Artigo Destaque dos editores

Desapropriação para fins de reforma urbana e o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)

Exibindo página 2 de 3

Resumo:


  • A desapropriação para reforma urbana é um instrumento jurídico que permite ao Poder Público municipal transferir um bem do patrimônio particular para o público ou para outro particular, em casos de descumprimento da função social da propriedade urbana, com indenização em títulos da dívida pública.

  • O Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001) regulamenta a desapropriação para fins de reforma urbana, exigindo procedimentos preliminares como notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e cobrança de IPTU progressivo por cinco anos antes de recorrer à desapropriação.

  • A efetiva aplicação da desapropriação para reforma urbana enfrenta barreiras práticas, como a necessidade de legislação prévia e autorização do Senado Federal para emissão de títulos da dívida pública, o que pode retardar sua utilização para enfrentar problemas habitacionais urbanos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. O Estatuto da cidade.

Atendendo aos reclamos dos urbanistas e dos administradores municipais, após 12 anos de tramitação, foi editado o Estatuto da Cidade, a lei federal de diretrizes de política urbana exigida pelo art. 182 do Texto Constitucional para regulamentação e implantação de seus dispositivos, e cuja inspiração é atribuída ao direito urbanístico de países como Espanha, Portugal e Itália.

Trata-se, de certo, de diploma inovador, cujo objeto, conforme estatuído pelo parágrafo único, do art. 1º, constitui o estabelecimento de "normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental". Dispõe ainda, em seu art. 2º, acerca dos objetivos da política urbana no sentido de ordenação do desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, de acordo com as diretrizes que estabelece.

O Estatuto da Cidade "nasce em meio a grande polêmica, própria dos textos que introduzem limitações ao exercício de direitos individuais, ensejando questionamentos acerca da constitucionalidade de vários de seus dispositivos" [20]. Sem embargo, não se restringe a regulamentar os instrumentos instituídos pela Carta Magna como o parcelamento e edificação compulsórios, o IPTU progressivo e a desapropriação, dispõe também acerca de institutos até então inéditos no direito urbanístico brasileiro, como os direitos de superfície (arts. 21 a 23) e de preempção (arts. 24 a 27), e a outorga onerosa do direito de construir (arts. 28 a 31).

Com efeito, é mister destacar que, não obstante a Lei n. º 10.257/2001 seja de suma importância para a implantação da política urbana, alguns de seus institutos, para serem plenamente aplicáveis, ainda necessitam de regulamentação, mediante a edição do respectivo plano diretor e, posteriormente, de leis específicas, ambos de competência do ente municipal.

3.1. O Estatuto da Cidade e os instrumentos constitucionais de política urbana.

Consoante referenciado, o Estatuto da Cidade tratou de regulamentar os instrumentos criados pela Constituição para adequação da propriedade urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada, à função social fixada pelo plano diretor de cada Município, disciplinando o procedimento que pode culminar na desapropriação para fins urbanísticos.

3.2. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.

O art. 5.º do Estatuto repete a previsão constitucional de imposição compulsória do parcelamento, da edificação ou da utilização ao imóvel urbano, situado em área incluída no plano diretor, descumpridor de sua função social. Note-se, porém, que "embora a Constituição refira-se, tão-somente, ao parcelamento e à edificação compulsórios, o Estatuto da Cidade agregou também a ‘utilização compulsória’" [21]. Tal acréscimo foi elogiável, pois se não houvesse a possibilidade de imposição da utilização, como determinar que um imóvel já edificado para os fins previstos no plano diretor, mas que estivesse abandonado pelo proprietário, pudesse ser parcelado ou edificado? Logicamente, o mais adequado é impor sua efetiva utilização.

O Estatuto conceituou unicamente o imóvel subutilizado, definindo-o no § 1º do art. 5º, como aquele cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor. Não seria realmente necessário caracterizar o imóvel não edificado ou o não utilizado, cujos conceitos decorrem da própria interpretação literal.

Quanto ao seu procedimento, determina, em linhas gerais, que o proprietário de imóvel remisso será notificado para cumprir sua obrigação, apresentando projeto nesse sentido em prazo não inferior a um ano e, após aprovação do projeto, disporá de, no mínimo, dois anos para iniciar as obras. Acrescenta que a notificação deve ser averbada no cartório de registro de imóveis para fins de conhecimento de terceiros, bem como que a transmissão do imóvel por ato inter vivos ou causa mortis posterior à notificação transfere as obrigações, sem interrupção de quaisquer prazos.

