3 - A GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE
3.1 - A importância da gestão democrática
O Estatuto da Cidade inova o ordenamento jurídico pátrio em vários aspectos. Traz inovações ansiosamente aguardadas, permitindo a aplicação de diversos dispositivos constitucionais igualmente inovadores, a utilização de instrumentos urbanísticos modernos, enfim traz um ferramental absolutamente fundamental para que tenhamos, em nossos diversos municípios, uma política urbana.
Entretanto, o atingimento dos objetivos fundamentais desta política urbana estabelecidos pelo artigo 182 da Constituição Federal - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes - está diretamente condicionado pela gestão municipal democrática.
Na lição de Nelson Saule Júnior:
"A constituição de um sistema de gestão democrática da cidade no Município, é condição essencial para os objetivos da política urbana serem atingidos, através da aplicação do plano diretor, uma vez que o processo de formulação e execução das políticas públicas, o planejamento municipal e o modelo de gestão da cidade são matérias vinculantes para a execução do plano diretor".
Também Maria Paula Dallari Bucci deixa claro a importância da gestão democrática dentro do Estatuto:
"A própria situação topológica do capítulo, que é o penúltimo do Estatuto, antecedendo apenas as "Disposições Gerais", além do seu conteúdo indicam seu caráter de norma de processo político-administrativo, que informa o modo concreto de formulação da política urbana e da incidência dos dispositivos tratados nos capítulos anteriores, para o quê se exige sempre a necessária participação popular.
(...)
"A realização do processo democrático na gestão das cidades é a razão da própria existência do Estatuto da Cidade, que resulta, ele próprio, de uma longe história de participação popular, iniciada na década de 80, e que teve grande influência na redação do capítulo da política urbana da Constituição Federal (arts. 182-183).
(...)
"A plena realização da gestão democrática é, na verdade, a única garantia de que os instrumentos de política urbana introduzidos, regulamentados ou sistematizados pelo Estatuto da Cidade (tais como o direito de preempção, o direito de construir, as operações consorciadas etc.) não serão meras ferramentas a serviço de concepções tecnocráticas, mas ao contrário, verdadeiros instrumentos de promoção do direito à cidade para todos, sem exclusões".
E, na realidade, o Estatuto introduz e regulamenta meios muito intensos de intervenção do Estado sobre a propriedade privada, os quais, se concebidos de uma forma tecnocrática ou se utilizados com desvio de finalidade, poderão acarretar danos consideráveis aos cidadãos. Some-se a isso o risco de "descambar para o totalitarismo", presente no Direito Urbanístico em virtude de sua "visão totalizante de mundo" da qual decorre o Direito Urbanístico, e teremos, em linhas gerais, a importância do sistema de gestão democrática engendrado pela novel Lei de Responsabilidade Social.
3.2 - Poder local e participação
Nos termos como concebida a participação popular pela nossa Constituição Federal, ela poderá - ou melhor, deverá - ter lugar em todos os níveis de exercício do poder político. Mas o nível local é, por excelência, seu habitat natural. A proximidade que as comunidades menores - a grande maioria dos municípios, portanto - permite entre o povo e os governantes é elemento incentivador e facilitador da participação.
Ensina Laís de Almeida Mourão:
"Como célula política da organização nacional, é no Município que se apresentam as condições propícias à participação popular, não só pela existência de uma relativa homogeneidade na composição de cada comunidade local como pela maior possibilidade de identificação dos interesses comuns e dos meios a serem utilizados para a sua realização".
No mesmo sentido é o magistério de Ladislau Dowbor:
"A questão do poder local está rapidamente emergindo para tornar-se uma das questões fundamentais da nossa organização como sociedade. Referido como local authority em inglês, communautés locales em francês, ou ainda como espaço local, o poder local está no centro do conjunto de transformações que envolvem a descentralização, a desburocratização e a participação, bem como as chamadas novas tecnologias urbanas.
