O valor jurídico do afeto

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Resumo:


  • O trabalho abordou a afetividade na relação entre pais e filhos, destacando sua importância para o desenvolvimento humano e como princípio jurídico implícito, fundamentado na dignidade da pessoa humana.

  • Discutiu-se a evolução histórica e legal do reconhecimento da afetividade nas famílias, culminando na Constituição de 1988, que promoveu a igualdade entre filhos e reconheceu a família além dos laços sanguíneos.

  • Foram analisadas as implicações legais e sociais da falta de afetividade, incluindo a possibilidade de responsabilização civil por abandono afetivo, destacando a necessidade de políticas públicas e reformas legais para proteger efetivamente os direitos das crianças e adolescentes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A afetividade, sob o prisma da dignidade da pessoa humana, na relação entre pais e filhos deve ser valor tutelado com a devida proteção do Estado?

Resumo: O presente trabalho tratou da afetividade, sob o prisma da dignidade da pessoa humana. No decorrer deste trabalho se abordou a questão do afeto na relação entre pais e filhos desde os primórdios, ou seja, passando pelo mundo antigo, período medieval, analisando a presença do Estado enquanto jurisdição, bem como o reconhecimento do filho no aspecto afetivo, advindo do matrimônio ou fora do matrimônio, e com isso veio a equiparação entre filhos. Foi analisada a evolução no direito de família, até chegar à contemporaneidade. A afetividade na família é compreendida na atualidade como espaço nuclear para o pleno desenvolvimento de seus membros. Com a evolução da sociedade também vieram as conquistas estampadas nas legislações para a disciplina da sociedade, e, neste prisma, a carta política Constitucional brasileira de 1988, a Constituição Cidadã, que abarcou com nobreza o princípio da dignidade da pessoa humana, com a finalidade de garantir os direitos fundamentais do homem, e, como isso o afeto foi elevado à condição de princípio jurídico, mesmo sendo implícito. Neste liame, as mudanças no âmbito da sociedade familiar fizeram com que a afetividade passasse a ser tutelada juridicamente, e com isso obrigou as políticas públicas a acompanharem esta evolução. Com as conquistas da Constituição Cidadã, veio a regulamentação do artigo 227 da CF/88, através da Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Este ano completou vinte anos de vigência deste diploma legal, que tem por escopo regulamentar as relações familiares entre pais e filhos, pelo princípio da igualdade entre homens e mulheres, a responsabilidade para com os filhos igualitária entre pai e mãe, sendo recíproca esta obrigação. Ao analisar o diploma legal, este trabalho observou a manifestação do Superior Tribunal de Justiça - STJ, que sinaliza a carência de reformas no ECA, e, o surgimento do projeto PL n. 700, de 2007, propondo reformas do ECA, apresentado pelo Senador Marcelo Crivella. O escopo do projeto é buscar a responsabilidade civil dos pais, que enseja o dever de indenizar o dano causado ao filho, pelo abandono afetivo.

Palavras-chave: Afetividade; Família; Princípios Constitucionais; Responsabilidade Civil.

Sumário: 1. Introdução. 2. História da Constituição Familiar e a Afetividade. 2.1. A afetividade na família dos povos antigos. 2.2. O afeto entre filhos legítimos e ilegítimos no mundo antigo. 2.3. O pater poder na Idade Medieval e a afetividade. 2.4. Afetividade na legislação brasileira antes da Constituição Federal de 1988. 3. O afeto como princípio. 3.1. O princípio normativo do afeto no texto constitucional. 3.2. O direito de família na Constituição Federal. 3.3. A afetividade como princípio no direito de família. 3.4. O afeto e o desenvolvimento do homem. 4. A afetividade como bem jurídico tutelado. 4.1. As políticas públicas de proteção a criança e ao adolescente. 4.2. ECA e a sua eficácia. 4.2.1. ECA e a afetividade familiar. 4.3. Uma análise do Projeto 700/2007. 4.4. Responsabilidade civil dos pais em indenizar a criança e o adolescente pelo abandono afetivo. Conclusão. Referências.


1. INTRODUÇÃO

A proposta do presente trabalho tem por escopo analisar a evolução da família, enquanto relação afetiva dos pais para com os filhos, bem como verificar a efetivação da legislação que dá tutela jurídica às crianças e aos adolescentes. Com isso, observar, ao longo dos períodos históricos da sociedade, a leitura que o direito fez em cada época. Percorrer a trajetória da família no mundo antigo, no período medieval, e, principalmente, destacando a relação afetiva entre pais e filhos, através do ordenamento jurídico de cada época.

Pretende-se, desta forma, estabelecer através da fundamentação teórica, doutrinária e o que se tem na tendência jurisprudencial, para consubstanciar os elementos que podem caracterizar a obrigação legal na afetividade como instituto jurídico no Direito de Família.

No primeiro capítulo, faz-se necessário abordar a afetividade nos povos antigos, conforme a convivência à época, e com isso sendo observado como as pessoas eram colocadas sob o poder pátrio ou manus de um chefe único, assim a família, compreendia o pater familias. Naquele período da história, ficou demonstrado que a Igreja tinha grande influência no Estado e conseqüentemente, nas leis.

Para compreender as mudanças ocorridas na família foi necessário contextualizar vários períodos históricos. Primeiro entender que o pátrio poder exercia o direito de vida e de morte da família, o que compreendia os filhos, a esposa, e também os que trabalhavam na propriedade do chefe da família.