3.3. IPTU progressivo no tempo.

Mantendo-se inerte o proprietário, mesmo após as condições e os prazos concedidos, assiste ao Poder Público Municipal a imposição de sanções administrativas, escalonadas e sucessivas, sendo a primeira delas a aplicação do IPTU progressivo no tempo.

A progressividade do IPTU [22], nesse caso, dar-se-á mediante a majoração anual de sua alíquota, cujo valor será fixado por lei municipal e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de 15% (art. 7º, § 1º). Além disso, o art. 7º do Estatuto determina, ainda, que a progressividade será mantida por um período de 5 anos. No entanto, acrescenta que, se a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não for atendida no qüinqüênio legal, o Município manterá a cobrança da exação pela alíquota máxima, até que seja adimplida a obrigação [23] (art. 7º, § 2º), podendo, se preferir, valer-se da desapropriação do imóvel, nos termos do art. 8º, do mesmo diploma legal.


4. Desapropriação para fins de reforma urbana.

A desapropriação é, indubitavelmente, a forma mais drástica de intervenção do Estado na propriedade privada. Constitui-se na transferência compulsória de um bem, da esfera patrimonial do particular, para o domínio estatal, o qual poderá, ainda, em casos excepcionais, atribuí-lo a outrem. De qualquer sorte, sempre será o expropriado ressarcido pela privação patrimonial sofrida, mediante pagamento de indenização.

Por ser medida extremamente invasiva, a desapropriação só poderá ser utilizada pelo Poder Público em casos previamente definidos pelo legislador, os quais, no Brasil, enquadram-se nas hipóteses de necessidade ou utilidade públicas (Decreto-lei n.º 3365/41) e interesse social (Lei n.º 4.132/62) [24].

Assim, no dizer de Celso Antônio Bandeira de MELLO:

À luz do Direito Positivo brasileiro, desapropriação se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real. [25]

No âmbito da intervenção urbanística, a desapropriação também é essencial para a execução de políticas de desenvolvimento e ordenação urbana, além de ser importante instrumento no combate à retenção especulativa e ao déficit habitacional. Nessas hipóteses, é então denominada pela doutrina "desapropriação urbanística" ou "desapropriação para fins de reforma urbana".

No direito alienígena, principalmente em países como Espanha, Itália, França e Portugal, em que o direito urbanístico é bastante avançado em relação ao direito urbanístico pátrio, a desapropriação urbanística goza de regime jurídico próprio, diferenciado daquele adotado para os casos gerais.

Assim é que, na Espanha, por exemplo, a matéria é disciplinada pela Ley del Suelo a qual:

[...] acabó definitivamente com las pretensiones unificadoras del régimen expropriatório al insertar la expropiación como uma pieza más al servicio de um sistema inspirado em unos princípios propios, sustancialmente divergentes de los de la LEF que, desde esse momento, quedo relegada a um papel secundario, limitada a integrar las lagunas de la Ley urbanística en los casos concretos en que ésta le llamase en su auxilio. [26]

E o artigo 206 da LS espanhola estabelece os fundamentos de aplicação da expropriação no âmbito urbanístico:

Por incumplimiento de la función social de la propiedad, como sistema de ejecución del planeamiento, como medio para la ejecución de los sistemas generales y de las donaciones locales previstas en los planes o para la obtención anticipalda del suelo necesario para estos fines, como instrumento para la constitución o ampliación de patrimonios públicos de suelo y como mecanismo para la obtención de terrenos destinados en el planeamiento a la construcción de viviendas de protección oficial o a otros usos declarados expresamente de interés social. [27]

No direito brasileiro, consoante asseverado no item 3 deste trabalho, a produção e a sistematização legislativa em matéria urbanística ainda são muito recentes e incipientes, de modo que a desapropriação urbanística não apresenta caracteres individualizadores em relação à desapropriação comum, o que seria extremamente aconselhável, tendo em vista o escopo específico de sua intervenção na organização do espaço urbano. O Estatuto da Cidade é, sem dúvidas, um primeiro passo em direção a um regramento específico nesse sentido. Contudo, vale ressaltar que disciplina a matéria unicamente em um artigo e somente se refere à hipótese de descumprimento da função social da propriedade urbana, a qual, como ressaltado na LS espanhola, não constitui a única hipótese de desapropriação de imóveis urbanos.