No caso dos países subdesenvolvidos, a questão se reveste de particular importância na medida em que o reforço do poder local permite, ainda que não assegure, criar equilíbrios mais democráticos frente ao poder absurdamente centralizado nas mãos das elites".
Roberto Amaral chega até mesmo a rotular o fortalecimento do poder local como condição de existência da democracia, o que basta para demonstrar a importância das regras sobre gestão democrática da cidade para a efetividade da democracia participativa estabelecida pela Constituição Federal.
3.3 - Das normas esparsas sobre gestão democrática.
Não só no Capítulo IV o Estatuto da Cidade refere-se à gestão democrática. Há, em seu todo, diversas normas esparsas que se afinam, direta ou indiretamente, com a forma compartilhada de gestão municipal estabelecida no capítulo específico que trata do tema.
As primeiras referências feitas pelo novel diploma legal à gestão democrática constam dos incisos II, III e XIII do seu artigo 2º, que veicula as suas diretrizes gerais. Podemos afirmar, neste passo, que a gestão democrática, a cooperação entre governo, iniciativa privada e população no processo de urbanização e a obrigatoriedade de audiência do poder público municipal e da população interessada para a implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população são, na realidade, princípios jurídicos, vetores para a interpretação tanto das demais normas do próprio Estatuto, quanto da legislação que lhe dá complemento, em qualquer nível. Cabe ressaltar, aqui, que a norma abrange a visão de impacto ambiental, tradicionalmente vinculado apenas ao meio ambiente natural.
Em seguida, ao disciplinar os chamados instrumentos de política urbana, novamente o Estatuto traz regramentos relacionados à gestão democrática: a gestão orçamentária participativa (artigo 4º, II, "f", esmiuçada no artigo 44, adiante analisado); o plebiscito e o referendo (artigo 4º, II, "s") e os estudos prévios de impacto de vizinhança (EIV) e de impacto ambiental (EIA) (artigo 4º, VI).
O parágrafo 3º do artigo 4º também estabelece o chamado controle social do dispêndio de recursos, exigindo a participação da comunidade no controle da utilização dos instrumentos de política urbana que demandem o dispêndio de recursos públicos.
A efetividade da norma restou comprometida pelo veto aposto ao artigo 52, I do Estatuto, que estabelecia hipótese de improbidade administrativa para o prefeito que dificultasse o controle social, já que "tristemente, a tradição brasileira tem demonstrado existir um vínculo significativo entre a eficácia das normas e a força das sanções correspondentes para o caso de seu descumprimento".
Nas razões do veto invocou-se um pseudocaráter político do controle social, para vetá-la por contrariedade ao interesse público. Nos parece que tais adotam um posicionamento conservador que já não mais impera no seio do Direito Constitucional e Administrativo. O caráter político do controle prevalece até que normas jurídicas instituam sua obrigatoriedade, o que lhe dá, então, caráter jurídico. Mesmo que fosse necessária uma disciplina mais pormenorizada do tal controle social do dispêndio de recursos, entendemos que a hipótese de improbidade administrativa que havia sido traçada contribuiria decisivamente para a eficácia do § 3º, acima citado.
O artigo 33, VII, exige que a lei específica que aprove a constituição de uma operação urbana consorciada preveja controle compartilhado da operação com a sociedade civil.
O artigo 37, parágrafo único, exige a publicidade dos documentos integrantes do Estudo de Impacto de Vizinhança. A mesma exigência de publicidade é repetida com relação ao Plano Diretor, no artigo 40, § 4º da lei sob comento.
A exigência é integralmente compatível com o princípio da publicidade. E, para além disso, a publicidade representa verdadeira condição para a participação. No dizer de Nelson Saule Júnior:
"A participação popular tem como pressuposto o respeito ao direito à informação, como meio de permitir ao cidadão condições para tomar decisões sobre as políticas e medidas que devem ser executadas para garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade".