Neste sentido, o afeto estava ausente no pátrio poder. A figura do pai era voltada para a mantença do patrimônio, e com isso os filhos que eram nascidos fora do casamento sofriam as mais diversas situações discriminatórias, que acabavam por gerar grandes desigualdades, como, por exemplo, somente os filhos oriundos das relações matrimoniais é que detinham a tutela jurídica, e com isso os demais, que eram chamados de filhos ilegítimos, ou até mesmo de bastardos, eram excluídos, e neste sentido de exclusão é que o ordenamento jurídico negava-lhes o direito de reconhecimento paterno.

A partir do século XX, observaram-se mudanças consideráveis, no sentido de valorização da dignidade da pessoa humana, em especial no Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu texto vários artigos que destacam os direitos fundamentais, estabelecendo o direito de igualdade, e separando também um capítulo para falar dos direitos da família, da criança e do adolescente, bem como do idoso.

No segundo capítulo, foram analisados os princípios constitucionais da família, buscando-se o princípio da afetividade, considerando que é entendido pela doutrina como um princípio implícito no princípio da dignidade da pessoa humana. Com isso, por não ter institutos jurídicos que atendam a complexidade do tema, é notório que estão se arrastando as discussões no meio doutrinário, e na jurisprudência.

Observou-se, também, a discussão social que acabou por promover tais mudanças na legislação brasileira, e com isso a reivindicação pelo reconhecimento do princípio da afetividade. Considerando que a afetividade está como um sustentáculo para o desenvolvimento do homem como gênero, buscou-se juridicamente a tutela deste direito, e neste sentido, depara-se com as mudanças de comportamento.

No terceiro capítulo, dentro de uma perspectiva constitucional, o reconhecimento do princípio da afetividade no ordenamento jurídico, considerando-se que é na base familiar que o homem, como gênero, desenvolve seus mais nobres valores. Com isso, tais valores fazem parte da vida, contando assim a sua própria história que vem contribuir para o seu desenvolvimento, bem como para a sua personalidade.

Como o dito popular, “há sempre uma luz no fim do túnel”, é com este sentimento que o Senador Marcelo Crivella, apresentou no congresso nacional o Projeto de Lei n. 700, de 2007, propondo a reforma da Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, em vigência. Ainda no terceiro capítulo, analisa-se este projeto, que vem corroborar com a referida lei já existente, no sentido de acrescentar e preencher lacunas que até então o legislador não havia tomado conta da grandeza desta necessidade de tutelar este bem jurídico, que faz falta para atender as crianças e aos adolescentes, quando tem por pais, homens e mulheres displicentes aos direitos garantidos constitucionalmente.


2. HISTÓRIA DA CONSTITUIÇÃO FAMILIAR E A AFETIVIDADE

Ao longo dos séculos, o ser humano passou por diversas transformações, tendo em si a evolução própria da espécie, ao contrário do animal que não tem evolução equiparada ao homem, e que conserva em si somente o instinto de sobrevivência. Contudo, essa evolução, de uma forma ou de outra, traz consigo o afeto familiar, pelos seus entes. Neste entendimento, Maria Berenice Dias (2009, 26) ensina que “Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana”, pois, historicamente, o homem primitivo não tinha muita diferença comportamental do animal, como a referida autora esclarece:

O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todas as pessoas têm à solidão. Tanto é assim que se considera natural a idéia de que a felicidade só pode ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade a qual o sujeito sozinho não tem acesso (DIAS, 2009, p. 27). (Grifos do autor).

No sentido de formação de família, em meio às diversas transformações, acaba-se por enfatizar o bem estar e ainda a busca da felicidade humana, e, com isto se entende o porquê da raça humana estar em constante mutação do conhecimento, ainda ensina Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que:

Não importa a posição que o individuo ocupa na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence – o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade (HIRONAKA, 2000, p. 8).

Com esse entendimento de constituição familiar, sendo algo de necessidade do ser humano, veja-se o entendimento conceitual de Maria Helena Diniz quando se busca a institucionalização no Direito:

Direito de família é o complexo de normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, a união estável, as relações entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e os institutos complementares da tutela e curatela (DINIZ, 2007. p. 7).

É com esse entendimento de família que se busca a proteção desta base para que possa dar continuidade na espécie humana, pois, para conceituar esse entendimento precisa-se, primeiro, buscar as transformações ocorridas neste núcleo de pessoas que convivem, é o que se espera e que seja de forma harmoniosa. Neste entendimento, Ivan Horcaio conceitua como sendo:

Reunião doméstica de pessoas, formada pelo casal, seus parentes e indivíduos que com eles vivam com ânimo de permanência. O conceito não se confunde com o enunciado pelo Direito Civil. Neste, predomina o aspecto da consangüinidade, decorrente de ascendente comum. No Direito Penal, ressalta-se o núcleo social, por isso, embora inexista o vínculo matrimonial, há proteção deste ramo no mundo jurídico, existindo infrações contra a família, apesar de mera sociedade de fato (HORCAIO, 2006. p. 417).

