3.A aplicação das normas da sociedade simples e da lei da sociedade anônima à sociedade limitada
O novo Código Civil possui 35 artigos (arts. 1052 a 1087) para tratar especificamente da sociedade limitada. Esses dispositivos abrangem a responsabilidade dos sócios, constituição e divisão do capital social, cessão de quotas, consequências para o sócio remisso, administração da sociedade, conselho fiscal, deliberações dos sócios, assembléias e reuniões de sócios, quóruns para a validade de algumas deliberações, hipóteses para o aumento e redução do capital social, expulsão de sócio por justa causa e a aplicação das normas da sociedade simples para a dissolução da sociedade limitada.
No caso de omissão dos dispositivos específicos do capítulo destinado à sociedade limitada, aplicam-se as normas da sociedade simples previstas no novo Código Civil (arts. 997 a 1038) ou da lei da sociedade anônima (Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976). A aplicação de um ou outro diploma legal depende da vontade dos sócios, que podem prever no contrato social a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, conforme assegura o parágrafo único do art. 1053. Assim, se o assunto não está disciplinado no capítulo referente à sociedade limitada e não foi previsto pelos sócios no contrato social, serão aplicadas para discipliná-lo as normas da sociedade simples previstas no novo Código Civil (arts. 997 a 1038) ou da lei da sociedade anônima, segundo a vontade dos sócios.
Deve-se destacar que o parágrafo único do art. 1053, prevendo a possibilidade da regência supletiva pela lei da sociedade anônima foi introduzida ela ER n° 418-R do Senado (OLIVEIRA, 1998, 184), o que permitiu uma saída para os sócios se livrarem da aplicação supletiva das normas da sociedade simples. Diante da opção oferecida, a escolha mostra-se fundamental diante das diferenças existentes, mostrando-se, a princípio, mais adequado que as omissões do capítulo próprio das sociedades limitadas sejam supridas pela lei das sociedades anônimas do que pelas normas das sociedades simples.
Esse posicionamento justifica-se pelo fato das sociedades limitadas possuírem mais pontos de afinidade com as sociedades anônimas do que com as sociedades simples. Vários institutos e estruturas aparecem igualmente nas limitadas e nas anônimas, como por exemplo, a assembléia de sócios e o conselho fiscal. A sociedade simples não apresenta natureza empresarial e embora tenha natureza contratual, a responsabilidade dos sócios é ilimitada, ensejando críticas a colocação de suas normas para regerem supletivamente e, em alguns casos, diretamente, a sociedade limitada, que tem o seu ato constitutivo arquivado no Registro Público de Empresas, a cargo das juntas comerciais, ao passo que a sociedade simples tem o ato constitutivo registrado no Cartório de Registro Civil de Pessoa Jurídica (arts. 985 e 1.150, Código Civil de 2002).
Escolhida no contrato social a lei da sociedade anônima para disciplinar a sociedade limitada nos assuntos não regulados pelo capítulo próprio do Código Civil, deve-se ressaltar que a aplicação de suas normas sujeita-se a duas condições: omissão do contrato social e contratualidade da matéria. Segundo Fábio Ulhoa Coelho (COELHO, 2002, 185) essas condições são dependentes, ou seja, não se aplicam às sociedades limitadas as disposições da Lei n° 6.404/1976 nos assuntos sobre os quais os sócios contrataram e naqueles sobre os quais não podem contratar. Se o tema não é tratado no contrato social por não ser objeto de contratação, a legislação da sociedade anônima não é aplicável às limitadas.
No desenvolvimento da atividade econômica por meio de uma sociedade limitada surgem várias questões que não estão tratadas no seu capítulo específico do Código Civil de 2002. Muitas vezes, temas societários relevantes são tratados de forma diferente pelas normas da sociedade simples e pela lei da sociedade anônima, gerando efeitos distintos aos sócios da sociedade limitada de acordo com a opção realizada. Assim ocorre no caso sobre a destinação de resultados, ou seja, em relação à distribuição dos lucros aos sócios e no caso de empate na votação de sócios.
Diante da natureza contratual quanto ao ato constitutivo, a sociedade limitada não é regulada pela lei da sociedade anônima em dois temas: constituição e dissolução. A própria natureza do ato constitutivo dessas espécies societárias justificam o tratamento específico e diferenciado, já que as sociedades limitadas são contratuais e as anônimas são institucionais. No caso de constituição da sociedade limitada, a sua dissolução ou resolução do contrato social em relação a um sócio, aplicam-se as normas do Código Civil.
