Resumo: Sabe-se que um dos requisitos da sucessão consiste na sobrevida do herdeiro, sem a qual a herança não se transmite. Nesse sentido, questão de especial interesse surge para o direito quando não é possível aferir se um dos herdeiros estava vivo, no momento da morte do de cujus. Essa situação é bastante comum em acidentes ou desastres naturais, em que duas pessoas, herdeiras entre si, morrem, não sendo possível identificar qual delas faleceu primeiramente. Diante da dúvida acerca da ordem de falecimento, e, considerando que tal ordenação produz efeitos concretos sobre a sucessão dos bens dos falecidos, distintas soluções são propostas pelos ordenamentos jurídicos. No Brasil, adotou-se a presunção de comoriência, ou seja, da morte simultânea dos indivíduos nessas situações. Outras soluções jurídicas foram propostas, contudo, em diferentes ordenamentos jurídicos e momentos históricos O presente artigo visa avaliar as consequências da adoção das diversas soluções jurídicas existentes, a fim de verificar sua adequabilidade em face da Constituição Federal de 1988. Na primeira parte do artigo, é apresentado estudo histórico e de direito comparado, relativo às diferentes propostas de soluções jurídicas para as situações descritas. Em seguida, as distintas soluções foram aplicadas a casos concretos, a fim de visualizar as consequências por elas geradas, e as diferenças de resultados alcançados. Por fim, defende-se que as soluções jurídicas adotadas no common law apresentam-se mais adequadas do que as demais, principalmente em face do consagrado princípio constitucional da afetividade, da solidariedade familiar e do dever de mútua assistência.
Palavras-chave: Sucessões. Comoriência. Presunção. USDA. Cláusulas de sobrevivência.
1. INTRODUÇÃO
Como se sabe, a morte deflagra a abertura da sucessão dos bens do falecido, o que produz uma série de consequências jurídicas. Guerras, atentados, acidentes e desastres naturais - eventos que infelizmente, provocam a morte de várias pessoas na mesma ocasião - geram a abertura de várias sucessões. Quando, não raro, os falecidos são familiares, são produzidas séries entrelaçadas de consequências jurídicas no plano do direito sucessório. E a informação mais importante para desembaraçar o emaranhado de consequências gerado por tais eventos raramente está disponível: a ordem de falecimento.
Isso ocorre por duas características da sucessão, usualmente presentes em toda a história do Direito Sucessório. A primeira delas consiste na abertura da sucessão no exato momento da morte do de cujus. A segunda refere-se ao pressuposto de sobrevida do herdeiro, para que a herança seja a ele transmitida.
Devendo lidar com essas situações, diversos ordenamentos jurídicos previram diferentes soluções, as quais constituem objeto do presente artigo. Na primeira parte, são apresentadas as soluções históricas criadas para a hipótese em comento. Na segunda, as soluções são aplicadas a casos concretos, para visualização das consequências que elas ensejam. Na terceira parte, as soluções são comparadas e avaliadas, em face da Constituição Federal de 1988.
2. AS SOLUÇÕES EXISTENTES
As primeiras normas jurídicas que prescreviam soluções para casos de mortes de dois ou mais indivíduos, herdeiros entre si, na mesma ocasião, vem do Império Romano. Como afirma Gomes (2008, p. 15), “o Direito Romano estabelecera presunções de premoriência, baseadas na probabilidade de maior ou menor resistência vital”.
Bonsi Júnior (1966, p. 247) cita alguns exemplos, como a presunção de premoriência do ascendente em relação ao descendente, caso esse fosse púbere, ou a presunção de premoriência do descendente, caso esse fosse ainda impúbere. Essa regra, porém, não era válida caso o ascendente fosse “liberto”, isto é, ex-escravo. Nesse caso, valia a presunção de comoriência, a fim de proteger os interesses do ex-patrão, que se tornava herdeiro quando o liberto não deixava filhos.
O Código Napoleônico, à semelhança do Direito Romano, estabeleceu critérios de idade e, ainda, de gênero para presumir a premoriência de um dos falecidos. As normas, então dispostas nos artigos 720 a 722 do Código Civil Francês, preconizavam que, havendo dúvida sobre o momento da morte dos indivíduos, presumia-se a premoriência do mais idoso, ou, caso a diferença de idade entre eles não fosse superior a um ano, a premoriência da mulher (BONSI JÚNIOR, 1966, p. 248).