Nas mais diversas concepções, o que mais fica caracterizado na história é o patrimonialismo imposto pelo pátrio poder1, pois em períodos primitivos da história humana o pátrio poder estava acima de tudo, como destaca Pontes de Miranda:

Deve-se, porém, ter em vista a diversidade de fundamentos entre a pátria potestas dos Romanos, que tinha por efeito, quase exclusivamente, o interesse do chefe de família, e o pátrio poder qual o instituem as legislações modernas. Os Romanos davam ao pater famílias, por exemplo, o direito de matar o filho. Sob a República, tal poder ainda se exerceu, embora com moderação e mediante acordo com os parentes próximos e pessoas nobres, como os Senadores. Só no século II os poderes do chefe de família se limitaram a simples direito de correção, graças à influência da filosofia estóica (MIRANDA, 1947, p. 105).

Pelo que se observa no entendimento de Pontes de Miranda (1947, p. 106), o fator predominante, naquele período da história, era a produção e a reprodução da vida imediata. Com isto já se percebe a diversidade de conceitos e o primeiro que se apresente é o do Direito Romano, quando a família era usada em relação às coisas, para designar o conjunto do patrimônio ou a totalidade dos escravos pertencentes a um senhor. Outra vez, exprimia a reunião de pessoas colocadas sob o poder pátrio ou manus de um chefe único, a família compreendia o pater familias, que era o chefe, e os descendentes ou não, submetidos ao pátrio poder, e a esposa, por sua vez, estava em situação análoga à de um filho, por serem diferentes na relação e na função familiar, estando, porém, nivelados, tratada de forma igualitária.

2.1. A AFETIVIDADE NA FAMÍLIA DOS POVOS ANTIGOS

Quando se analisa a história antiga, encontram-se diversidades de entendimento quanto ao pátrio poder nos povos antigos. Para Pontes de Miranda:

Afirmava Gaio que em nenhum outro povo, salvo os Gálatas, o pátrio poder era tão bem organizado como em Roma; mas é certo, segundo informam outros, que os seus caracteres principais se encontram entre os Hebreus, os Persas, os Gauleses e outros povos (MIRANDA, 1947, p. 107).

No tocante a afetividade nos povos antigos, encontra-se na história Bíblica uma passagem em que, nas provas de fidelidade religiosa, ofertava o próprio filho. É o que relata o livro de Gênesis capítulo 22:

[...]

Então disse Deus: toma o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre um dos montes que te mostrei.

[...]

Ao terceiro dia levantou Abraão os olhos, e viu o lugar de longe. Disse Abraão a seus servos: ficai-vos aqui com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado voltaremos a vós. Tomou Abraão a lenha do holocausto e a pôs sobre Isaque, seu filho; e ele tomou o fogo e o cutelo na sua mão, e foram ambos juntos. Então disse Isaque a Abraão, seu pai: Meu pai! Perguntou-lhe Isaque: Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?

[...]

Chegaram ao lugar que Deus lhe dissera, e edificou Abraão ali o altar, e sobre ele pôs em ordem a lenha. Amarrou Isaque, seu filho, deitou-o sobre altar, em cima da lenha, e, estendendo a mão, pegou no cutelo para imolar o filho. Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde o céu, e disse: Abraão! Abraão, respondeu ele: Eis-me aqui. Então disse o anjo: Não estendas a tua mão sobre o rapaz, e não lhe faça nada. Agora sei que temes a Deus, pois não negaste o teu filho, o teu único filho (THOMPSON, 1993, p. 18).

Neste relato, observam-se duas situações. A primeira, Abraão impulsionado pelo desejo de demonstrar fidelidade na fé que ostentava, não mediu esforços, partiu logo para decisão motivada pela crença. Em um segundo momento, Abraão, ofereceu á vida do próprio filho, fazendo uso do pátrio poder, que à época da história lhe era conferido pelos costumes.

Como o escopo não é adentrar em assuntos religiosos, mas sim analisar o afeto na família no período do mundo antigo, na ótica da ciência jurídica, observa-se que o homem, em seu estado emocional, seja positivo ou negativo, sendo impulsionado pelo momento de transe, acaba por mistificar o seu desejo em detrimento a outro ser humano, como neste caso, foi ofertar à vida do próprio filho.

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No mundo antigo, o entendimento ao princípio da família, não estava somente no campo das gerações. O que é demonstrado pelos historiadores, casos em que as filhas não detinham o mesmo relacionamento que os filhos junto aos pais, o mesmo ocorria quando era necessária a emancipação, ou mesmo quando uma filha viesse a casar, perdiam o vínculo completamente com a família de origem. Estas situações tinham amparo nas leis gregas e romanas, conforme esta demonstrada no livro de Fustel de Coulanges, com isso alude autor que:

O princípio da família não é mais o afeto natural, porque o direito grego e o direito romano não dão importância alguma a esse sentimento. Ele pode existir no fundo dos corações, mas nada representa em direito. O pai pode amar a filha, mas não pode legar-lhe os bens. As leis da sucessão, isto é, as que entre todas as outras atestam mais fielmente as idéias que os homens tinham da família, estão em contradição flagrante, quer com a ordem de nascimento, quer com o afeto natural entre os membros de uma família (COULANGES, 2006).