Com efeito, no Brasil, a propriedade urbana pode ser objeto de desapropriação como qualquer outro bem de propriedade privada. No entanto, o nosso ordenamento jurídico constitucional prevê dois tipos de desapropriação para o imóvel urbano. Inicialmente, dispõe a Carta de 1988 acerca da desapropriação comum, como sendo aquela decorrente de necessidade ou utilidade pública ou interesse social e ressarcida mediante indenização prévia, justa e em dinheiro, prevista nos arts. 5.º, XXIV, e 182, § 3.º, ambos da Constituição Federal. A segunda hipótese constitucional diz respeito à denominada desapropriação-sanção, que "é aquela destinada a punir o não cumprimento de obrigação ou ônus urbanístico imposto ao proprietário de terrenos urbanos" [28]. Este caso tem caráter sancionatório porque, como penalidade pelo descumprimento de um dever urbanístico, o Poder Público desapropriará o imóvel remisso e impor-lhe-á o pagamento mediante títulos especiais da dívida pública resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas [29]. Tal modalidade de desapropriação urbanística está prevista no art. 182, § 4.º, III, do Texto Constitucional e no art. 8.º, da Lei n.º 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, e é o objeto do nosso estudo a partir deste momento.

4.1. Objeto.

Consoante se depreende da análise dos preceitos normativos constantes do art. 182, § 4.º, III, da CF/88, e do art. 8.º, do Estatuto da Cidade, a desapropriação aqui estudada e denominada pela doutrina "desapropriação para fins de reforma urbana", tem por objeto o solo urbano. No entanto, não é qualquer imóvel urbano que poderá ser objeto do procedimento expropriatório ali disciplinado. A esse respeito, oportuna a advertência de Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Faz-se preciso que se trate de imóvel inserido em área delimitada no plano diretor do respectivo Município. Alfim, terá que se referir a solo urbano que não esteja edificado, ou esteja subutilizado, ou não utilizado. Em suma, há que se cuidar de imóvel não adequadamente aproveitado. [30]

Destarte, como visto em linhas anteriores, essa hipótese de desapropriação constitui uma sanção imposta ao proprietário que, titular de imóvel situado em área urbana a que o plano diretor atribui certa obrigação, quedou-se inerte. O seu "fato gerador" consubstancia-se, desta forma, unicamente no descumprimento de dever ou ônus urbanístico. Não há, portanto, exclusão dos imóveis públicos pertencentes aos demais entes políticos, e pessoas administrativas, os quais, uma vez remissos em relação ao aproveitamento urbanístico e não afetados a uma finalidade pública, podem perfeitamente se sujeitar à desapropriação em comento [31].

4.2. Competência expropriatória.

Consoante enunciado no caput do art. 8.º, do Estatuto da Cidade, a competência para promoção dessa espécie expropriatória é atribuída ao Município. No entanto, tal competência não lhe é privativa, sendo certo que o Distrito Federal, por força do art. 32, § 1.º, da Constituição da República, detém as mesmas competências que são próprias do ente municipal.

Diógenes GASPARINI [32] ressalta que antes da edição do Estatuto da Cidade havia certa discussão doutrinária acerca da extensão ao Distrito Federal da competência em foco, informando que alguns autores, como Celso Ribeiro Bastos, entendiam que, não obstante o disposto no art. 32, § 1º, da Constituição, a competência era privativa do Município. Porém, o debate perdeu fundamento em face da prescrição do art. 51, da Lei n.º 10.527/2001, no sentido de se aplicar ao Distrito Federal as disposições legais referentes ao ente municipal.

Feita essa advertência inicial, é mister ressaltar, ainda, que a existência de competência privativa do Município e do Distrito Federal para a matéria não significa, conforme adverte Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR [33], que estejam a União e os Estados impedidos de expropriar imóveis urbanos por interesse social. Ao contrário, poderão fazê-lo. No entanto, se assim desejarem proceder, deverão obedecer às exigências do art. 5.º, XXIV, da CF/88, mediante pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro e se adaptando às hipóteses dos incisos I, IV a VIII, da Lei n.º 4.132/62.

Por outro lado, consoante ressaltado anteriormente, a desapropriação em foco não é o único meio de que dispõe o Município para expropriação de imóveis urbanos. Como bem salientado por José Afonso da SILVA [34], a desapropriação de tais bens pode ter por objetivo ainda a execução de planos de urbanização. Nesse caso, por não ter caráter sancionatório, o ressarcimento do proprietário é realizado mediante pagamento de indenização justa, prévia e em dinheiro e se fundamenta nos casos de utilidade ou necessidade pública ou interesse social, disciplinados, respectivamente, no Decreto-lei n.º 3.365/41 e na Lei n.º 4.132/62.