"O acesso às informações é elemento primordial para a democratização da gestão da cidade, que deverá ser utilizado por qualquer cidadão e não apenas pelos órgãos da administração municipal, permitindo eliminar a apropriação indevida do conhecimento sobre a cidade por pequenos grupos de técnicos e servidores da máquina estatal, que atendem apenas os interesses da minoria privilegiada que sempre teve acesso às instâncias do poder municipal".
Garantir a publicidade e garantir o acesso às informações englobam condutas diversas da administração: a imposição de publicidade exige uma "postura ativa a ser tomada pela Administração"; permitir o acesso, por sua vez, implica numa "postura de receptividade em relação a quem queira se inteirar dos assuntos de público interesse".
Em nenhum momento as normas estabelecem o prazo mínimo para que as informações fiquem à disposição do público. O atendimento à exigência dependerá da análise do caso concreto, onde deverá ser levada em consideração, v.g., a complexidade do assunto tratado. Caso conclua-se pela insuficiência do prazo fixado em concreto, é perfeitamente possível a correção judicial da ilegalidade, sem prejuízo do enquadramento da conduta do prefeito municipal como improbidade administrativa (artigo 52, VI).
O processo de elaboração do Plano Diretor também é objeto das preocupações democráticas do Estatuto. Vislumbra-se uma preocupação considerável com a superação do chamado planejamento de gabinete, que provocou uma espécie de "discurso esquizofrênico" nas Administrações e funcionou como grande "gerador de desigualdades", por não levar em consideração a grande parcela da população que vivia - e vive - à margem da legalidade. Reconhece-se a cidade com um "palco de conflitos", que somente podem ser satisfatoriamente resolvidos em "espaços democráticos de negociação entre os diversos atores urbanos".
Aliás, merece transcrição a lição lapidar de José Afonso da Silva sobre a exigência de um planejamento participativo:
"É um completo engano pensar que a democracia atrapalha do planejamento, mesmo porque, se esta antinomia fosse verdadeira, seria correto eliminar imediatamente o planejamento. Ao contrário, o planejamento é uma forma de organizar a democracia e de exprimi-la. O que devemos dizer, de forma clara e tranqüila, é que este tipo de planejamento toma o partido da maioria da população da cidade e a defende, aliás, por isso ele é democrático".
As exigências estabelecidas no artigo 40, § 4º atingem tanto o Poder Executivo como o Poder Legislativo. Portanto, é obrigatória a realização de audiências e debates no âmbito de ambos os poderes, não restando cumprida a exigência se apenas um deles os realizar. E trata-se de verdadeira obrigatoriedade, com o que o legislador afastou-se da sistemática adotada na Lei de Processo Administrativo Federal, onde a realização é apenas uma faculdade do Poder Público.
O Estatuto também não estabeleceu os requisitos formais para a realização das audiências e debates, mas a análise do caso concreto tornará possível a constatação do cumprimento ou não das exigências. A lei municipal poderá, obviamente, estabelecer o procedimento a ser seguido nas convocações de audiências públicas e debates, mas sua eventual inexistência não tornará inaplicável a exigência do Estatuto, que reúne todos os elementos necessários à sua aplicabilidade imediata.
Com efeito, a lei estabeleceu verdadeiro requisito de validade do Plano Diretor, em estreita vinculação com o estabelecido no artigo 29, VII, da Constituição Federal. Adotando-se como correta a concepção ampla de forma do ato administrativo, que a encara não apenas como a sua exteriorização, mas também como o conjunto de todas as formalidades que devem ser obedecidas no processo de gestação do ato, a inobservância das formalidades procedimentais estabelecidas evidentemente gera a sua invalidade. Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
"Não há dúvida, pois, que a observância das formalidades constitui requisito de validade do ato administrativo, de modo que o procedimento administrativo integra o conceito de forma.