Diante o que é observado pelo regime do pátrio poder, na família da antiguidade, a figura paterna, não tinha como escopo o afeto diretamente, desvinculado do sentimento intrínseco à família. Este poder estava no campo do patrimônio, do que não era mensurada a linhagem afetiva, como ensina Francesco Messineo (1948, p. 138-139). Conseqüentemente o pátrio poder, como já foi mencionado anteriormente, visava unicamente o controle do patrimônio, e o filho tinha por obrigação dar continuidade na administração dos bens, o autor ainda frisa que mesmo o filho adquirindo patrimônio próprio, esse deveria ser controlado pelo pai, veja-se o que o autor esclarece:

El progenitor que ejerce la pátria potestad tiene también el usufructo legal sobre los bienes del hijo (de cualquier manera que a él hayan llegado y salvo las excepciones de que se hablará más adelante), durante el ejercicio de La patria potestad; tal usufruto no podrá, pues, durar despues de La cesacion de La patria potestad; y puede cesar tambíen antes. La razón de ser del usufruto legal es de naturaleza patrimonial: es uma ayeda al projenitor, al cual incumbe La carga de los gatos de manutención y de educación del hijo, com independencia del hecho de que éste tenga um patrimônio próprio. Sin embargo, razones de naturaleza personal ( pasar el progenitor que ejerce la patria potestad a nuevas núpcias) prevalecen sobre la razon de ordem patrimonial y hacen cesar, aun antes del término normal, el usufructo legal,privando así, a aquel progeniotr de La ventaja patrimonial conexa (MESSINEO, 1948, p. 138-139).

Ainda na linhagem romana, esta era constituída sob o viés patriarcal. No olhar de comando, esta vivia em constância do pátrio poder, em outras palavras, somente o pater tinha o poder sobre tudo que a família detinha, inclusive dos filhos. Neste sentido o afeto vivia distanciado pela forma com que eram subjugados os filhos, os quais não eram distinguidos entre os demais moradores da casa ou da propriedade do pai, como ensina Virgílio de Sá Pereira:

Só ele é caput, só ele tem personalidade, só ele is que in domo dominium habet. Esta família, além do pater, se compõe da mulher, dos filhos e dos escravos. Estas pessoas, em face do pai, estão niveladas sob a mesma condição, todas são alieni juris, e todas igualmente submetidas à patria potestas. Mais tarde este poder se subdividiu e especializou, na patria potestas, propriamente dita, sobre a pessoa dos filhos, na manus ou poder marital, na dominica potesta, ou poder sobre os escravos, mas a sua unidade originária e bem visível (PEREIRA, 1959, p. 46).

Nesse mesmo entendimento, o afeto na família era mitigado em face aos costumes. Os filhos eram negociados como que se mercadorias fossem, os casamentos eram tratados, não existia o direito de escolha. Com isto as filhas eram dadas em casamento ora por dote, ora o noivo era obrigado a trabalhar para o sogro em troca do direito de contrair matrimônio com a moça. A exemplo disto tem-se no meio do povo hebreu, o ensejo de um enlace matrimonial em que o genro foi obrigado há trabalhar sete anos para receber a esposa. E como era o costume da época, não poderia casar a filha mais nova, sem que a filha mais velha já tivesse casada. Veja-se o relato no livro de Gênesis capítulo 29 e versículos seguintes:

[...] Assim que Labão ouviu as novas de Jacó, filho de sua Irmã, correu-lhe ao encontro, abraçou-o, beijou-o e o levou à sua casa. E Jacó contou a Labão todas essas coisas. Então Labão lhe disse: Verdadeiramente tu és meu osso e minha carne. E Jacó ficou com ele um mês inteiro. Depois perguntou Labão a Jacó: Por seres meu irmão hás de servir-me de graça? Declara-me, qual será o teu salário? Ora, Labão tinha duas filhas; o nome da mais velha era Lia, e o da mais moça, Raquel. Lia tinha olhos fracos, ao passo que Raquel era formosa de porte e de semblante. Jacó amava a Raquel, e disse: Sete anos te servirei por Raquel, tua filha mais moça. Respondeu Labão: Melhor é que eu a dê a ti, do que a outro. Fica comigo. Assim, serviu sete anos por amor a Raquel, mas esses lhe parecerem como poucos dias, pelo muito que a amava. Então Jacó disse a Labão: Dá-me minha mulher. O meu tempo já está cumprido, e eu quero tomá-la por mulher. Reuniu, pois, Labão a todos os homens daquele lugar, e fez um banquete. Mas chegada à tarde, ele tomou a Lia, sua filha, a trouxe a Jacó. E Jacó se deitou com ela. E Labão deu sua serva Zilpa por serva a Lia, sua filha. Quando amanheceu, eis que era Lia; pelo que perguntou Jacó a Labão: Que é isto que me fizeste? Não ter servi em troca de Raquel? Porque me enganaste? Respondeu Labão: não se faz assim em nossa terra; não se dá a mais nova antes da primogênita. Cumpra a semana desta; então te daremos também a outra, pelo trabalho de outros sete anos que ainda me serviras (THOMPSON, p. 26).

O pater poder esteve soberano na família do povo antigo, comandado com mão poderosa. Ao pater poder, ou seja, concedido ao pai o chefe da família, lhe era concedido por lei, vigente à época, o fazer e desfazer, da forma que bem entendia (PEREIRA, 1959, p. 47- 48).

2.2. O Afeto entre filhos legítimos e ilegítimos no mundo antigo

A manifestação do afeto no meio das famílias do povo antigo, já era vista com empecilhos devido às culturas, e quando se tratava de filho fora do casamento, a tendência era a ausência total da presença do afeto (LÔBO, 2008. p. 230. - 231).