As presunções de premoriência, contudo, foram revogadas pela Lei nº 2001-1135, de 3 de dezembro de 2001, que inseriu o artigo 725-1 no Código Civil Francês. A nova norma dispõe que, caso não seja possível determinar a ordem de falecimento de duas pessoas, a sucessão dos bens de cada uma delas ocorrerá sem que outra, ainda que sua herdeira, seja chamada a suceder. Embora não haja referência expressa à presunção de comoriência, a solução jurídica adotada pela legislação francesa atual é a mesma: a não transmissão de bens entre indivíduos, herdeiros entre si, cuja ordem de falecimento não se pode determinar.
A presunção de comoriência é precisamente a solução jurídica adotada no Brasil, assim como na Alemanha, na Itália e em Portugal, quando não for possível precisar a ordem de falecimento dos indivíduos. A norma está prevista no artigo 8º do Código Civil Brasileiro, que determina que “se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”. No entanto, caso seja comprovado que um dos indivíduos sobreviveu ao outro por um segundo sequer, haverá transferência do patrimônio.
Nos Estados Unidos, o ordenamento jurídico privilegia a vontade dos falecidos, caso haja previsão testamentária acerca da destinação de sua propriedade em casos de impossibilidade de se precisar a ordem de falecimento dos indivíduos. Na inexistência de testamento, a regra geral adotada, até o início do século XX, era a presunção de comoriência, assim como no Brasil.
Verificando a parca ocorrência de previsões testamentárias para a situação, bem como a inexistência de evidências suficientes para determinar a ordem de falecimento nesses casos, alguns Estados americanos passaram a estabelecer, de forma independente, presunções de comoriência, assim como no Direito Romano.
Em 1940, porém, concluindo pela inadequação das presunções de premoriência, Estados americanos promulgaram o Uniform Simultaneous Death Act (USDA), que estabeleceu uma regra uniforme para essas situações nos Estados que o endossaram. De acordo com o Ato, se duas ou mais pessoas falecem em um intervalo de até 120 (cento e vinte) horas, presume-se a premoriência de cada uma delas em relação às demais. O efeito da norma é o mesmo da presunção de comoriência: não há sucessão entre os falecidos. O intervalo entre as mortes para produção desses efeitos, entretanto, foi dilatado para 120 horas.
Não obstante, o USDA contém uma cláusula de ineficácia da “regra das 120 horas”, no caso de sua aplicação conduzir, no caso concreto, à inexistência de herdeiros para o patrimônio. Nesse caso, a herança se transmitiria segundo a ordem de falecimento, independentemente do intervalo decorrido.
Outros países do common law não admitem a comoriência, como a Inglaterra, o País de Gales e a Austrália. Geralmente, esses ordenamentos prevêem que, na impossibilidade de se determinar a ordem de falecimento dos indivíduos, presume-se a premoriência da pessoa mais idosa. Entretanto, a norma pode ser afastada por disposição testamentária chamada survivorship clause (“cláusula de sobrevivência”, tradução do autor). Essa cláusula estabelece que, caso o herdeiro venha a falecer em até trinta dias da morte do de cujus, a herança não terá sido a ele transmitida. Alguns entes federados dos países citados editaram leis que positivaram a survivorship clause em seus ordenamentos, tornando sua aplicação cogente, mesmo em casos de inexistência de testamento. O efeito, novamente, é o mesmo da presunção de comoriência - não há transmissão de bens entre os falecidos -, mas o intervalo para sua produção, de trinta dias, é ainda mais dilatado do que nos Estados Unidos, de 120 horas.
3. AS SOLUÇÕES APLICADAS A CASOS CONCRETOS
As diferentes soluções para dirimir o estado de dúvida acerca da ordem de falecimento de indivíduos herdeiros entre si conduz a cenários sucessórios completamente distintos, afetando de maneira drástica a distribuição do patrimônio dos falecidos. Nessa etapa, serão apresentadas as discrepâncias de resultados, havidas pela aplicação das distintas soluções jurídicas criadas pelos diferentes ordenamentos jurídicos às mesmas situações concretas.