4. As novas regras para a validade das deliberações sociais na sociedade limitada
Entre os direitos dos sócios, destaca-se o de participar nas deliberações sociais, cuja extensão é proporcional à quota do sócio no capital social: o sócio que investiu mais na sociedade tem a maior parte do capital social e também maior poder para fazer prevalecer a sua vontade nas deliberações sociais. Em regra, o sócio que possui uma pequena parte do capital social, embora tenha o direito de participar nas deliberações sociais, acompanhando as decisões mais importantes da vida da sociedade, muitas vezes não tem o poder de fazer prevalecer a sua posição diante do sócio ou sócios que detenham a maior parte do capital social.
O Código Civil de 2002 apresenta importantes inovações em relação as deliberações sociais na sociedade limitada, instituindo formalidades e quóruns até então inexistentes. As exigências legais são previstas para as deliberações consideradas de maior importância pelos efeitos gerados aos direitos dos sócios e de terceiros. Estão previstas no art. 1071, abrangendo: modificação do contrato social; incorporação, fusão e dissolução de sociedade e fim do estado de liquidação; designação e destituição de administradores; remuneração dos administradores, quando não prevista no contrato; aprovação das contas da administração; pedido de concordata; nomeação e destituição de liquidantes e julgamento de suas contas.
Para a validade das deliberações do art. 1071 o Código Civil passou a exigir quorum de deliberação que varia de acordo com o tema. Os diferentes quóruns previstos são da unanimidade, ¾, 2/3, mais da metade do capital social (maioria absoluta) e maioria dos votos dos presentes no momento da deliberação na assembléia ou reunião (maioria simples). A unanimidade é exigida para designação de administrador não sócio, se o capital social não está totalmente integralizado (art. 1061), para a dissolução da sociedade contratada com tempo determinado (art. 1033,II) e para a transformação da sociedade (art. 1.114). O quorum de ¾ é necessário para aprovação de alteração do contrato social sobre cláusulas que a lei não prevê outro quorum e para incorporação, fusão, dissolução da sociedade por tempo indeterminado ou cessação do estado de liquidação (arts. 1071, V e VI, e 1076, I). Estão sujeitas ao quorum de 2/3 do capital social a destituição de administrador sócio nomeado no contrato social (se outro não estiver previsto nesse instrumento – art. 1063, §1°) e a designação de administrador não sócio, se totalmente integralizado o capital social (art. 1061). Exige quorum da maioria absoluta a designação de administrador sócio feita em ato separado (art. 1071, II e 1076, II), a destituição de administrador sócio ou não designado em ato separado do contrato social (arts. 1071, III e 1076, II), a remuneração dos administradores e o pedido de concordata (arts. 1071, IV e VIII, e 1076, II) e a expulsão extrajudicial de sócio por justa causa (art. 1085). Por fim, a deliberação se dá por maioria simples na aprovação das contas dos administradores, nomeação e destituição dos liquidantes e julgamento de suas contas e demais assuntos (arts. 1071, I, VII e 1076, III).
De acordo com o art. 1072 as deliberações elencadas no art. 1071 serão tomadas em reunião ou em assembléia de sócios. A deliberação em assembléia será obrigatória sempre que o número de sócios for superior a 10 (art. 1072, §1°). Quando o número de sócios for de até 10, os sócios podem prever no contrato social que as deliberações serão tomadas em reunião, devendo estabelecer para ela regras referentes à convocação, quórum de instalação e forma de registor dos trabalhos, já que se omisso o contrato social, aplicam-se às reuniões as regras previstas para a assembléia (art. 1071, §6°).
As formalidades exigidas para a assembléia abrangem a periodicidade, convocação, quorum de instalação, registro dos trabalhos em ata, assim como ao arquivamento desta na Junta Comercial no prazo de 20 dias. A assembléia de sócios deve realizar-se pelo menos uma vez ao ano, nos quatro meses seguintes ao término do exercício social, devendo a ordem do dia abranger a votação das contas dos administradores, a votação das demonstrações contábeis (balanço patrimonial e balanço de resultado econômico) e, se oportuno, a designação do administrador. Se existir, deve prever a eleição do conselho fiscal e a fixação da remuneração de seus membros. De acordo com o §3° do art. 1078, a aprovação, sem reserva, do balanço patrimonial e do de resultado econômico, salvo erro, dolo ou simulação, exonera de responsabilidade os membros da administração e, se houver, os do conselho fiscal.
A convocação da assembléia dos sócios é dever dos administradores, sempre que necessária a sua realização por disposição legal ou contratual. Possui também competência para expedir o ato convocatório: qualquer sócio, se os administradores, transcorridos mais de 60 dias, ainda não convocaram a assembléia prevista em lei ou contrato; sócio ou sócios titulares de mais de 1/5 (20%) do capital social, se os administradores, transcorridos, oito dias, não atenderam ao pedido de realizar a convocação por eles formulada com a devida fundamentação; o conselho fiscal, se houver, quando, transcorridos 30 dias do término do quarto mês seguinte ao fim do exercício social, os administradores não convocaram a assembléia ordinária ou se presentes motivos graves e urgentes (arts. 1073 e 1069, V).