No direito administrativo, o aspecto formal do ato é de muito maior relevância do que no direito privado, já que a obediência à forma (no sentido estrito) e ao procedimento constitui garantia jurídica para o administrado e para a própria Administração; é pelo respeito à forma que se possibilita o controle do ato administrativo, quer pelos seus destinatários, quer pela própria Administração, quer pelos demais Poderes do Estado".
Exatamente por isso, aliás, reputamos absolutamente inútil o veto aposto ao § 5º do artigo 40 do Estatuto da Cidade, que expressamente cominada nulidade à lei que instituísse o plano diretor sem a observância das exigências estabelecidas no § 4º. Nesse sentido as constatações de Nelson Saule Júnior e Toshio Mukai:
"Esta nulidade independe deste veto, poderá ser solicitada por qualquer cidadão pelo descumprimento da Constituição e do Estatuto da Cidade através dos remédios constitucionais de garantia dos direitos fundamentais, tais como a ação popular, o mandado de segurança, a ação civil pública, e a ação declaratória de inconstitucionalidade de lei".
"Ora, o §4º do art. 40 obtém sua legitimidade no próprio texto constitucional, mais precisamente no art. 1º e seu § 1º da C.F., no inciso XII, do art. 29, da C.F e no direito de petição inscrito no art. 5º, incisos XXXIII e XXXIV, da C.F.
Portanto, a lei que instituir o plano diretor, sem levar em conta os direitos da cidadania, previstos no §4º do art. 40 do Estatuto será inconstitucional e, como tal, nula de pleno direito. Portanto o veto foi absolutamente inócuo".
Interessante questão a respeito de planos diretores aprovados anteriormente ao advento da Constituição de 1.988 é levantada pelo eminente jusurbanista Nelson Saule Júnior. Para o autor, se o plano foi aprovado sem a participação da comunidade local, "desrespeitando o requisito constitucional da participação popular", o município estará obrigado a "revisar o seu plano diretor no prazo de cinco anos, estabelecido no artigo 50".
A tese não nos parece sustentável. A incompatibilidade que geraria a revogação do plano diretor anterior à Constituição seria apenas a incompatibilidade material; a incompatibilidade formal não impede a recepção da legislação anterior, ainda que sob outra roupagem. Escreve Elival da Silva Ramos, sustentando, preliminarmente, que se trata de revogação e não de inconstitucionalidade superveniente da legislação anterior incompatível com o novo texto constitucional:
"Se a Constituição é editada posteriormente à lei, não serve ela de parâmetro, a despeito de sua inegável superioridade hierárquica, pois, se ao tempo do nascimento da lei a Constituição ainda não existia, como se pode falar na conformidade ou desconformidade daquela com respeito a esta? Tanto é assim que mesmo os que acolhem a tese da ilegitimidade constitucional sucessiva aceitam que não se pode caracterizar a inconstitucionalidade por defeito procedimental em relação às leis anteriores à Constituição (''tempus regit actum'')".
3.4 - Das normas específicas sobre a gestão democrática
A gestão democrática da cidade vem especificamente tratada no Capítulo IV do Estatuto da Cidade.
De início, podemos afirmar que na disciplina estabelecida sobressai um caráter processual, do que se extrai que a idéia foi atingir uma legitimação da gestão pública através do procedimento.
A opção do legislador, ao nosso ver, é plenamente válida. Na lição de Carmen Lúcia Antunes Rocha:
"Na organização administrativa democrática, o processo administrativo surge como uma forma de superação da atuação estatal autoritária. É por ele, fundamentalmente, que o princípio da legitimidade do poder, desempenhado por meio da atividade administrativa, ganha densidade e foros de evidência e eficiência social e política".
No mesmo sentido é a lição de Maria Lourido dos Santos:
"Pelo processo administrativo supera-se a idéia de imperatividade da Administração. O cidadão deixa de ser visto súdito para ser colaborador, inclusive, o vocábulo administrado vem sendo evitado por indicar estado de sujeição. Afinal, o cidadão deve ser considerado como titular do poder, pois na democracia o poder pertence ao povo. É esse reconhecimento que promove a legitimação do poder".