Ainda no tocante à competência municipal para proceder a desapropriação para fins de reforma urbana, é mister destacar a existência de certa discussão no âmbito doutrinário acerca da configuração ou não da discricionariedade da competência do ente municipal, ao qual seria atribuída a "faculdade" de, após o decurso da cobrança do IPTU progressivo por 5 anos, optar entre manter tal exação, nos termos do art. 7.º, § 2.º, ou efetivar a desapropriação. Há quem entenda que tal atribuição consistiria, em verdade, em um poder-dever do Município e não mera faculdade. Filiam-se à primeira posição Fernando Dias Menezes de ALMEIDA [35] e Clóvis BEZNOS [36], afirmando esse que o dispositivo mencionado "estabelece uma faculdade ao Município no que tange à desapropriação, vez que utiliza o termo ‘poderá’, e não ‘deverá’". E justifica-se:

Essa faculdade se explica, vez que os títulos que se constituem na moeda do pagamento da desapropriação dependem de prévia aprovação do Senado Federal, o que retira das mãos do Município a decisão plena sobre a efetivação das desapropriações.

Em sentido oposto, entendendo configurar verdadeiro dever, Maria Helena COSTA afirma:

Ademais, a dicção legal parece deixar transparecer que se trata de uma competência discricionária, cabendo ao Poder Executivo avaliar da conveniência e da oportunidade de efetivar-se tal desapropriação. No entanto, se assim se entender, ensejar-se-á ao Município adotar indefinidamente o IPTU progressivo, incorrendo na inconstitucionalidade apontada. Estamos, em verdade, diante de autêntico poder-dever, uma vez esgotados os instrumentos para a implementação da política urbana [...] [37].

Entendemos defensáveis ambas as posições. De fato, sendo necessária a prévia autorização do Senado Federal para emissão dos títulos ensejadores da desapropriação, o Município não poderia, a princípio, ficar obrigado a efetivar a expropriação se o Senado não conferir tal autorização. De seu turno, a cobrança indefinida do IPTU pela alíquota máxima de 15% parece mesmo deixar o caráter meramente sancionatório para adquirir feições nitidamente confiscatórias. No entanto, o mais coerente, supomos, ainda é esse segundo entendimento, desde que acrescido das ponderações de Clóvis BEZNOS. Ou seja, uma vez autorizada a emissão de títulos municipais pelo Senado, o Município tem o poder-dever de aplicar o art. 8.º, do Estatuto da Cidade.

4.3. Pressupostos.

A espécie expropriatória em comento não pode ser efetuada de forma aleatória pelo Município. Alguns pressupostos são exigidos pela doutrina como pré-requisitos para sua adoção. O primeiro deles, requisito constitucional, consistia na edição de lei federal disciplinadora da matéria. Esse requisito já foi atendido com a entrada em vigor da Lei n.º 10.527/2001, lei disciplinadora das diretrizes gerais sobre política urbana.

É imprescindível, também, a existência de um plano diretor, o qual, editado pelo Município nos termos da competência atribuída pela Lei Fundamental, deverá "peculiarizar as necessidades de urbanificação existentes em concreto, impondo-se maiores ou menores exigências, cujo descumprimento configura a subutilização ou não-utilização dos imóveis urbanos" [38]. A prévia existência de plano diretor é imprescindível para que o Poder Público municipal possa utilizar-se da desapropriação para reforma urbana, ainda que possua menos de vinte mil habitantes. É o que dispõe o art. 41, III do Estatuto da Cidade.

Alguns autores entendem ser necessária ainda a promulgação de uma lei municipal de caráter concreto, além do plano diretor, a qual determinará, conforme o caso, o parcelamento, a edificação ou a utilização de solo urbano subutilizado ou não utilizado [39]. Posicionando-se de forma diversa, há doutrinadores que entendem que tal delimitação pode ser realizada pelo próprio plano diretor [40].

Por fim, antes de viabilizar a desapropriação, é necessário o exaurimento de todas as medidas previstas como precedentes pelo diploma, consistentes na determinação de parcelamento, edificação ou utilização compulsórias e, sucessivamente, na imposição de IPTU progressivo no tempo por mais de 5 anos.