Os anúncios de convocação da assembléia dos sócios devem ser publicados no Diário Oficial do Estado e em jornal de grande circulação da sede da sociedade. Serão três publicações de cada anúncio, devendo a primeira delas anteceder a realização da assembléia, em primeira convocação, no mínimo em 8 dias; para a segunda convocação o prazo mínimo da lei é de 5 dias (art. 1152, §3°). A publicação dos anúncios é dispensada se todos os sócios estão presentes à assembléia ou declararam por escrito estarem cientes do local, data, hora e ordem do dia (art. 1072, §2°).
O art. 1074 prevê que a primeira convocação da assembléia se instala com sócios titulares de, no mínimo, ¾ do capital social, em segunda, com qualquer número. Realizada a assembléia, cópia da ata autenticada pelos administradores ou pela mesa deverá ser levada a arquivamento na Junta Comercial no prazo de 20 dias (art. 1075, §2°). Existindo alteração do contrato social, também deverá ser encaminhado para o arquivamento na Junta Comercial o instrumento de alteração contratual. A ata da assembléia de sócios não precisa ser publicada, exceto se tiver deliberado sobre os seguintes assuntos: redução do capital social (art. 1084, §1°), dissolução da sociedade, incorporação, fusão ou cisão de sociedade.
Como se constata, o novo Código Civil trouxe maior complexidade para as deliberações sociais, que, entretanto, podem ser reduzidas pela previsão no contrato social da realização de reunião para as deliberações do art. 1071, já que a grande maioria das sociedades limitadas não são formadas por mais de 10 sócios, estando o número de sócios distante desse limite. Além disso, nem sempre as deliberações do art. 1071 exigirão a realização de assembléia ou de reunião, que poderão ser substituídas por um documento em que conste a decisão tomada e que seja assinado por todos os sócios, conforme previsto no §3° do art. 1072. Existindo consenso entre os sócios, um simples documento assinado por todos e arquivado na Junta Comercial, contendo o teor da deliberação, substitui a necessidade da burocrática assembléia ou reunião de sócio.
Conclusão
As inovações introduzidas pelo Código Civil de 2002 reduziu, em parte, a autonomia de vontade dos sócios na sociedade limitada. Acostumados com a ampla liberdade assegurada pelo antigo e lacunoso Dec. n° 3.708/1919 para as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, houve grande resistência às formalidades e limites impostos pela nova disciplina legal. A previsão de quóruns variados para a validade das deliberações mais importantes da sociedade limitada restringiu, de certa forma, o poder do sócio majoritário deliberar sozinho ou alterar o contrato social sem o consentimento dos demais sócios.
Antes do novo Código Civil, quem detivesse mais da metade do capital social, poderia alterar o contrato social de acordo com a sua exclusiva vontade, caso o ato constitutivo não apresentasse previsão de restrição para sua alteração pela vontade da maioria absoluta (art. 35, VI, Lei n° 8.934/1994). Essa possibilidade gerava, muitas vezes, prejuízos aos sócios minoritários, aos quais restava o direito de retirar-se da sociedade. Na vigência da nova lei, as cláusulas do contrato social para as quais não há previsão de outro quórum legal específico, conforme visto, depende da vontade de sócios que representem ¾ do capital social, exigindo que o sócio majoritário detenha mais do que a maioria absoluta do capital social para fazer prevalecer a sua vontade exclusiva.
Ao se analisar o novo tratamento legal atribuído à sociedade limitada percebe-se que houve uma aproximação desse tipo societário à sociedade anônima fechada. Justifica-se esse entendimento pela possibilidade da sociedade limitada ser administrada por quem não seja sócio, pela previsão legal específica de constituição facultativa do conselho fiscal, pela exigência da realização de reunião ou assembléia de sócios, previsão de quóruns para a validade de algumas deliberações sociais, elaboração de atas e o respectivo arquivamento na Junta Comercial, escrituração de livros referentes aos registros de atas das assembléias, atas e pareceres do conselho fiscal e da administração.
As novas exigências legais, se trouxeram maior complexidade e custos administrativos para a sociedade limitada, também proporcionaram maior transparência e profissionalismo à sua administração, buscando em alguns casos, trazer maior segurança aos sócios minoritários. Diante das alterações introduzidas, devem os sócios das sociedades limitadas constituídas adequarem o ato constitutivo à nova lei, possuindo o prazo de um ano para isso (art. 2031, Código Civil de 2002). Quanto aos empreendedores que planejam a exploração de atividade econômica por meio de uma sociedade empresária, a sociedade limitada deverá continuar sendo a preferida, diante da constituição simplificada e da limitação da responsabilidade dos sócios. Fatores referentes à escrituração, demonstrações contábeis e natureza contratual do ato constitutivo serão decisivos na preferência da sociedade limitada em relação à sociedade anônima fechada.
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