Com a predominância do Estado teocrático, as famílias sofriam intervenções das culturas religiosas, no qual alegava-se que este filho estaria fora da proteção dos deuses. É o que ensina Caio Mário da Silva Pereira:

As civilizações antigas não aceitavam, em princípio, o reconhecimento da paternidade. O filho natural não podia ser legítimo no Direito grego. Predominando no Direito Romano a organização religiosa da família, não se podia admitir a atribuição de efeitos ao reconhecimento de paternidade, que era ali desconhecido segundo uns, embora fosse lícito efetuá-lo. O filho nascido de mulher que não tinha sido associada ao culto doméstico pela cerimônia do casamento não tinha o direito de participar dos sacrifícios e solenidade ante o altar dos deuses lares, e por ele a família não se perpetuava. Não havia o vínculo de parentesco – agnatio – entre o filho natural e o pai. [...]. Suas relações eram apenas com a mãe, pela lei natural, como se lê no fragmento de Ulpiano: “Lex naturae haec est, ut qui nascitur sine legitmo matrimonio matrem sequatur, nisi Lex specialis aliud inducit” (PEREIRA, 2009, p. 353).

Para Maria Berenice Dias, a existência de direitos, bem como o ato de dispensar o afeto, era mitigada em face dos costumes, contudo, a situação ficava mais complicada ao passo que, quando o filho era ilegítimo, nas palavras da autora:

O nascimento de filho fora do casamento colocava-o em uma situação marginalizada para garantir a paz social do lar formado pelo casamento do pai, fazendo prevalecer os interesses da instituição matrimônio. Negar a existência de prole ilegítima simplesmente beneficiava o genitor e prejudicava o filho. Ainda que tivesse sido o pai quem cometera o delito de adultério – que à época era crime – e infringindo o dever de fidelidade, o filho era o grande perdedor. Singelamente, a lei fazia de conta que ele não existia. Era punido pela postura do pai, que se safava dos ônus do poder familiar. E negar reconhecimento ao filho é excluir-lhe direitos, é punir quem não tem culpa. É brindar quem infringiu os ditames legais (DIAS, 2009, p. 322).

Arnaldo Medeiros da Fonseca (1947, p. 37-39), mesmo existindo diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos, observa que a Lei era omissa, no aspecto protetivo da criança, e, em face desta omissão, o pai, que tinha o poder de vida e de morte sobre os filhos legítimos, era nítida a ausência da afetividade. Com relação aos filhos ilegítimos, esta ausência era bem mais notada, ao ponto de ser chamado esse filho, como filho bastardo. O referido autor alude, ainda, sobre as legislações antigas que eram tratadas implicitamente e com descaso, fazendo diferença entre o filho legítimo do filho que na época era denominado como ilegítimo. Como que se já não bastasse à falta de afeto do pai para com filho legítimo, e ainda a negatório de paternidade para com o ilegítimo. Nas palavras de Arnaldo Medeiros da Fonseca:

Outros povos, porém, não toleram os filhos ilegítimos. Alguns matam-nos logo após o nascimento, conjuntamente, ou não, como a progenitora. Muitos consideram-nos escandalosos, sujeitam-nos a incapacidades, submetam-nos à escravidão ou a uma condição quase servil, criando uma condição jurídica inferior, sob diversos aspectos, notadamente quando se trata de filhos incestuosos ou adulterinos (FONSECA, 1947, p. 40).

Para Rolf Madaleno (2008, p. 433), nesse período antigo, mesmo com influências contrárias aos direitos dos filhos, no sentido de afetividade, considerando que para época não existia o princípio da afetividade, tanto explícito quanto implícito, mas, já se observava que as leis estavam tomando rumo de caráter evolucionista, galgando mudanças no cenário jurídico. Porém, ainda havia resquícios. O referido autor frisa que com o advento do “Chamado período cristão ocorre integral mudança, com relação do cristianismo contra as uniões sexuais fora do casamento, surgindo um quadro de filiação com diferentes intensidades”. Com isso, correram mudanças na lei substancialmente, mas o pater poder ainda gozava privilégios.

Com a chegada deste período chamado cristianismo, a legislação romana, que era copiada pelos outros povos, passou a sofrer mudanças, é o que entende Arnaldo Medeiros de Fonseca:

O cristianismo, triunfante afinal, veio contribuir para modificar profundamente a legislação romana. A sua influência reflete-se em inúmeras reformas que se foram operando de Constantino em diante. Manifestando-se em dois sentidos diversos as novas tendências: por um lado, humanamente, ampara-se o filho ilegítimo, atribuindo-lhe certos direitos em relação ao pai, quando possível determiná-lo; mas, por outro lado, a preocupação de prestigiar o casamento determina o estabelecimento de restrições e incapacidade, que aumentam quando há adultério ou incesto, acentuando-se, também, pelo lado materno, a distinção entre filhos legítimos e naturais. E como estímulo ao consórcio regular, surge e desenvolve-se a legitimação por subseqüente matrimônio (FONSECA, 1947, p. 51).

Este período da história antiga, no que tange a aplicabilidade da afetividade na família, comandada pelo pater poder, durou até as ordenações filipinas, conforme demonstra Pontes de Miranda:

O reconhecimento da filiação ilegítima é a fase de instituto jurídico originário de Roma: a legitimação per rescriptum principis. Chamou-se, depois nas Ordenações, até as Filipinas; perfilação de autoridade real, mais tarde, no direito brasileiro, perfilhação solene. No intervalo de 1890 a 1916, procuraram os juristas distinguir reconhecimento e perfilhação. No entanto, as diferenças, que se esboçavam, não permitiam considerarem-se separadamente os dois modos de prova de filiação ilegítima. Eram apenas indícios da transformação por que passava, ao contacto das formas modernas insertas nos Códigos, o velho instituto romano (MIRANDA, 1947. p. 75).

Em se tratando de mudanças nos costumes, e as transformações nas legislações, no entendimento de Paulo Lôbo (2008, p. 231), “Entre o interesse da chamada família legítima e o de ter pai, o direito optava por aquele, sacrificando o segundo”. Com isto, o filho legítimo não gozava de uma ampla afetividade, e quanto ao ilegítimo, este não tinha como recorrer ao direito, pois, como frisou o autor, o filho ilegítimo vivia sendo sacrificado em detrimento do pai.

2.3. O Pater Poder na idade medieval e a afetividade

No período medieval, o direito do filho, em relação à atenção afetiva dispensada pelo pai, não logrou muito êxito, pois, poucas foram às mudanças nessa questão, com influência da igreja, que tinha poder legislativo na época, o pater poder tinha absoluto comando da família, e com isto falar em afeto, era assunto que ficava longe dos olhos do legislativo. Para Marcos Alves da Silva (2002, p 25-28) O pater poder nos povos medievais, compreendidos nas legislações romanas e germânicas, era os que mais se destacavam em termos de legislação. Nesta concepção de direitos dos filhos, os povos germânicos tinham uma leitura diferente com os filhos, no aspecto de dispor de direitos, e o que se observa, era uma forma intrínseca de demonstrar afetividade.

Assim, Marcos Alves da Silva ressalta que:

O pátrio poder romano sobre os filhos adultos era incompatível com a organização alemã, pelo que jamais foi assimilado. Em lugar da emancipatio romana, prevaleceu a emancipatio saxônia, segundo a qual cessava o pátrio poder com o fim da menoridade, que se dava pelo processo de independência do filho, e a conseqüente separação do patrimônio. Assim o pater poder, no direito germânico apresentava as seguintes características que o diferenciavam do direito romano: a) a emancipação do filho com a maioridade; b) a atribuição do páter poder à mãe, em caráter subsidiário ou supletivo. Por outro lado, o mundium – poder paterno germânico – guardava muitas semelhanças com a patria potesta. O direito de expor os filhos existiu também entre os germânicos, mas desde que a criança ainda fosse de tenra idade. Entre os frísios, por exemplo, até o século VIII, o pai podia expor o filho, desde que o fizesse antes que a criança tivesse tocado a água do mar (SILVA, 2002, p. 29).

Em meio a tantas mudanças culturais dos povos, já no do contratualismo, século XVII e XVIII, como é observado na obra O Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil de Thomas Hobbes (1983. p. 121), em razão dos costumes dos povos antigos, e que tal situação estava colocando a família em degradação. O novo sistema de Estado, então como projeto a ser implantado nos países, deveria conter o que era demonstrado pelo sistema de pater poder, a violência, bem como da morte violenta.

Para Hobbes (1983, p. 122), o povo estando à submissão de um senhor, sendo este, o próprio Estado, estaria protegido os direitos, e com isto as vidas teria maior preservação em face às atrocidades cometidas pelos que se achavam no direito de tirar a vida dos outros, mesmo que este fosse dado por direito advindo dos costumes. Com esse entendimento Hobbes veio proclamar uma nova sistemática de analisar o direito alheio.

Ainda, na mesma conceituação, Hobbes mostrou como deveria ser esse domínio sobre os filhos:

Há duas formas de se adquirir o domínio. Ou este é adquirido por geração ou por conquista. Sendo que o que interessa é o primeiro, o direito de domínio por geração é aquela que o pai tem sobre seus filhos e chama-se paterno. Sendo assim coerente com a idéia de contrato, subjacente a toda reflexão, sustenta-se este domínio que o pai exerce sobre o filho, não sendo derivado de fato de tê-lo gerado, mas do consentimento do filho. Porque na condição de simples natureza, não existindo leis, é impossível saber quem é o pai (HOBBES, 1983, p. 123).

Com este entendimento, o pai passa a ter domínio pelo fato do direito paterno, concedido por lei, e não mais pelo pater poder, que era a forma patrimonialista de reger o destino da família.

Neste mesmo liame, John Locke (1983. p. 56) entende que deveria existir liberdade entre os homens, sendo que esta liberdade estava condicionada a lei, e que qualquer que fosse o terceiro, detinha este a mesma liberdade. Com isto, a idéia de pater poder nos povos antigos, em que o pai detinha o direito de vida e de morte sobre o filho, bem como, com todos os que residiam em sua propriedade, veio cair por terra. Para Locke (1983, p. 56), o escopo da lei era de garantir a liberdade da família, e com isto afirma “A liberdade não é como nos dizem: licença para qualquer um fazer o que bem lhe apraz – porquanto, quem estaria livre, se o capricho de qualquer outro pessoa pudesse dominá-lo?”.

Locke, ainda, sustentava que o pai tinha somente a responsabilidade de cuidar do filho, até que este viesse a ter condições de tomar conta de sua própria vida, assim entendia que este período em que o filho ainda não tinha esta capacidade para gerir sua própria vida, o pai deveria tratá-lo como filho, dando carinho e afeto:

Enquanto o filho se encontrar em um estado em que não tenha entendimento próprio para dirigir-lhe a vontade, não poderá ter qualquer vontade própria para seguir: quem por ele entende terá também de por ele querer; terá de prescrever-lhe a vontade e regular-lhe as ações; mas quando o filho atingir o estado que fez do pai um homem livre, também será livre (LOCKE, 1983. p. 57).

Conforme o que foi analisado, do que era no início do período medieval, até o seu final, houve grandes conquistas dos povos, sendo inconcebíveis as mais diversas atrocidades cometidas pelos pais, deixando de lado o sentimento paterno, e imperando o pater potestas, sendo esse poder de forma vitalícia, e com isso os filhos eram tolhidos de todos os atos próprios (SILVA, 2002, p. 38-41).

2.4. Afetividade na legislação brasileira antes da Constituição Federal de 1988

No Brasil, a afetividade, sofreu influência no período colonial, não detinha legislações próprias, o que determinava o direito a quem precisasse. Todas as condutas eram analisadas com base nas Ordenações Filipinas e Manoelina2. Estas Ordenações começaram a ser utilizadas no início no Brasil, sendo confirmadas por D. João IV, a partir de 1603. O ordenamento jurídico deste período foi praticamente todo compilado do direito romano, sendo assim mantido como subsidiário (FONSECA, 1947, p. 64-65).

Para Clóvis Beviláqua (1936, p. 10), a influência portuguesa no direito brasileiro, conseqüentemente com o viés no direito romano, era imperiosa, e mesmo com a proclamação da nossa independência, a lei de 23 de outubro de 1823 determinava que devesse “Vigorar, no Império, as Ordenações, Leis e decretos promulgados pelos reis de Portugal, até 25 de abril de 1821”.

Sob este entendimento, o Brasil tinha sua legislação praticamente toda voltada para o direito português, tanto que era conhecido como direito luso-brasileiro, ainda mais quando se tratava do pátrio poder, como afirma José Virgilio Castelo Branco Rocha (1960. p. 38. – 39), “Tivemos, assim, transplantado para o nosso país, o direito português, que entre nós continuou vigente depois mesmo de revogadas as Ordenações Filipinas”.

O referido autor, para melhores esclarecimentos acerca do pátrio poder, nos tempos pós-independência, ilustra:

São estas as características do pátrio poder, em nosso velho direito:

  1. – Só o pai exerce o pátrio poder, não competindo à mãe senão certos direito relativos à obediência Filial;

  2. – A maioridade termina aos 25 anos, mas não cessa com ela o pátrio poder, se o filho continua sob a dependência do pai;

  3. – O pátrio poder só diz respeito aos filhos legítimos e legitimados, não alcançando os naturais e espúrios;

  4. – Entretanto, pode o pai nomear tutor aos filhos naturais, que são chamados à sucessão, seu pai é peão;

  5. Educá-los e dar-lhes profissão, de acordo com sua condição e posse,

  6. Castigá-los moderadamente, e, se incorrigíveis, entregá-los aos magistrados de polícia para fazê-los recolher à cadeia por tempo razoável, obrigando-se a sustentá-los;

  7. Contratar em nome do filho impúbere, quando do contrato lhe pudesse vir proveito, e intervir com sua autoridade nos contratos do filho púbere (Rocha 1960. p. 40).

Como foi observada, com base na lei de 23 de outubro de 1823, a maioridade era adquirido após o filho completar 25 anos. Em 31 de outubro de 1831, Dom Pedro I, editou a resolução combinada com a Lei de 23 de outubro de 18233, onde ficou estabelecida em nosso país “a idade de 21 anos para o término da menoridade e aquisição da capacidade civil plena”, conforme ensina Clóvis Beviláqua (1943. p.11 -12).

Com o advento da primeira República Brasileira, chamada República Velha, proclamada em 15 de novembro de 1889, cessa o pátrio poder, na forma entendida pelo direito português e brasileiro, com o Decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890, e ainda concede a mulher o poder sobre o filho, que até então era exercido com exclusividade pelo pai (MIRANDA, 1947. p. 109. – 110).

Com este período vencido, o direito brasileiro começou a despontar com novos rumos para afastar gradativamente a influência das tradições romana e portuguesa, e como isso a mãe passa a figurar no cenário de cuidado em relação ao amparo jurídico dado ao filho (ROCHA, 1960, 41 – 42).

Com o advento da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, o Brasil inaugurava uma nova fase política, sendo que nesta Constituição foi estabelecido que fosse incluso as aspirações do provo brasileiro, contudo não foi exatamente o que aconteceu no direito de família. No entendimento de José Sebastião de Oliveira (2002, p. 33). “Essa constituição republicana também não trouxe um capítulo específico dedicado à família. Apenas tomou o cuidado de inserir no parágrafo quarto do artigo 72 (CF/1891) a afirmativa que”:

Art. 72. - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.

No período em que foi confeccionada a Constituição Federal de 1891, houve grande indignação por parte dos legisladores, que eram contrários a este posicionamento constitucional, naquele momento histórico, o direito de família não tinha lugar de destaque na Constituição, assim afirma José Sebastião de Oliveira:

É de se registrar que o legislador constituinte Pinheiro Guedes apresentou emenda que buscava caracterizar a família como base da sociedade e declarava competir ao Estado regular sua formação, porem sem sucesso (OLIVEIRA, 2002, 37).

