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Estado funcionalista

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23/04/2004 às 00:00
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Pluralismo Jurídico

O Brasil não é justo? Direito não é Justiça? Como isto se relaciona com o pluralismo jurídico?

Tradicionalmente, define-se o chamado pluralismo jurídico (uma forma de análise crítica do Direito), como uma análise investigativa dos fatores externos à produção do Direito: aspectos econômicos, sociológicos, políticos, antropológicos. Pois, a produção do Direito tanto segue diretrizes e normas institucionais (processo legislativo estatal), quanto se intercomunica com as fontes sociais, plurais, globais, portanto, menos tradicionais do Direito.

Assim, têm-se no Direito um fenômeno de projeção social e não apenas estatal. Neste caso, o Direito é interpretado como constructo social ou parte do processo social e apenas subsidiariamente como artefato do aparelho estatal: "o Estado é parte integrante da sociedade, não é independente e nem está acima ou abaixo dela, pois não fica numa ilha isolada do Pacífico". Nesta concepção, privilegia-se mais a relação Estado/sociedade e menos a função legislativa do Estado: mais a demanda social e menos a vontade do Estado. Portanto, requer-se a justiça social (o Direito Justo), muitas vezes em detrimento do próprio ordenamento jurídico.

E o que se deve considerar no âmbito desse pluralismo jurídico?

Analisemos alguns poucos aspectos, como: 1) expressões da vida produtiva; 2) especificidades da formação sócio-cultural; 3) representações sociais e instituições; 4) modo de produção; 5) organização político-institucional, especialmente a estrutura do Estado; 6) processos ideológicos de dominação

E o que implica cada item? Vejamos uma breve sinopse:

1) deve-se considerar a produção da vida social e pessoal, por exemplo: os níveis de desemprego estrutural da sociedade ou o chamado subemprego, a economia informal ou, até, a evasão de divisas advindas da produção (ou corrupção);

2) por organização social deve-se ressaltar a análise da organização social, estabelecida no contexto da divisão em classes sociais e/ou em grupos de poder. No nosso caso, tome-se o "jeitinho brasileiro" (as tentativas de burlar o que é regular ou, simplesmente, corromper algumas estruturas morais e institucionais), o racismo, o elitismo, a miscigenação, o patriarcalismo ("Estado nominalmente liberal") e o "verde-amarelismo" (o patriotismo piegas que não vê falhas na formação cultural, acrítico: do tipo "Deus é brasileiro");

3) no Brasil, temos uma organização política basicamente liberal e nominal: limitando e restringindo a prática política popular e limitando-se à democracia política, aos direitos políticos, à democracia representativa. Mas, inversamente, não poderíamos ter avançado em direção à democracia social ou social-democracia? De qualquer modo, ainda se deve discutir a democracia econômica, a democracia ativa (plebiscitária, mas não limitada ao "direito de voto") e a democracia radical: a auto-organização social e popular como "um poder constituinte popular, ativo, permanente, inovador";

4) como se organiza o capitalismo no Brasil? Está integrado, globalizado, e sofre dos males da mundialização do capital especulativo. Porém, de modo periférico ao capitalismo, tem traços de relação feudal ("mandonismo") e escravidão;

5) como se organiza nossa "República Federativa": como Estado Unitário, teria menos problemas? Por que no Estado Democrático de Direito brasileiro (em Portugal é Estado de Direito Democrático) há tamanha centralização político-administrativa?

6) Nosso Direito está estruturado em bases ideológicas, a fim de manter a dominação de classe e a manutenção dos privilégios de grupos sociais e políticos dominantes e hegemônicos. Nosso liberalismo nominal, desde a Proclamação da República, vem alimentando o formalismo processual e limitando as ações do Estado às formalidades e garantias dos direitos individuais;

7) o "formalismo e o nominalismo jurídico" não permitem a concretização dos direitos sociais. Mas, por quê?


Direitos Sociais Fundamentais

Inicialmente, pode-se indagar se os direitos fundamentais são da ordem da natureza humana (Direito Natural) ou se, ao contrário, partem de um amplo constructo social, isto é, seriam construídos socialmente. Será que expressam só a vontade do Estado ou são clássicas conquistas populares e democráticas?

Os direitos fundamentais representam garantias populares resguardadas pela Vontade de Constituição (a reserva de justiça obtida por meio de um maior grau de constitucionalização do poder político) ou, contrariamente, são meras deduções teóricas desse mesmo Estado Constitucional?

É óbvio que não se responde prontamente a essas questões, pois, se são teorias (ideologias), são também construções históricas (sociais). De todo modo, são direitos democráticos e assegurados, constitucionalizados, legitimados – muitos tornados auto-aplicáveis. Para Canotilho (s/d, pp. 285-286):

Da mesma forma que o princípio do estado de direito, também o princípio democrático é um princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões organizativo-procedimentais (...) normativo-substancialmente, porque a constituição condicionou a legitimidade do domínio político à prossecução de determinados fins e à realização de determinados valores e princípios (soberania popular, garantia dos direitos fundamentais, pluralismo de expressão e organização política democrática); normativo-processualmente, porque vinculou a legitimação do poder à observância de determinadas regras e processos.

Poder-se-á, no entanto, objetar honestamente que há limites práticos, objetivos, efetivos (não só políticos ou partidários), na capacidade do Estado e da sociedade para se efetivarem os direitos fundamentais. Para essa modalidade de crítica do Direito, a alegação política de cunho humanitário, encontra uma constante e eficaz barreira econômica, que impede a passagem da teoria do direito à prática da justiça.

