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Horizontes da regulação das relações de trabalho no Brasil, diante da crise do Estado de bem-estar social

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4. A CRISE DO ESTADO SOCIAL E A SITUAÇÃO ATUAL DOS TRABALHADORES: OS HORIZONTES DA REGULAÇÃO ESTATAL

A partir da década de 1970, o Estado Social, antes visto como um estabilizador político econômico que contribuía para regenerar as forças do crescimento econômico e preservar a economia da espiral descendente das recessões profundas passa a objeto de dúvida, de crítica profunda e de conflito político, emergindo, assim, a hoje denominada “Crise da Sociedade de Bem-Estar” (GUADAGNIN FILHO, 2011, pp. 2-4), embora restrita aos países onde o Estado de bem-estar social se fez efetivamente presente, tendo em vista que nem todos entraram nesse contexto, ou nele entraram tardiamente.

A parte conservadora alega que o Estado Social: inibe os investimentos, porque despende um excessivo montante de recursos oriundo dos impostos; propicia que os sindicatos, procurando garantir a estabilidade no emprego, tendam a levar os trabalhadores à acomodação, prejudicando seu desempenho ou diminuindo sua produtividade; tende a gerar um crescimento negativo que, para piorar, vem acompanhado de um crescimento das expectativas; e tem legislação social onerosa, afugentando grandes empresas, que procuram se instalar em países onde a legislação social não é tão onerosa (GUADAGNIN FILHO, 2011, pp. 2-4).

Da esquerda, por sua vez, ouve-se que o Estado de bem-estar social acaba não conseguindo solucionar as causas dos problemas vividos pelos trabalhadores, como quando, por exemplo, ao invés de solucionar o desemprego, cria o salário-desemprego; que esse Estado assume um caráter repressivo, pois, cada vez mais se torna claro que a burocracia, geralmente ineficaz e ineficiente, ao executar políticas sociais, exerce concomitantemente uma função de controle social; também se sustenta que a distribuição da riqueza só ocorre horizontalmente, levando a que as políticas sociais oscilem de acordo com o crescimento ou não da economia, de forma que somente quando quem tem mais ganha mais é que quem tem menos ganha mais, e os primeiros nunca se tornam mais pobres; e se afirma ainda que o Estado de bem-estar social gera na classe operária uma falsa concepção quanto aos problemas sociais, fazendo-a dirigir-se não aos patrões, mas ao Estado, burocratizando assim as demandas sociais (GUADAGNIN FILHO, 2011, pp. 2-4).

Nos países de capitalismo avançado, essas críticas transformaram o tamanho do Estado de bem-estar social num vilão da crise estrutural do capitalismo dos anos 1970 e sua diminuição como uma das metas neoliberais. Assim, a terapia dos defensores do neoliberalismo para a crise do Welfare State seria aliviar a sobrecarga do sistema quanto às exigências e expectativas. Por sua vez, os adeptos da social-democracia vislumbraram que a terapia adequada consistiria de aumentar a capacidade de desempenho e direção do Estado.

A influência americana e inglesa fez prevalecer, na década de 1980, a prescrição neoliberal, que foi exportada para o restante do mundo via FMI, Banco Mundial e Consenso de Washington, consistindo de verdadeiros “pacotes” de medidas de cunho liberal, voltadas para facilitar a reestruturação do capitalismo, tais como a liberalização do fluxo do capital externo, a abertura às importações, a diminuição do tamanho do Estado mediante a privatização de empresas, reformas previdenciárias, demissão e diminuição de direitos de servidores públicos, terceirização de serviços, assim como a flexibilização dos direitos trabalhistas.

Essa maré neoliberal, que avançou pelo mundo e atingiu o Brasil, sobretudo durante toda a década de 1990, não só falhou na tentativa de conter o avanço da crise estrutural do capitalismo, como causou o agravamento da pobreza e a piora em todos os demais índices sociais,  tendo ainda gerado profundas mutações na classe trabalhadora. Mais de um bilhão de homens e mulheres espalhados pelo mundo estão em trabalho precarizado, instável, temporário, terceirizado, quase virtual, sem falar que dentre eles centenas de milhões padecem do desemprego estrutural, e isto sem contabilizar os volumosos dados da Índia e da China (ANTUNES, 2010, p. 103).

No Brasil, nos anos 1990, tivemos tanto as práticas desenhadas pelo Consenso de Washington (com suas desregulamentações nas mais distintas esferas do mundo do trabalho e da produção), quanto uma significativa reestruturação produtiva em praticamente todo o universo industrial e de serviços. Houve uma ampliação das modalidades de trabalho mais desregulamentadas e um crescimento absurdo do trabalho realizado com burla à legislação trabalhista; aumentou significativamente o número de empresas de terceirização, locadoras de força de trabalho de perfil temporário; e se tornaram frequentes até mesmo flagrantes de trabalho escravo no campo e nas grandes metrópoles, como São Paulo, onde pequenas fábricas foram flagradas escravizando bolivianos e peruanos. Os dados apontam que no  Brasil  da  década  de  1990 a renda “per-capita” caiu, o trabalho informal chegou a 62 %, cresceu a contratação de jovens e mulheres para ocupações de baixa qualificação, houve declínio do nível de salários e a renda caiu 8 % , sendo extremamente pior do que a da década perdida (anos 1980), quando ainda houve algum crescimento (SOARES, 2000, pp. 78-79).