O artigo 43 começa por arrolar os instrumentos que deverão ser utilizados para garantir que a gestão das cidades se faça de forma democrática. O rol aí utilizado é meramente exemplificativo, o que fica claro pelo uso da expressão "entre outros".
Não se especificou o que o legislador pretende quando fala em órgãos colegiados de política urbana. Com base nas experiências já havidas em nosso país em matéria de gestão democrática, podemos extrair dois modelos básicos que poderiam ser adotados: aqueles com participação exclusiva da sociedade civil (denominados os Conselhos Populares); e aqueles compostos por representantes do Poder Público e da sociedade civil, em composição paritária (cadeiras divididas entre representantes da sociedade e do governo) ou tripartite (composto de um terço de representantes do governo; um terço da sociedade civil organizada e um terço de representantes escolhidos livremente pela população).
A liberdade para a instituição de tais órgãos colegiados é grande, e cada município poderá adotar a estrutura que mais lhe aprouver. O que deve ficar consignado é que, segundo pensamos, alguns requisitos mínimos devem ser observados, que são extraídos da interpretação sistemática e teleológica do Estatuto e de suas bases constitucionais.
Em primeiro lugar, a prerrogativa de indicar os membros de tais órgãos deve ser atribuída ou às sociedades civis que nele têm assento, ou à população, no caso da composição tripartite acima mencionada. Não é cabível a atribuição de tal poder ao Chefe do Executivo ou a qualquer órgão governamental, pois isso desvirtuaria o caráter de colegiado democrático que a legislação objetivou imprimir a tais conselhos. É a constatação, de lege ferenda, de Paulo Affonso Leme Machado:
"Generalizou-se a implantação de conselhos com poderes consultivos não só nas matérias já costumeiras em meio ambiente, mas também nas mais recentes, como os "organismos geneticamente modificados". Outros países passaram a organizar conselhos com poderes consultivos e deliberativos nas mais variadas matérias ambientais. A prática registra que, em alguns países, são as próprias organizações governamentais que elegem seus representantes para esses conselhos, sem que os governos interfiram nessa eleição".
Ademais, a composição do órgão deve garantir a participação de todos os segmentos sociais relevantes no município, o que, inclusive, pode ser pleiteado através de ações judiciais a serem patrocinadas pelos interessados. É a conclusão também esposada por Nelson Saule Júnior:
"O princípio da participação popular tem como elemento, para identificar o seu cumprimento, o exercício do direito à igualdade, pois não pode haver exclusão de qualquer segmento da sociedade nos processos de tomada de decisões de interesse da coletividade. Portanto, qualquer pessoa e em especial os grupos sociais marginalizados têm o direito de participar do processo de planejamento municipal, ou seja, do processo do plano diretor".
Também a inexistência de mandato fixo para os representantes das organizações não governamentais é uma imposição que acreditamos decorrer diretamente do sistema adotado pela lei. O mandato de tais conselheiros pertence, na realidade, às associações civis que representam. É, pois, um mandato com características de imperativo.
A atribuição de funções normativas a tais órgãos colegiados também não foi, a priori, descartada pelo Estatuto. Dependerá, obviamente, do que dispuser a legislação de cada entidade federada. E, desde que respeitada a seara reservada exclusivamente ao legislativo, não vemos óbices constitucionais ao exercício do chamado poder normativo pelos Conselhos. Já disse Eros Roberto Grau, ao comentar o antigo Projeto 775/83 no tocante à atribuição de tais poderes ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano:
"Ora, há visível distinção entre as seguintes duas situações: a) vinculação da Administração às definições da lei; b) vinculação da Administração às definições ''decorrentes'' - isto é, fixadas em virtude dela - de lei.