4.4. Indenização.

É pressuposto de qualquer hipótese de desapropriação, seja ela urbanística ou tradicional, o ressarcimento do expropriado, mediante pagamento de indenização. Conforme ressaltado anteriormente, a regra geral, contida no art. 5.º, XXIV, da Lei Maior, é de que essa desapropriação seja justa, prévia e paga em dinheiro.

Porém, quando se trata de desapropriação por descumprimento de função social, a chamada desapropriação-sanção, a indenização estará sujeita a peculiaridades, exatamente pelo caráter sancionatório ostentado. Assim é que alguns ordenamentos jurídicos, como o espanhol, optaram por conferir à indenização valor menor que o de mercado. Outros, como o português, no qual se espelhou o legislador pátrio nessa parte, a sanção consiste no pagamento mediante títulos especiais da dívida pública.

No Brasil, o Constituinte adotou a sistemática de pagamento integralmente realizado mediante títulos da dívida pública. Deste modo, acrescenta o § 1.º, do art. 8.º, do Estatuto, que tais títulos deverão ser previamente aprovados pelo Senado Federal e serão resgatáveis no prazo máximo de 10 (dez) anos, por meio de parcelas anuais e sucessivas, sendo-lhe assegurado o valor real.

Ademais, relativamente aos títulos emitidos para ressarcimento da desapropriação, dispõe ainda o § 3.º, do art. 8.º, que não terão eles poder liberatório para pagamento de tributos, ou seja, sendo os títulos emitidos para pagamento parcelado de indenização, aqueles ainda não vencidos não poderão ser utilizados para pagamento de tributos em atraso [41].

Por outro lado, o § 2.º do mesmo art. 8º, gerou certa peleja doutrinária, pois, ao invés de utilizar os termos "prévia e justa", consagrados para a desapropriação tradicional, referiu-se unicamente ao "valor real da indenização", o que levou alguns doutrinadores a supor que, para a desapropriação urbanística sancionatória, estariam afastados os requisitos de anterioridade e justiça da indenização.

Acerca da possibilidade de o pagamento da indenização não anteceder a perda da propriedade, a questão parece ser menos tormentosa de modo que, entendemos como o Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR, segundo o qual "na espécie em comento, não há garantia de que a indenização seja prévia. Poderá, portanto, o legislador estabelecer que a mutação dominial no registro imobiliário se dê antes de quitado o valor do ressarcimento devido ao proprietário" [42].

No que tange à justiça da indenização, durante certo tempo, havia doutrinadores que supunham estar afastada a exigência de indenização em valor justo por ter o Constituinte, bem como o legislador de 2001, utilizado a expressão "valor real". Entretanto, também essa discussão resta esvaziada de fundamentos. Em verdade, na atualidade, a maior parte dos autores perfilha-se no sentido inverso. Clóvis BEZNOS [43], por exemplo, conclui que "o desapropriado já é suficientemente sancionado pelo fato de não receber a indenização prévia e em dinheiro, mas sim em parcelas anuais, em até dez anos, em títulos que não se prestam sequer como meio de pagamento de tributos". Acrescenta que da desapropriação para fins de reforma agrária, que tem a mesma natureza sancionatória, não foi excluída a indenização em valor justo, não havendo, portanto, "razão jurídica para o discrímen em idêntica situação de descumprimento da função social da propriedade" [44].

No mesmo sentido posiciona-se Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR:

Daí decorre, portanto, que, na ponderação das vertentes exegéticas a disputar a primazia do significado do que se deva depreender por ‘valor real’, o primado tocará àquela que se incline pela justeza da indenização, até porque, em caso de suposta lacuna no texto do art. 182, § 4º, III, da Constituição Federal, a franquia da justa reparação ao expropriado há de ser inferida como direito fundamental implícito (art. 5º, § 2º, CF), resultante do regime e dos princípios inerentes ao estado Democrático de Direito. [45]

De qualquer sorte, ainda que não conste do texto legal expressa referência ao valor justo da indenização, somente aduzindo ao valor real, temos que os entender como sinônimos, sendo certo que, mesmo em se tratando de desapropriação-sanção, a indenização há de ser justa e corresponder ao valor integral do bem, pois o caráter sancionatório advém da própria privação da propriedade, como também do pagamento mediante títulos da dívida pública.