Apesar desse quadro terrível de precarização estrutural do trabalho, e não obstante o fracasso do neoliberalismo, os capitais globais continuam exigindo o desmonte da legislação social protetora do trabalho (ANTUNES, 2010, p. 109). Todavia, em 2008, quando eclodiu a crise atual, o socorro ao capitalismo veio dos Estados, que injetaram trilhões de dólares e euros para salvar o mercado financeiro que estava na iminência de uma quebradeira generalizada. Essa postura do capitalismo retirou-lhe o último resquício de legitimidade, se é que a teve em algum momento, para defender medidas como a liberalização total e o afrouxamento da regulação estatal sobre os direitos sociais trabalhistas.


5. CONCLUSÃO

Conforme se viu ao longo deste texto, as relações de trabalho se transformaram muito nas últimas décadas, mas não foi para melhor. A população do planeta continua sendo na sua grande maioria composta de pessoas que sobrevivem à custa da remuneração que recebem pelo seu trabalho. A dependência de uma remuneração hoje, tanto quanto na época da Revolução Industrial, leva trabalhadores a se submeterem a formas injustas de exploração de sua força de trabalho.  O que há de diferente hoje são os modernos modos de produção e, principalmente, a forte presença do Estado nas relações de trabalho, estabelecendo limites à exploração do trabalhador assalariado por meio dos direitos trabalhistas.

A reestruturação dos modos de produção capitalista provocou o surgimento de um enorme contingente de trabalhadores em situação precária e desempregados por todo o mundo, agora atingindo inclusive os países mais desenvolvidos. O Brasil, conquanto tenha adquirido a forma de um Estado de bem-estar social pela Constituição de 1988, não conseguiu até hoje concretizar a totalidade da proteção social prevista naquele documento. Enquanto isso, a viabilidade do próprio modelo político vigente de Estado de bem-estar social tem sido questionada em muitos estudos, onde já se avaliam as questões que estão em jogo para uma reformulação e as alternativas possíveis, conforme se pode encontrar nos textos reunidos em Giddens (2007) e em Barry e Wckersley (2005).

Algumas reformas se mostram evidentemente necessárias no padrão da proteção conferida pelos Estados de bem-estar social. Questões como a maior longevidade, os movimentos migracionais, o novo perfil das famílias e, principalmente, as mudanças climáticas - com os enormes problemas ambientais e econômicos que elas causam crescentemente a cada ano - tornam premente a necessidade de se repensar o “welfare state”. As relações de trabalho e suas grandes transformações nestas duas últimas décadas são também um dos temas que fazem parte da agenda do debate sobre um novo “welfare state”.

Mas parece óbvio que ainda são plenamente válidas para os dias presentes as razões que outrora levaram os Estados a se tornarem reguladores das relações de trabalho. Também parece claro que as relações de trabalho não tendem a melhorar se o Estado se abstém de regulamentá-las. Decisões erradas já levaram sociedades até mesmo à extinção (DIAMOND, 2005, pp. 501-503). No caso das relações de trabalho, o período em que o Brasil adotou as medidas neoliberais foi exatamente o período em que a população teve a maior queda na qualidade de vida. O maior descuido do Estado para com as relações de trabalho nesse período não foi uma boa decisão política. Suas conseqüências têm custado caro ainda hoje para a classe que vive do trabalho. 

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Uma discussão séria sobre flexibilização de direitos deve ter em vista não o aumento puro e simples dos ganhos do capitalista, como sempre tem sido o caso das proposições de leis brasileiras nessa matéria, mas sim objetivar a busca de fórmulas que permitam conciliar as novas características do mundo do trabalho com a preservação dos mínimos de direitos necessários para que os trabalhadores possam ter e dar às suas famílias uma existência digna. Nessa busca, novas questões deverão ser levadas em consideração, tais como as novas tecnologias, o novo perfil das famílias, o aumento da longevidade e a diminuição da taxa de fecundidade nas sociedades, com seus conhecidos efeitos sobre os sistemas previdenciários, isto apenas para dar alguns exemplos.


REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, Boitempo Editorial, 2001.

_______. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. São Paulo, Cortez, 2010.

ARRETCHE, Marta T. S. Emergência e Desenvolvimento do Welfare State: Teorias Explicativas, in: Bib. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, no. 39, 1º. semestre de 1995, p. 3-40. Disponível na Internet no endereço: http://www.fflch.usp.br/dcp/html/martaarretche.html . Acesso em 01/01/2011.

BARRY, John & ECKERSLEY, Robyn. The State and the Global Ecological Crisis. The MIT Press, Cambridge, Mass., 2005, cap. 2 – pp. 25 a 52 e cap. 4 – 75 a 95.

BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Ève. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 40.

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GAUDAGNIN FILHO, Renato Guilherme. A  maré  neoliberal  e  a  crise  do  Estado de bem-estar social. Disponível em: http//www.cefetsp.br/edu/eso/globalizacao/mareneoliberalcrise.html .

GIDDENS, Anthony. O Debate global sobre a Terceira Via. São Paulo, Ed. UNESP, 2007, caps. 7 a 11, pp. 167 a 267.

HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 14ª Ed. São Paulo: Atlas, 1995.

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OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

SANTOS, Boaventura S. O regresso do Estado?. Publicado pela primeira vez em “Visão” (http://aeiou.visao.pt/), de 16-03-2006. Disponível em:  Regrhttp://macroscopio.blogspot.com/2006/03/o-regresso-do-estado-por-boaventura-s.html . Acesso em 17-05-2011.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. Horizontes da regulação das relações de trabalho no Brasil, diante da crise do Estado de bem-estar social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4790, 12 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51298. Acesso em: 26 abr. 2024.

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