O primeiro caso advém de julgado do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se do Agravo em Recurso Especial nº 35.391, interposto por M.V.P.S., contra acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais que não reconheceu a incidência da presunção de comoriência, prevista no art. 8º do Código Civil, em relação ao falecimento de um casal em acidente automobilístico. A agravante, que era irmã do falecido, pretendia a reforma do acórdão regional, ao argumento de que não era possível estabelecer com precisão a ordem de falecimento dos indivíduos e que, portanto, deveria ser presumida a comoriência. Um trecho da decisão de negativa de seguimento ao recurso demonstra claramente o interesse da agravante em ver declarada a morte simultânea:
[...] Ab initio, veja-se que o interesse em estabelecer com precisão a precedência (ou não) da morte do irmão dos recorrentes relativamente a de sua esposa, está na relevante repercussão que tal fato causa na regulação do direito sucessório. Na realidade, os comorientes não herdam entre si, de modo que, nesta hipótese, cabe aos herdeiros individuais de cada falecido, na forma da lei de regência, o monte patrimonial deixado por cada qual. De modo diverso, havendo a prévia morte de um dos consortes, o seu patrimônio passa, ainda que momentaneamente, ao outro, o qual, uma vez falecido, deixa o referido acervo aos respectivos seus herdeiros. [...]
Nesse caso, o acórdão regional, mantido pelo STJ, concluiu que houvera premoriência do falecido irmão da agravante, J.V.P., em relação à sua esposa, E.S., por meros trinta minutos de diferença. A aplicação da norma brasileira, que só permite a presunção de premoriência caso não seja possível determinar a ordem de falecimento dos indivíduos, acarretou a transferência de todo o patrimônio do falecido à sua esposa e posteriormente, em decorrência da morte dessa última poucos minutos depois, aos herdeiros de E.S. A agravante e irmã do falecido, portanto, nada herdou.
As soluções adotadas no Direito Romano e na França, até 2001, provavelmente conduziriam ao mesmo resultado, pois a presença de provas da sobrevivência de E.S a J.V.P. impediria a aplicação das presunções de premoriência. No entanto, no direito francês, se o magistrado entendesse que inexistiam indícios suficientes para precisar a ordem de falecimento, presumir-se-ia a premoriência do indivíduo mais idoso, cujos herdeiros seriam prejudicados. E mais, se a diferença de idade do casal fosse inferior a um ano, seria presumida a premoriência da mulher, acarretando a destinação final da herança à irmã do falecido, M.V.P.S.
Entrementes, se fossem aplicadas as soluções jurídicas criadas pelo common law, o cenário sucessório seria totalmente distinto. Seja pela aplicação da “regra das 120 horas”, seja pela aplicação das survivorship clauses, não haveria, em hipótese alguma, transferência de patrimônio entre o casal, independentemente da existência ou inexistência de provas da sobrevivência de um indivíduo ao outro. O simples fato de o intervalo de tempo entre as mortes ser mínimo impediria a concretização da sucessão entre o casal, não importando que houvesse procas robustas de que um dos indivíduos faleceu primeiro.
Um caso semelhante foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Consistiu em apelação, interposta por B.L.F. e C.S.P., contra sentença que reconheceu a premoriência de M.C., filha dos apelantes, em face de L. e Lo., filhos de M.C., todos falecidos no mesmo acidente automobilístico. A sentença, que aplicou a norma brasileira, teve por efeito a transferência do patrimônio de M.C. para seus filhos, L. e Lo., e seguidamente, em face de seus falecimentos, para o pai das crianças e ex-cônjuge de M.C., P.E.R., de quem ela havia se separado apenas dez dias antes. Trecho do inteiro teor do acórdão do TJSP elucida bem a situação:
[...] O problema é de outra ordem, e diz respeito à genitora desses e ex-cônjuge do autor, M.C., de quem havia o demandante se separado dez dias antes do acidente: estabelecida a simultaneidade, não haveria transmissão hereditária de M.C. para os únicos filhos, apresentando-se então seus pais, aqui apelantes, como seus sucessores imediatos; em contrapartida, reconhecendo-se a precedência do falecimento da genitora em relação aos filhos, receberiam esses a totalidade dos bens de M.C., nesse caso com exclusão dos avós maternos -, transmitindo-os no momento subseqüente, com seu falecimento, ao ora apelado.
A disputa se põe portanto entre os pais de M.C. e os falecidos filhos dessa, L. e Lo., sendo nesse sentido inócua a consideração do vínculo hereditário entre as crianças falecidas e seu próprio genitor. O interesse do autor deriva, em suma, de sua condição de sucessor natural dos filhos, mas o cerne da discussão está na vocação hereditária quanto ao patrimônio da referida M.C., e não dos primeiros.
Como visto, o estabelecimento da presunção de comoriência, ou não, afeta completamente a destinação final da herança de M.C.: em caso positivo, herdariam seus pais, B.L.F. e C.S.P.; em caso negativo, herdaria seu ex-cônjuge e pai de seus filhos, P.E.R.
Assim como no exemplo anterior, suponha-se que o julgador entendesse que não havia provas suficientes para determinar a ordem de falecimento. Caso fossem aplicadas as soluções romana e francesa, seria presumida a premoriência dos filhos, se fossem impúberes ou tivessem menos de quinze anos, ou a premoriência da mãe, na hipótese contrária.
Novamente, as soluções jurídicas encampadas pelo common law não admitiriam a sucessão entre os falecidos, não importando qual dos indivíduos faleceu primeiro, tendo em vista que o intervalo de tempo entre suas mortes certamente foi inferior a 120 horas e, obviamente, a 30 dias.
4. ADEQUABILIDADE DAS SOLUÇÕES JURÍDICAS
Como visto, a aplicação das diferentes soluções jurídicas aos mesmos casos concretos pode conduzir a resultados completamente distintos. Nesta fase, as soluções são avaliadas e cotejadas, a fim de se perquirir sobre sua adequabilidade em face da Constituição Federal de 1988. Dois foram os principais parâmetros constitucionais utilizados com esse objetivo: o princípio da igualdade e o princípio da afetividade.
4.1. Princípio da Igualdade
Nesse contexto, chamam a atenção as soluções adotadas pelo Direito Romano e pelo Direito Francês (até 2001), por estabelecerem critérios de idade e gênero para presumirem a premoriência de um dos indivíduos. A presunção de comoriência e as soluções jurídicas adotadas pelo common law não estabelecem distinções dessa espécie, limitando-se a enunciar regras aplicáveis a todos os indivíduos, independentemente de suas características. A princípio, os critérios estabelecidos pelos ordenamentos jurídicos romano e francês parecem altamente discriminatórios e incompatíveis com o atual regime constitucional brasileiro.
Isso porque o princípio da igualdade encontra-se expressamente encartado na Constituição Federal, que em seu artigo 5º preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Outro exemplo é o inciso IV do art. 3º, que estatui como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Obviamente, o princípio da igualdade não impede o estabelecimento de qualquer espécie de distinção legal, mas apenas aquelas que não se coadunam com a finalidade específica da norma em questão, pautando-se tão somente em um critério discriminatório. Nesse sentido, leciona Alexandre de Moraes (2008, p. 235):
A desigualdade na lei produz-se quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal, quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.
Nesse contexto, deve-se questionar se as presunções de premoriência do Direito Romano e do Direito Francês possuem, ou não, justificativas objetivas e razoáveis. Gonçalves (apud ELEOTÉRIO, 2012) critica fortemente tais ordenamentos jurídicos, que, “baseados em fatores arbitrários, presumem que a mulher morre mais cedo que o homem, que o mais velho morre primeiro que o mais novo”. De fato, tais presunções parecem arbitrárias diante das hipóteses atuais de mortes na mesma ocasião. No entanto, é preciso considerar que essas normas surgiram em contextos históricos absolutamente distintos - épocas de grandes guerras e colonizações. Possivelmente fossem muitas vezes aplicadas a casos de mortes em batalhas, nas quais, segundo o senso comum da época, crianças, mulheres e idosos teriam menores chances de sobreviver por mais tempo.
A par dessas considerações, o fato é que tais critérios já não mais se justificam em face das hipóteses mais comuns de mortes na mesma ocasião, como acidentes de trânsito ou grandes tragédias naturais. Além disso, são evidentemente prejudiciais aos herdeiros de crianças, idosos e mulheres, uma vez que a sua premoriência implicaria a transferência de patrimônio ao falecido na mesma ocasião.
Dessa forma, uma vez que a presunção de premoriência com base em critérios de idade e gênero não apresenta respaldo científico ou justificativa razoável na atualidade, as soluções adotadas pelo Direito Romano e Francês são incompatíveis com a Constituição Federal.
4.2. Princípio da Afetividade
Ao enunciar, por meio do art. 5º, XXX, que “é garantido o direito de herança”, a Constituição Federal endossa o instituto, alçando-o à categoria de direito individual, insuscetível de abolição por força do art. 60, § 4º, IV, da Carta Magna. Nesse contexto, outro aspecto que deve ser levado em consideração é o desenvolvimento histórico do direito sucessório e, principalmente, o sentido atribuído à transmissão de bens após a morte hodiernamente.
Maria Berenice Dias (2008, p. 25) explica que a origem do direito sucessório remonta ao surgimento da propriedade privada e à consolidação da instituição familiar. Com efeito, não há sentido em se falar de sucessão na ausência do direito de propriedade, pois não haveria bens a serem transmitidos. Outrossim, a estruturação da sociedade em famílias, orientadas à sua auto-preservação, possibilitou, e até mesmo exigiu, o surgimento da sucessão, como forma de manutenção da unidade familiar ao longo do tempo.
O progresso do individualismo, porém, atenuou a o poder e a importância da unidade familiar. É a esse processo que a autora atribui a invenção romana do testamento, isto é, do “direito de dispor da própria fortuna por ato de última vontade” (2008, p. 25). A transmissão de bens causa mortis desvinculava-se, ainda que parcialmente, da ideia de preservação da família, aproximando-se da defesa da autonomia da vontade dos indivíduos e da livre disposição de seu patrimônio.
O desenvolvimento do direito sucessório, portanto, baseou-se na oposição de dois valores sociais: a preservação da família e a defesa da autonomia da vontade do indivíduo. Em alguns ordenamentos, o primeiro elemento é mais acentuado; em outros, o segundo é privilegiado. Seria possível dizer que a Constituição de 1988 deu preferência a um deles?
Defende-se que não. A Constituição assegura o direito de propriedade (art. 5º, XXII), e, com isso, a livre disposição dos bens pelo proprietário, desde que atendida a sua função social (art. 5º, XXIII). Isso significa que o constituinte salvaguardou a autonomia da vontade do indivíduo, no que diz respeito à livre disposição de seu patrimônio. Não obstante, o texto constitucional enuncia, em seu art. 226, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. A unidade familiar, contudo, teve seu sentido jurídico e social reformulado no decorrer do tempo, fundamentando-se, atualmente, sobre a afetividade. Daí a instituição da solidariedade familiar e do dever de mútua assistência, nos artigos 229 e 230.
Disso resulta a criação de uma dicotomia constitucional inerente ao direito sucessório brasileiro. A garantia do direito de herança, prevista no art. 5º, XXX, não se limita à completa autonomia da vontade do de cujus ou à preservação da família a qualquer custo, mas opera nos dois planos, buscando conciliar os valores. O direito de herança é tanto transmitir quanto adquirir. É livre disposição, mas também é dever de zelo pela família. No plano da legislação ordinária, a dicotomia constitucional foi viabilizada por meio por meio dos artigos 1.789 e 1.846 do Código Civil, que reservaram metade da herança aos desígnios do de cujus e, a outra metade, aos herdeiros necessários.