Na segunda delas, ainda quando as definições em pauta se operem em atos normativos não da espécie legislativa - mas decorrentes de previsão implícita ou explícita em atos legislativos contida - o princípio estará sendo devidamente acatado.
(...)
Tenho para mim, a partir da exposição acima produzida, que o artigo 38, IV do projeto não opera a delegação de ''função legislativa'' ao CNDU, mas apenas e tão-somente a atribuição, a ele, de ''função normativa''. Daí por que, decorrente - ''em virtude'' - de lei, essa atribuição implica se autoriza àquele órgão o exercício de capacidade regulamentar, plenamente compatível com a ordem constitucional".
Questão tormentosa é saber se as decisões de tais órgãos colegiados, ou mesmo as conclusões extraídas de uma audiência pública são ou não vinculantes para o poder público. Cremos que tal efeito não foi expressamente previsto pelo Estatuto, mas poderá ser legalmente adotado no âmbito de cada município, como bem destacado por Maria Paula Dallari Bucci:
"A atribuição de funções deliberativas ao Conselho esbarrará nas matérias em relação às quais o Estatuto da Cidade ou outras normas exijam edição de lei específica, reservando, portanto, competência ao Poder Legislativo. Contudo, em relação a outras matérias, não cobertas por essa vedação, poderá ser atribuído ao conselho poder de deliberar sobre aspectos de fundo, os quais se tornarão elementos vinculantes ou de forte poder persuasório para a expedição de atos administrativos ou legislativos subseqüentes".
Ainda que a vinculação não seja adotada, o simples fato de haver uma deliberação de um órgão colegiado, ou um posicionamento colhido em audiência pública, torna imprescindível uma extensa motivação por parte da autoridade pública que pretender agir em desconformidade com o decidido. Paulo de Bessa Antunes, ao tecer considerações sobre a audiência pública no processo de licenciamento ambiental, e concluir pela sua natureza consultiva, vai ao ponto crucial da questão:
"Penso que aqui se estabeleceu um dever de levar em conta a manifestação pública. Este dever se materializa na obrigação jurídica de que o órgão licenciante realize um reexame, em profundidade, de todos os aspectos do empreendimento que tenham sido criticados, fundamentadamente, na audiência pública".
Também Lúcia Valle Figueiredo constata o que chama de inversão do ônus da prova em decorrência da deliberação tomada em audiência pública. Escreve, especificamente sobre as audiências públicas previstas na Lei de Licitações:
"Destarte, a primeira grande conseqüência, verificada por nós: inverte-se, em termos de controle, o ônus da prova. Há necessidade de a Administração provar que sua decisão, não obstante desacolhida ou questionada pela comunidade interessada, ou acolhida em outros termos, foi bem tomada. Nota-se, em conseqüência, a presunção de que a obra ou o serviço poderia entrar em atrito com os princípios vetoriais da Administração Pública".
A seguir, o Estatuto refere-se aos debates, audiências e consultas públicas. Valem aqui o que já foi dito a respeito da vinculação das decisões dos Conselhos. O que se busca atingir é a fase de gestação dos atos de governo. Se nela não houve a participação popular, seu resultado - o ato de governo propriamente dito - é inválido.
As hipóteses de obrigatoriedade da realização de audiências, debates e consultas serão estabelecidas pela legislação de cada ente federado. Mas o próprio Estatuto já prevê um caso de audiência obrigatória: artigo 2º, XIII, que a torna imprescindível para a instalação de empreendimento potencialmente danoso.
Sempre que a audiência pública (ou, no mesmo passo, as consultas e debates) for prevista como obrigatória, sua realização deve ser encarada como verdadeiro requisito de validade do procedimento administrativo:
"Utilizando-nos da teoria da linguagem, podemos afirmar que a audiência pública é um evento, que, depois, feita a competente ata documentando-o, passa a ser relevante para o direito como fato administrativo, pois jurisdicizado, e absolutamente necessário para compor o procedimento, a preceder - nesses casos assinalados - o ato administrativo do edital. Portanto, temos a necessidade de um fato jurídico preliminar ao edital para validá-lo, fato jurídico este que será documentado pela Ata da Audiência, esta constituindo-se no ato administrativo inicial do procedimento".