A necessidade existente de proteção à família tomou novo rumo no cenário jurídico. Pois precisava fazer cristalizar a afetividade para com o filho, e com isso no advento do Código Civil de 1916, o Direito de Família, já começava a tomar lugar de destaque. Conforme o entendimento de Marcos Alves da Silva, afirma que:

A despeito de atribuir ao Código Civil brasileiro, de 1916, inclusive uma função pedagógica ou educativa, porque, em seu conjunto, colocou-se acima da realidade brasileira, incorporando ideais e aspirações da camada mais ilustrada da população, no que diz respeito ao direito de família. De outro lado, é certa, a codificação civil brasileira de 1916 tem no Código de Napoleão, de 1804, como codificações do século XIX, o seu mais significativo marco referencial. Sendo que a perpetuidade do pátrio poder e a autoridade despótica do pater famílias seriam inconciliáveis com os novos tempos, em que o indivíduo livre e autônomo se despontava como a abstração jurídica conformadora da noção de sujeito de direito (SILVA, 2002. p. 45).

Desta forma, ficou nítida a ausência do Estado em relação à dignidade da pessoa humana, para com o filho advindo de outra relação que não fosse à do casamento civil, contudo o Código Civil de 1916 disciplinou a filiação atrelando-a a única forma de constituição da família, ou seja, ao casamento. Com efeito, estabelece o art. 229. do CC que: "Criando a família legítima o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos". Conseqüentemente o referido Código deixa clara esta discriminação, como é observado nos artigos:

Capítulo III

Da Legitimação

Art. 352. Os filhos legítimos são, em tudo, equiparados aos legítimos.

Art. 353. A legitimação resulta do casamento dos pais, estado concebido, ou depois de havido o filho.

Art. 354. A legitimação dos filhos falecidos aproveita a seus descendentes.

Assim procedendo, estabeleceu discriminação entre os filhos havi­dos e os não-havidos da relação conjugal. Proibia-se o reconhecimento de filhos adulterinos (havidos à mar­gem do casamento e com infração ao dever de fidelidade) e incestuosos (concebidos entre parentes próximos), embora isso não ocorresse com os naturais (nascidos sem que os pais estivessem casados). Havia, como se nota, uma "classificação" que enquadrava os filhos nascidos fora do único padrão de família, ou seja, do casamento, conforme José Lamartine Corrêa de Oliveira (1990, p. 19). O autor ainda ensina que:

Tendo o patrimônio como centro de suas atenções - conseqüência dos valores liberais de que estavam impregnadas as disposições norma­tivas -, o Código Civil 1916 discriminava aqueles que não tinham o "privilé­gio" de se subsumir ao modelo legal, constituindo verdadeira "norma de exílio", que separava o filho advindo fora do casamento regularmente aceito pelo Código Civil (OLIVEIRA, 1990. p. 17. – 19).

Todas as demais Constituições, a partir de 1937, silenciaram a respeito da igualdade da filiação, o que legitimava a discriminação imposta pelo Código Civil de 1916, conforme observa Silvio Luís Ferreira da Rocha (2003, p.149-151). Como esclarece ainda que:

Antes, no entanto o Código Civil de 1916 estabelecia uma diferença entre filhos nascidos na constância do casamento, chamados de legítimos, e filhos nascidos de relações extramatrimoniais, designados ilegítimos. A ilegitimidade subclassificava-se em natural, quando não existia obstáculo ao casamento dos pais, subdividindo-se em filiação adulterina ou incestuosa, de acordo com o tipo de impedimento violado: adultério ou incesto. A expuriedade significava a impossibilidade do reconhecimento da paternidade ou maternidade dos filhos (ROCHA, 2003. p. 151).

Para Marcos Alves da Silva (2002, 48-49), o legislador contribuiu, e muito, para ausência do pai em relação aos filhos, tão logo aqueles filhos chamados pela lei de ilegítimos não era integrados à família, e, também, não eram alcançados pelo poder familiar. Com isto, o autor afirma que:

A bastardia do direito canônico, transvestida de ilegitimidade no âmbito do direito civil, durante largos anos, constituiu impedimentos à formação dos laços de autoridade parental entre pais e filhos considerados espúrio (SILVA, 2002, p. 50).

Neste mesmo liame, Caio Mario Pereira (2009, p. 353) entende que a falta de afetividade dos pais para com os filhos havidos fora do casamento, era concedida pelo Estado, concedida pelo legislador, ainda ensina que:

O direito tem, contudo, passado por enorme transformação a esse propósito. A idéia predominante é que a potestas deixou de ser prerrogativa do pai, para se afirmar como a fixação jurídica dos interesses do filho, visando protegê-lo e não beneficiar quem o exerce. “A doutrina, há muito, aconselhava a mudança de pátrio poder para pátrio dever” (PEREIRA, 2009. p. 353).

A evolução gradativa, como ensina Paulo Lobo (2008. p. 268. – 271), o constituinte pôs fim a uma das maiores heresias prestigiadas pelo Código Civil de 1916, ou seja, à "punição" dos filhos não havidos na cons­tância do casamento. Afastou-se, de vez, a diferenciação dos filhos através de expressões discriminatórias, como ilegítimo, adulterino, espúrio, incestuoso etc. Com o entendimento de necessidade social, o legislador poderá com institutos jurídicos de caráter punitivo, conscientizar o pai, que por qualquer motivo, tenha-se ausentado do filho.

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Sobre os autores
Pedro Batista Marques

- Advogado - Pós Graduado em Direito Civil e Processo Civil - Pós Graduado em Direito Penal e Processo Penal - Pós Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho - Pós Graduado em Direito Tributário

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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