Uma vez concluindo que o "valor real da indenização" afina-se com o conceito de "justa indenização", parece-nos inconstitucional o dispositivo contido no art. 8.º, § 2º, I, do Estatuto da Cidade, segundo o qual "o valor da indenização refletirá a base de cálculo do IPTU [...]". Com efeito, nem sempre o valor da base de cálculo do IPTU traduz, com precisão, o valor de mercado de um bem, não havendo como atrelar-lhe a fixação da indenização, sob pena de não estar conferindo ao imóvel seu justo valor, quando o valor venal for superior àquele apurado para fins de cobrança da exação referida. Nesse sentido, bastante elucidativo é o posicionamento de Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR que, pugnando pela inconstitucionalidade do dispositivo supra referido, assim se manifesta:

Não teria visto maiores problemas se perfilhado o critério do valor de mercado, porquanto esse condiz com a perda a ser suportada pelo proprietário e, portanto, hábil para o fim a que busca a garantia da justa indenização. Contrariamente se tem quando eleito, como limite insuperável da compensação, um valor abstrato, muitas vezes distanciado, na prática, da avaliação atual do imóvel, como se tem com a escolha do valor venal do imóvel, constante nos cadastros municipais para fins de cobrança do IPTU, na maioria das vezes desatualizado e, até mesmo, irreal. [46]

Creio que o preceito em comento resulta de inspiração no modelo da Ley del Suelo espanhola, a qual, conforme consta de análise anterior, atrela o valor da indenização ao valor fiscal [47]. No entanto, repita-se, naquele ordenamento jurídico a indenização não há de corresponder a valor justo, o que não pode ser concebido no modelo pátrio [48].

O dispositivo do inciso I, do parágrafo segundo, em sua parte final, estabelece, ainda, que será descontado do montante indenizatório, o valor incorporado ao bem em razão de obras realizadas pelo Poder Público na área onde o mesmo se localiza. Comentando o preceito, Clóvis BEZNOS, suscita sua impropriedade, afirmando:

Com efeito, tal previsão nada mais configura que uma contribuição de melhoria; portanto, tributo que somente pode ser cobrado como tal mediante a edição de lei específica oriunda da pessoa política dele beneficiária, que obedeça a uma série de requisitos previstos nos arts. 81 e 82 do Código Tributário Nacional [49].

No entanto, o desconto constitui, em verdade, forma de o Poder Público ressarcir-se de dispêndios por ele realizado e geradores de valorização em imóvel cujo proprietário não está sequer cumprindo os ônus a ele incumbido. Portanto, adequa-se às diretrizes gerais de política urbana. Nesse sentido, posiciona-se Fernando Dias Menezes de ALMEIDA:

Não parece ser regra injusta ou violadora da isonomia.

Em primeiro lugar, o proprietário está sofrendo sanção por não fazer sua propriedade cumprir a função social. Aliás, ele estará plenamente ciente disso, por força da notificação. E vale sempre lembrar que todas essas sanções podem ser evitadas caso o proprietário cumpra em tempo sua obrigação.

Em segundo lugar, no mesmo período em que o município será beneficiado com a cobrança de IPTU sobre base de cálculo valorizada, o proprietário poderá ser beneficiado se vender um imóvel valorizado. [50]

O inciso II do mesmo § 2º, do art. 8.º, exclui ainda, do quantum indenizatório, os lucros cessantes e os juros compensatórios.

Acerca dos lucros cessantes, por certo que não há como serem eles incluídos, pois, se o proprietário está sendo penalizado exatamente por não estar conferindo ao seu imóvel o aproveitamento decorrente do cumprimento de sua função social, não há como se falar em lucros que poderiam ter sido obtidos não fosse a expropriação. Eis a posição majoritária entre os doutrinadores [51].

Questão mais tormentosa é a referente à incidência dos juros compensatórios. Segundo ensinamento de Celso Antônio Bandeira de MELLO [52], juros compensatórios são devidos ao expropriado como compensação pela perda da posse. Têm, então, o objetivo de compensar a perda da renda que poderia ter auferido o proprietário e que não o fez em razão da privação ab initio da posse do bem.