Também são mencionadas as conferências sobre assuntos de interesse urbano. São "foros para a formação de uma cultura de participação popular e consulta democrática na formulação de políticas, do que propriamente como um expediente legal vinculante".
A iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano vem prevista no inciso IV. A norma inova ao diferenciar a iniciativa de projetos de lei daquela referente a planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Não se olvide, aqui, da natureza jurídica de lei dos planos urbanísticos. Não estamos perante uma desvinculação das políticas públicas da estrita legalidade. No Brasil, "todo plano urbanístico há de ser aprovado por lei". Mas nos parece que o legislador instituiu uma verdadeira iniciativa da gestação de políticas públicas, a ser manifestada perante o executivo. Através dela, portanto, a população desencadearia um processo de planejamento urbano, dentro da Administração.
Em matéria de iniciativa popular devemos rechaçar posicionamentos doutrinários que insistem em supervalorizar o princípio representativo. Insistimos, como já explicitado na parte inicial do presente estudo, que nosso texto constitucional adotou a democracia participativa como princípio fundamental, reflexo direto da soberania popular. Portanto, a iniciativa popular é cabível ainda que a matéria do projeto seja de iniciativa privativa do chefe do executivo.
O inciso V do artigo 43, vetado, arrolava como instrumentos de gestão democrática o referendo e o plebiscito. A razão principal do veto é a existência da Lei 9.709, de 18 de novembro de 1.998, que já regula tais institutos. Não nos parece que a existência da legislação sobre o tema deva funcionar como causa do veto. O Estatuto não buscou interferir na sistemática legal de tais institutos, mas apenas, num esforço de sistematização, arrolá-los como instrumentos para garantir a gestão democrática das cidades.
Em que pese a existência do veto, tais instrumentos continuam arrolados no artigo 4º do Estatuto, como instrumentos de política urbana, e deverão ser objeto de legislação municipal que delimitará os "temas que podem ser objeto de referendo e plebiscito e as matérias referentes à fase de solicitação e da aprovação destes pela Câmara Municipal".
No artigo 44, o Estatuto estabelece o que vem sendo chamado de gestão orçamentária participativa. A realização de audiências públicas, debates e consultas sobre as propostas das três leis orçamentárias, é alçada ao nível de verdadeira condição de procedibilidade do orçamento. Sem a realização de tais providências democratizantes, não poderá haver a aprovação das leis do orçamento pelo legislativo.
"Em verdade, a participação popular no orçamento, por exemplo, passa a ser obrigatória, o que leva à conclusão de que, em sua ausência, o processo de elaboração do orçamento é viciado, podendo ensejar disputa judicial Imagine-se que não tenha havido qualquer audiência pública, não pode o juiz entender inexistente o orçamento ou ser ele nulo? Poderá, em ação civil pública, conceder liminar a fim de o prefeito ou a Câmara proceder nos termos da lei, ouvindo a comunidade? Será que isso não é ingerência de um poder no outro? Parece-nos que a lei erigiu a participação popular (por qualquer forma que se a entenda) como ''condição obrigatória'' para aprovação do orçamento e, pois, requisito de validade, o que admite o controle judicial, uma vez que se cuida de legalidade do ato que venha a ser emanado".
Por fim, o Estatuto obriga, em seu artigo 45, que os organismos gestores das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas incluam significativa participação popular e de associações civis como forma de controle de suas atividades.
Os conceitos de região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião não são pacíficos na Doutrina e na legislação. Apesar disso, podemos afirmar que a existência de conurbação apenas está presente nas duas primeiras. Somente nelas, pois, terá lugar o organismo gestor referido no artigo 45 do Estatuto, o que explica a falta de referência às microrregiões.