No Brasil, há uma incapacidade ou insuficiência econômica aliada à inoperância institucional, há despreparo e descaso como há o acaso da natureza (os sertões e a caatinga convivem pari passu com a indústria da seca). Mas, por que é que os direitos fundamentais não encontram meios de se realizarem ou simplesmente são descumpridos?

Não é de se estranhar, com o que viemos analisando, que outros tantos teóricos cheguem a defender a idéia de que os direitos sociais fundamentais, em grande parte, espelham a visão longínqua das normas constitucionais programáticas e, por isso, necessitam de posterior regulamentação em legislação infraconsitucional – além de que são meros objetivos, só uma sinalização de longo prazo, expressão da boa vontade do legislador para com a sociedade e deveriam nortear os passos dos governantes da ocasião. A despeito da boa vontade, da crença sincera de muitos que assim se posicionam, isto soa mais para cinismo e escapismo do que inspira qualquer relevância analítica e teórica. Isto é, a base político-jurídica assenta-se em outras dimensões muito mais alongadas e profundas, como ainda temos em Canotilho (s/d, p. 289):

Tal como são um elemento constitutivo do estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os cidadãos (...) para seu exercício (princípio-direito da igualdade e da participação política); (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos do próprio princípio democrático); (3) co-envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural (...) Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático.

E este parece que é o real motor que deveria impulsionar os direitos sociais fundamentais, ou seja, o princípio democrático que, nesta fase avançada da reflexão jurídica, deveria coabitar todo o conjunto do ordenamento jurídico. Ao contrário daquela estreita análise que ainda se baseia nas meras intenções do Estado, pois, não querendo o administrador subordinar-se ao preâmbulo da Constituição, estaria livre para aplicar sua própria concepção do realismo político. O que, certamente, não se coaduna com os clássicos do Estado Democrático de Direito Social:

Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos (Canotilho, s/d, p. 289).

De todo modo, diante da hipossuficiência social e econômica que enfrentamos há séculos (agravada na última década), é claro que temos de tomar o Direito como algo além de um belo e ordeiro "sistema fechado de normas". Nessa mesma esteira, podemos entender porque não bastam (ou nem são necessários ou oportunos) os assim chamados operadores do direito: intérpretes pragmáticos, funcionais, utilitários, estruturais da lei (do Direito Posto). Ou seja, em oposição, podemos concluir pela necessidade e oportunidade (extrema relevância) dos agentes de transformação do Direito e da sociedade.

Nesta perspectiva histórica, portanto, são vistos como direitos fundamentais, os direitos sociais, culturais, trabalhistas, bem como tanto é elementar a saúde e a educação, quanto o direito ao lazer. Mas deve-se ressaltar que, na práxis política estatal, os direitos fundamentais recebem uma interpretação restritiva, limitada, relegando-os ao plano inicial dos direitos individuais – na verdade, a única geração de direitos que recebe a salvaguarda das cláusulas pétreas. Daí que os direitos fundamentais são entendidos limitadamente como sendo porta-vozes dos direitos civis ou individuais.

Em sentido complementar também vem a onda apelidada de desregulamentação (já vista como "flexibilização"), que na melhor das hipóteses remete ao mercado a atribuição moral de substituir o Estado na sua capacidade jurisdicional. Em sentido um tanto diverso, pois destaca a idéia da desregulamentação da própria Constituição Dirigente (a constitucionalização programática das finalidades do Estado), Eros Roberto Grau nos adverte acerca da imensa/intensa necessidade de combatermos pela continuidade da constitucionalização do poder político. Assim, advertia-nos:

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A minimização das responsabilidades políticas empalmadas pelo Estado em benefício de leis pretensamente naturais, que passariam a guiar nossos destinos, conduzirá ao sacrifício ainda maior da sociedade e ao surgimento de um "Estado Javert [18]", policialesco, autoritário, mesquinho (Grau, 2003, p. 434).

Os direitos fundamentais, no entanto, são direitos sociais (e não vagamente naturais), coletivos, de amplitude integral e devem dar cobertura ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana. E se nosso legislador entendeu de forma contrária, é porque o fez sob pressão econômica de grupos interessados em que os direitos protegidos pelas cláusulas pétreas fossem apenas os direitos individuais (na Constituinte de 1986, chama-se "Centrão"). Trata-se, enfim, de uma deformação política e institucional, e não de um problema de ordem teórica, como se poderia aventar: a justiça social só existe na prática. Também esperamos ter indicado alguns motivos ou fatores que levaram e ainda hoje levam este tipo de Estado Funcional brasileiro a ter tantas disfunções.

Deve-se frisar que, todo Estado moderno é um Estado Funcionalista – sobretudo em razão de se oferecer ou propugnar-se por um serviço público, com o Estado funcionando para isso – especialmente no século XX. Ademais, o modelo preponderante neste curso de meio século é o próprio Estado Capitalista, com o capital ditando as regras e os objetivos gerais do próprio Estado. Porém, nos últimos 50 anos, vimos um acirramento ou recrudescimento desse modelo, com a reclusão quase absoluta dos ideais liberais – livre mercado, livre concorrência – definhando-se, portanto, e definindo-se mais proximamente do que a literatura sociológica chama de Capitalismo Monopolista de Estado.


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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado funcionalista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 290, 23 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5124. Acesso em: 23 nov. 2024.

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