Embora alguns autores entendam que a "imissão antecipada na posse, anterior à efetivação da desapropriação, que implique sua perda antecipada haverá de ser compensada pelo pagamento de juros compensatórios" [53], suscitando a inconstitucionalidade do dispositivo referido, parece-me mais acertada a posição daqueles que entendem sua exclusão condizente com o regime da desapropriação-sanção. De fato, se o imóvel não estava sendo utilizado ou o uso que lhe era atribuído contrariava o plano diretor, não há como suscitar a existência de renda a ser compensada. Nesses termos, elucidativa é a lição de Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR, que ressalta:

Assim, considerando-se que, na expropriação para reforma urbana, a despeito de sua indenização encontrar-se jungida ao imperativo de justeza, não se impõe seja prévia, razão pela qual o seu não pagamento integral, quando da imissão na posse, não enseja compensação em prol do proprietário. [54]

Assim, somente serão devidos ao expropriado os juros legais de 6% ao ano para atualização do valor dos títulos, e os juros moratórios, também de 6% ao ano, nos termos da Súmula n.º 70 do STJ e incidentes, desde o trânsito em julgado, sobre a diferença obtida entre o valor da indenização e aquele ofertado.

4.5. Destinação do bem expropriado.

A questão referente à destinação deferida ao bem após a efetivação da retirada compulsória do imóvel do patrimônio do ex-proprietário, é disciplinada pelo Estatuto da Cidade nos §§ 4.º a 6.º, do art. 8.º. Nessa matéria transparece uma das várias particularidades da desapropriação para reforma urbana em relação à desapropriação tradicional. É que nestas, via de regra, o bem passa a integrar o patrimônio do ente expropriante, enquanto que naquelas, embora o imóvel possa permanecer em poder do Município que o utilizará de acordo com sua função social, a regra geral é que haja uma transferência a terceiros, aos quais será atribuída a obrigação urbanística.

Destarte, o § 4.º do dispositivo mencionado determina que o Município terá o prazo de 5 (cinco) anos para proceder ao adequado aproveitamento do imóvel, prazo a ser contado a partir de sua incorporação ao patrimônio público. E o § 5.º, por seu turno, dispondo acerca das formas de aproveitamento do bem, faculta ao ente municipal procedê-lo diretamente, ou por meio de alienação ou concessão a terceiros, obedecendo-se, nesse caso, ao respectivo procedimento licitatório.

Do cotejo desses dispositivos extrai-se que, após a efetivação da desapropriação, o Município tem um prazo para dar ao bem a destinação que lhe impõe o plano diretor e da qual o ex-proprietário estava remisso, ou seja, para efetuar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios. Poderá ainda o Poder Público optar por transferi-lo a terceiros. De qualquer sorte, não efetuando o adequado aproveitamento dentro do prazo estipulado, o próprio Estatuto da Cidade impõe ao administrador municipal as penas da improbidade administrativa, conforme preceituado no art. 52, II.

O preceito do referido §5º é, sem dúvidas, importante instrumento para a moralidade do procedimento expropriatório e para o desenvolvimento da ordenação urbana, pois fixa ao Município prazo para realizar o aproveitamento cuja omissão, por parte do expropriado, deu ensejo à desapropriação. Exaltando sua importância, Fernando Dias Menezes de ALMEIDA afirma que "seria inadmissível que o imóvel fosse retirado forçosamente do proprietário, em virtude do descumprimento da função social da propriedade, e que tal função social continuasse não sendo atendida estando o imóvel sob o domínio municipal" [55].

Por seu turno, adquirindo o imóvel por alienação ou concessão, o beneficiário passará a ser o responsável pelo cumprimento daquelas obrigações impostas ao bem no plano diretor e constantes do art. 5.º do Estatuto.

Não fixa a lei, como fez em relação ao aproveitamento direto pelo Município, prazo para o cumprimento das obrigações que lhe assistem. Nesse aspecto, conforme advertem Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR [56] e Clóvis BEZNOS [57], caberá ao Poder Público estipular um prazo no próprio edital licitatório e no contrato aquisitivo ou de concessão, que constitua verdadeira condição resolutiva. Desta forma, não cumprido o prazo, o bem retornaria imediatamente ao Município, sem necessidade de obediência dos prazos dos arts. 5.º e 6.º. Não constando, porém, do ato tal condição, não restará outra alternativa ao Poder Municipal senão aguardar o decurso de um ano para apresentação de projeto, outro, para início das obras e, posteriormente, a aplicação por cinco anos do IPTU progressivo.

Por fim, ainda no que se refere à destinação do bem expropriado, importante discussão doutrinária tem sido travada em torno da possibilidade ou não de vislumbrar nesses casos de desapropriação para reforma urbana, o instituto da retrocessão. Este, consoante ensinamento do professor Celso Antônio Bandeira de MELLO, "em sentido técnico próprio, é um direito real, o do ex-proprietário de reaver o bem expropriado, mas não preposto a finalidade pública" [58].

