vontade do intérprete -, tão caro à doutrina processual brasileira.

Noutro giro, as demandas e conflitos sociais sob a égide do Estado Democrático de Direito assumem outra natureza, ultrapassando o âmbito inter partes. Os conflitos passam a possuir certo grau de socialização, necessitando de tutela coletiva, não mais individual. Deste modo, demandas por saúde, educação, políticas sociais, conflitos de terras etc. exigem outro viés interpretativo que não o calcado nas doutrinas positivistas.

Assim, a superação do positivismo possibilitará ao juiz a interdisciplinaridade que tantas vezes lhe falta para a compreensão dos conflitos subjacentes à lide, muitas vezes fruto do histórico de desigualdade devidamente encampado pelas elites brasileiras, mas não alheio àqueles cuja meta é a realização dos objetivos republicanos brasileiros dispostos na Constituição. Tal fato reside nas raízes do ensino do Direito, também refém do positivismo que funda a cultura jurídica brasileira,[6] o que fez com que os juristas se afastassem, em certo grau, da realidade e dos problemas sociais, focando-se em reproduzir dogmaticamente a técnica e a operacionalidade do Direito. Isto o reduz a mero objeto estático, desprovido de legitimidade e de capacidade transformadora, atributo que é (re)conquistado pela Constituição, pois, “nos quadros do Estado Democrático (e Social) de Direito, [o direito] é sempre um instrumento de transformação, porque regula a intervenção do Estado na economia, estabelece a obrigação de realização de políticas públicas, além do imenso catálogo de direitos fundamentais sociais” (STRECK, 2011, p. 59-60.

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REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. 5. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Constituição e crise política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 97-148.

CARBONELL, Miguel. Reinventar la democracia, reinventar el constitucionalismo. In Estado constitucional e organização do poder. TAVARES, André Ramos; LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 71-92.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cidadania e direitos. In BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz (Orgs.). Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 102-109.

SARMENTO, Daniel. A assembleia constituinte de 1987/1988 e a experiência constitucional brasileira sob a Carta de 88. In Estado constitucional e organização do poder. TAVARES, André Ramos; LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 221-264.

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In Interpretação Constitucional. SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). São Paulo, Malheiros, p. 115-143, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

______. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

 


[1] Barroso (2006) traz como marco filosófico do novo direito constitucional a reconstitucionalização da Europa após a 2ª Guerra Mundial, tendo como marcos principais a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de 1949, e a Constituição da Itália, de 1947.

[2] Não obstante estabelecer-se neste trabalho a redemocratização pós-Segunda Guerra como um marco histórico comum entre os diversos Estados ocidentais, não se deve descurar da atenta observação de Miguel Carbonell, de que cada processo constituinte possui razões diversas em cada Estado, pois que somente os contextos políticos e sociais de cada Estado poderá propiciar a compreensão de acontecimento, in verbis: “Cada proceso constituyente responde a circunstancias muy diversas. Aunque es certo que los problemas que se pretendem resolver o enfrentar a través de la expedición de nuevas constituciones son parecidos, los impulsos que las hacen surgir son particulares de cada país e incluso de cada momento histórico.” (CARBONELL, 2010, p. 71). A despeito de trazermos estas duas Constituições como as principais deste período, Sarmento (2010) observa que as maiores influências para a Constituição brasileira de 1988 foram as Constituições de Portugal (1976) e da Espanha (1978).

[3] Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 31 e ss.

[4] Sobre este tema, conferir SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In Interpretação Constitucional. Virgílio Afonso da Silva (Org.). São Paulo, Malheiros, p. 115-143, 2007.

[5] A “tese da abertura semântica” dos princípios não é adotada de forma unânime na doutrina. Para Streck (2010), por exemplo, tal entendimento é incompatível com o modelo pós-positivista de teoria do direito.

[6]{C} Em percuciente crítica, Azevedo (1989, p. 73) salienta que “o direito e a formação jurídica, que condiciona a concepção que do direito se tenha, necessitam libertar-se dos antolhos positivistas, que levam à paralisia da consciência crítica do jurista, cortando-lhe a iniciativa, reduzindo-o a testemunha sem ação diante dos acontecimentos.”

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Sobre o autor
Nairo José Borges Lopes

Professor do Curso de Direito da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Mestre em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG). Bacharel em Direito pela UNIFENAS. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo originalmente publicado na Revista Jurídica UNIGRAN (Dourados, MS), v. 15, n. 29, jan./jun. 2013, p. 29-33.

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