A afetividade, portanto, constitui um dos principais fundamentos do direito sucessório nos dias atuais. Segundo Maria Berenice Dias (2008, p. 32):
A Constituição Federal elevou a afetividade á categoria de direito constitucionalmente tutelado, ao afirmar que a família é a base da sociedade e merece especial proteção do Estado (CF 226). Ainda que a transmissão da herança se trate de direito individual, o que fundamenta o direito sucessório nos dias atuais é o afeto. A lei civil faz presumir esses laços de amor quando não são determinados por escolha em disposição de última vontade. Como tem por finalidade garantir a segurança familiar, o direito sucessório tem dimensão social. Assim, não só no âmbito da família, mas também quando se fala em direito sucessório, é impositivo invocar o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Conforme afirma Guilherme Calmon Nogueira da Gama, qualquer norma jurídica no direito das sucessões exige, com muito mais rigor do que em qualquer época anterior, a presença de fundamento de validade constitucional. O campo sucessório é terreno fecundo para o reconhecimento de garantias e direitos fundamentais..
Por constituir fundamento do direito sucessório e estar alinhada com o atual regime constitucional, a afetividade emerge como um critério determinante para averiguar a adequação das soluções jurídicas estudadas à Constituição Federal de 1988. Sustenta-se que as soluções jurídicas adotadas no common law se mostram sensivelmente mais adequadas do que a norma brasileira, principalmente em relação ao dever de mútua assistência, decorrente do princípio da afetividade e da solidariedade familiar.
Isso ocorre porque as situações de morte na mesma ocasião, ainda que não no mesmo instante, tornam inócua, do ponto de vista do dever de mútua assistência, a transmissão de bens entre os falecidos. Não há sentido na sucessão, pois o herdeiro não teve tempo hábil de usar e usufruir a herança, uma vez que faleceu pouco tempo depois do de cujus.
E é precisamente nessas situações que as soluções jurídicas adotadas no common law e no Brasil se distinguem: aquelas não admitem a sucessão entre indivíduos que faleceram dentro de um intervalo de tempo muito pequeno, não razoável para a finalidade da sucessão, ao passo que essa permite que os bens se transmitam tão somente pela comprovação de sobrevida do herdeiro, por um segundo que seja.
A diferença é claramente vista no caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que M.C. faleceu na mesma ocasião que seus filhos, mas poucos minutos antes deles. Aplicando-se a norma brasileira, sua herança transmitiu-se a seus filhos e, logo em seguida, a seu ex-cônjuge, por ser pai daqueles. Caso fossem aplicadas as soluções jurídicas do common law, não haveria transmissão da herança aos filhos e, com isso, os avós - ascendentes de M.C. - seriam os herdeiros legítimos. É evidente que o dever de mútua assistência de M.C. para com os pais é infinitamente superior do que para com seu ex-marido, aliás, inexistente.
Em termos abstratos, pode-se dizer que a norma brasileira permite que os bens do de cujus sejam destinados, em última instância, não a seus familiares mais próximos, mas aos familiares mais próximos do herdeiro falecido na mesma ocasião, cuja sobrevida tenha sido comprovada.
O dever de mútua assistência e, consequentemente, o princípio da afetividade seriam melhor satisfeitos se os herdeiros a quem a herança não pudesse aproveitar, por terem falecido pouco tempo depois do de cujus, fossem excluídos da linha sucessória (respeitado, evidentemente, o direito de representação na linha reta descendente). Por esse motivo, a “regra das 120 horas” e as survivorship clauses mostram-se soluções jurídicas para casos de mortes na mesma ocasião mais adequadas em face da Constituição Federal de 1988.
5. CONCLUSÃO
Elucidou-se, com o presente estudo, que as soluções jurídicas para casos de falecimentos na mesma ocasião devem se coadunar os princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Foi assim que se chegou à conclusão de que as presunções de premoriência instituídas no direito romano e francês (até 2001) não se mostram adequadas em face da atual ordem constitucional, por violarem diretamente o princípio da igualdade.
Constatou-se, ainda, que o regime jurídico constitucional do direito sucessório preconiza a aplicação de normas que contemplem tanto a livre disposição dos bens pela autonomia da vontade do de cujus, quanto a preservação da família, da afetividade, da solidariedade familiar e do dever de mútua assistência.
Nesse sentido, verificou-se que o princípio da afetividade seria satisfeito em maior grau, sem que isso significasse menor atribuição de peso à autonomia da vontade, se fossem adotadas as soluções jurídicas propostas pelo common law para lidar com casos de falecimentos na mesma ocasião.
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