No caso de desapropriação para reforma urbana, poderíamos vislumbrar hipótese de retrocessão para o caso de o Município, assumindo a obrigação de proceder diretamente o aproveitamento do imóvel expropriado, não a cumpra dentro do prazo fixado pelo art. 8.º, § 4.º, do Estatuto. Seria então o caso de conferir ao ex-proprietário o direito de preferência para aquisição de tal bem, pois, consoante ensina Fernando Dias Menezes de ALMEIDA:

Ainda que se trate de desapropriação-sanção, não há porque se concluir de modo diverso: se tanto o antigo proprietário (expropriado) quanto o Poder Público expropriante descumprem a obrigação, é preferível que o imóvel retorne ao expropriado, em respeito ao direito constitucional de propriedade. [59]

Acerca da retrocessão na desapropriação em foco, duas questões devem ainda ser discutidas. A primeira é levantada por Edílson Pereira NOBRE JÚNIOR e diz respeito à possibilidade de exercer o ex-proprietário a retrocessão nos casos em que o Município, ao invés de cumprir diretamente as obrigações decorrentes da função social, atribui tal encargo ao terceiro, o qual mantém-se inerte. Segundo aquele professor, a inadmissão da retrocessão nesses casos poderia configurar desvio de finalidade. São suas palavras:

No particular da transferência do imóvel a terceiro, poder-se-á, caso o Município não atue com o cuidado necessário, inerente à fiscalização do adequado aproveitamento do bem, restar caracterizado, no mundo fático, desvio de finalidade, em virtude da indevida permanência do bem com aquele. É que se terá, sem causa jurídica, expropriação em benefício de interesse privado [...]. [60]

Com efeito, a retrocessão nesse caso também se impõe em vista da moralidade administrativa e do respeito à proteção constitucional da propriedade privada. No entanto, somente mediante análise do caso concreto, será adequado falar de sua real utilidade, não obstante, repita-se, seja a providência mais justa.

Uma segunda questão cuja discussão ainda não foi solvida, refere-se à hipótese de o Poder Público Municipal, expropriando um imóvel por descumprimento da obrigação de adequação à função social imposta no plano diretor, ao final do prazo de 5 anos (art. 8º, § 4º do Estatuto), não lhe dá a destinação determinada pelo planejamento urbano, mas, confere-lhe destinação também de interesse social ou utilidade pública (como nos demais casos de desapropriação urbanística contidos no Decreto-lei n.º 3.365/41 e na Lei n.º 4.132/62). Entendemos que, também nesse caso, teria o expropriado direito de retrocessão.

Com relação à desapropriação tradicional, a doutrina nacional e estrangeira costuma entender que, sendo conferido ao bem expropriado destino que atenda ao interesse público, ainda que diverso daquele para o qual o imóvel foi expropriado, não há direito de retrocessão [61]. No entanto, em se tratando de desapropriação para reforma urbana essa orientação merece ser vista com certa reserva, pois, como se sabe, nas outras modalidades de desapropriação urbanística, o pagamento da indenização é efetuado em dinheiro e não em títulos da dívida pública e uma alteração de destinação como a aqui aventada, pode estar encobrindo uma tentativa do Poder Público municipal de eximir-se do pagamento em dinheiro e protelar o ressarcimento do expropriado, mediante emissão de títulos públicos.

4.6. Procedimento expropriatório.

Conforme ressaltado no item 5.1., a desapropriação urbanística ainda não possui um regramento específico, como em outros países. Desse modo, somente dispomos do art. 8.º do Estatuto da Cidade o qual, no entanto, ainda carece de maior regulamentação. Falta, por exemplo, norma disciplinando o procedimento judicial a ser adotado pelo ente municipal para implementação da expropriação em caso de discordância do expropriado com o valor ofertado.

Nesse diapasão, o mais coerente é, sem dúvidas, a utilização da Lei Geral de Desapropriações, o Decreto-lei n.º 3.365/41, por regular procedimento mais assemelhado ao da desapropriação para fins de reforma urbana [62].

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Maria Carolina Scheidgger Neves

pós-graduanda em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco–UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Maria Carolina Scheidgger. Desapropriação para fins de reforma urbana e o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 284, 17 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5084. Acesso em: 27 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos