INTRODUÇÃO
O presente artigo é resultado de pesquisa de revisão bibliográfica e serão tecidas considerações sobre o tema “Aborto Anencefálico Provocado: Existe essa possibilidade?” Será feita uma abordagem preliminar acerca da definição Direito Penal e criminologia, bem como, o bem tutelado pelo Direito Penal e o conceito de crime, aborto de seres anencéfalos, bioética. Mister salientar que se objetiva apresentar “um crime”, tipificá-lo, adequá-lo ao direito penal e tecer considerações sobre sua origem.
No decorrer da elaboração do presente artigo alguns questionamentos vieram à baila, necessitando esclarecimentos, dentre os quais, se pode mencionar:
- O abortamento de seres anencéfalos fere princípios constitucionais?
- A partir de que momento se deve sopesar sobre a “hierarquia” dos princípios constitucionais?
- O Direito Penal é silente sobre o aborto em foco, como tipificá-lo?
- Direito a Vida X Dignidade da Pessoa Humana
Ora, para o esclarecimento e satisfatória resposta às questões suscitadas, necessário discorrer sobre os pontos apontados, objetivando clarificar de maneira solar o tema abordado.
Imperioso destacar que a prática do aborto é criminalizada no Brasil, atribuindo ampla responsabilidade ao médico que o realizar, a teor do artigo 128 do Código Penal, que prevê, apenas, dois casos de excludentes punitivas para a interrupção da gravidez, quais sejam: o abortamento terapêutico – também conhecido como aborto necessário – (quando envolve risco de vida para a gestante) e, nos casos de gravidez resultante de estupro.
Cumpre salientar que nos casos de estupro entende-se que nada justifica que se obrigue a mulher a aceitar a maternidade, sendo que a mesma irá dar à vida a um ser resultante de violência sofrida. A legitimação do aborto em casos de estupro se dá a pedido da parturiente, maior de dezoito anos ou pelo representante legal ao médico. Não há necessidade de procedimento escrito, mas, sugere-se que para garantia, o médico elabore documento com permissão da gestante ou representante legal e testemunhas se assim desejar.
O maior problema do consentimento judicial para a prática de aborto em decorrência de estupro, é que o juiz o faz presumindo que o estupro tenha ocorrido. Entretanto, depois de apurado que o fato não aconteceu, à situação torna-se complicada.
O crime de aborto constitui crime contra vida, portanto, compete ao Tribunal do Júri o julgamento. O aborto provocado é um problema social relevante e sabe-se que é rara a condenação de mulheres por abortamento, seja por ato próprio ou por terceiros.
Em relação aos médicos, este também tem mais chances de serem absolvidos. Isso porque a maioria consegue acobertar o aborto provocado e porque bem remunerados tem maior possibilidade de obter boa defesa.
Adentrando no tópico acerca dos materiais e métodos, necessário esclarecer que a metodologia utilizada foi baseada na revisão integrativa da literatura e classifica-se enquanto pesquisa do tipo não experimental, que atende às normas de clareza e rigor. As contribuições colhidas através das pesquisas feitas foram de suma importância para o desenvolvimento e elaboração do presente artigo.
BREVE ESCORÇO SOBRE DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA
“Se o crime é variável, é porque o direito penal também o é: afinal, quem diz crime diz direito penal, sabendo-se que o segundo é quem cria, tipificando, o primeiro” (Anencéfalo, 2004, p. 28).
Anencéfalo (2004) asseveram a existência de duas tendências que classificam o crime, quais sejam: a essencialista e a relativista. A primeira considera o crime como uma realidade físico-social que preexiste a incriminação pelo direito penal. É dizer, o crime existe e o direito penal apenas oficializa a infração, prevendo-lhe a imputação da pena. A segunda tendência entende que o crime não seja uma realidade psicossocial específica, mas apenas uma construção arbitrária do sistema social, desde a criação do direito penal até sua aplicação pelos órgãos de execução das penas. Os relativistas acreditam que o crime é apenas invenção social, sem correspondência com o real. Em assim sendo, o ato criminoso é assim considerado porque o sistema penal o estigmatiza.
O Direito penal tem por função a defesa do bem jurídico. Necessário portanto a conceituação do que seja bem jurídico.
Para Rosal (s.d. p. 50) bem jurídico é, in verbis:
...una situación o hecho valorado positivamente. El concepto de situación se entiende, em este contexto, em sentido amplio, comprendiendo no solo objetos (corporales y otros), sino también estados y processos. Um bien llega a ser bien jurídico por el hecho de gozar de protección jurídica. Sin embargo, podría argumentarse que la protección jurídica constituye prueba suficiente y decisiva de la valoración positiva de la sicutación. El bien jurídico se determina entonces de modo positivista y el concepto abarca <<todo lo que a los ojos de la ly, em tanto quecondición de la vida sna de la comunidad jurídica, es valioso para ésta>>.
Passando à abordagem do conceito de criminologia, tem-se que para Andrade (1995), a Criminologia (positivista) é definida como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade, é dizer, que tendo por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural, causalmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo o método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la.
Há ainda a indagação, pela Criminologia, de como o homem (criminoso) faz e porque o faz. O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal (crimes "naturais") que, com exceção dos chamados crimes "artificiais", não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas ao serviço do seu combate em defesa da sociedade.
Andrade (2005) noticia o fato de que a primeira e célebre resposta sobre as causas do crime foi dada pelo médico italiano LOMBROSO que sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação) procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões, sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de FERRI, quem sugeriu, inclusive, a denominação "criminoso nato". Procurou desta forma individualizar nos criminosos e doentes apenados anomalias sobretudo anatômicas e fisiológicas vistas como constantes naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipo antropológico delinqüente, uma espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo, a cometer crimes.
Bonfim e Capez (2004, p. 31) asseguram que a criminologia surgiu como ciência auxiliar do direito penal, margeando-se paralelamente a ele. A criminologia é estudada como ciência multidisciplinar, porque o conhecimento da criminalidade é multifário, exigindo-se o concurso de inúmeras especialidades, quais sejam: a biologia, a antropologia, a sociologia, a psicologia, psiquiatria, dentre outras.
Enquanto o direito penal objetiva o estudo do crime a criminologia concentra-se no homem criminoso. Noutro viés, ainda nas palavras de Bonfim e Capez (2004, p. 32) “a criminologia moderna pretende estudar a ação criminosa com o concurso de todas as ciências humanas.”
PRESUNÇÃO DE UM CRIME
Hipoteticamente apresenta-se o seguinte caso para exame:
Augusto provoca o abortamento da parceira sem que ela tenha conhecimento. Suspeitando ser o bebê portador de má-formação congênita e com a possibilidade de, também, ser anencéfalo, haja vista as diversas pesquisas realizadas pela companheira sobre o tema, o marido, que deseja um filho perfeito, dá, inicialmente, doses pequenas de medicamentos abortivos à mulher, sem que esta tenha conhecimento. Como o processo gestacional está se encaminhando regularmente, sem alterações (04 meses e meio de gestação), apesar do medicamento administrado, Augusto, aumenta a dosagem e alcança seu objetivo.
Com a ocorrência do aborto, e em função do excesso de doses do medicamento, a esposa de Augusto necessita permanecer internada, apresentando complicações decorrentes de infecção hospitalar.
Comprovou-se que o feto era portador da anencefália, o que, consequentemente, ensejaria a interrupção da gravidez.
Todavia, restou comprovado, também, a presença de substâncias abortivas na corrente sanguínea da parturiente.
Posto isto, faz-se as seguintes indagações: o fato de “Augusto” ter provocado o abortamento na mulher, não diminuiu naquela o sofrimento de dar à luz a um feto anencéfalo, sem chances de vida fora do útero? Apesar de realizar crime tipificado no Código Penal (aborto sem consentimento da gestante), o fato de o feto ser anencéfalo não excluiu a tipicidade? Saber que seu bebê era portador de anencefália pode ter desencadeado no agente ativo (Augusto) um sentimento incontrolável de angústia e conflito a ensejar a atitude impensada? A preocupação com a deformidade física e mentais que o feto poderia apresentar pode justificar o aborto (crime cometido por Augusto)? A gestação anencefálica atinge o psíquico/emocional apenas da gestante, ou esse sentimento se transfere também à figura paterna?
Afinal, como bem observado por Flandrin (apud Rohden) apud Benute et all (RT 859/2007) “...toda malformação da criança denuncia o pecado de seus pais. Desse modo, tem-se intensa vivências emocionais desencadeadas a partir do diagnóstico de malformação fetal letal.” É dizer, ao gerar um filho malformado, os pais sentem que o que eles tem de pior foi passado ao filho e agora estão exposto par a sociedade todos os seus erros, todos os seus defeitos. (grifamos).
BIOÉTICA, DIREITO E ANENCEFALIA
Bioética é um neologismo construído a partir das palavras gregas bios (vida) + ethos (relativo à ética). Segundo Diniz & Guilhem (2002) "...por ser a bioética um campo disciplinar compromissado com o conflito moral na área da saúde e da doença dos seres humanos e dos animais não-humanos, seus temas dizem respeito a situações de vida que nunca deixaram de estar em pauta na história da humanidade..."
Diz-se que as diretrizes filosóficas dessa área começaram a consolidar-se após a tragédia do holocausto da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo ocidental, chocado com as práticas abusivas de médicos nazistas em nome da Ciência, cria um código para limitar os estudos relacionados. Formula-se aí também a idéia que a ciência não é mais importante que o homem. O progresso técnico deve ser controlado e acompanhar a consciência da humanidade sobre os efeitos que eles podem ter no mundo e na sociedade para que as novas descobertas e suas aplicações não fiquem sujeitas a todo tipo de interesse.
Noticia-se que o termo bioética foi mencionado pela primeira vez em 1971, no livro “Bioética: Ponte para o Futuro", do biólogo e oncologista americano Van R. Potter. Pouco tempo depois, uma abordagem mais incisiva da disciplina foi feita pelo obstetra holandês Hellegers.
Tem-se ciência que a bioética transpõe-se a um movimento cultural: é neste humanismo que se pode englobar conceitos entre o prático biodireito e o teórico biopoder. É desta maneira que sua constante revisão e atualização se torna uma característica fundamental. O campo acerca do tema é claramente árido, a envolver questões eminentemente ligadas à bioética.
A problemática da bioética é numerosa e complexa, envolvendo fortes reflexos imprimidos na opinião pública, sobretudo, pelos meios de comunicação de massa. Alguns exemplos dos temas alarmados:
- Aborto
- Clonagem
- Eutanásia
- Ética médica
- Transgênicos
- Pesquisas com células tronco
Debruçando-se sobre a questão do aborto, tem-se que este é a interrupção fortuita ou culposa da gestação com a morte do feto, prevista no diploma penal nos artigos 124 e segs. do Código Penal.
Todavia, para caracterização do abortamento delitual necessário haver a comprovação de gravidez preexistente. O abortamento poderá ser ovular (ocorrendo no primeiro mês de gestação), embrionário (a partir do fim do primeiro mês até o fim do terceiro mês de gestação), ou fetal (a partir do quarto mês de gestação).
O abortamento pode ainda ser moral, terapêutico ou criminoso. Será moral quando a gravidez for resultante de estupro; terapêutico quando praticado para salvar a vida da gestante.
O abortamento criminoso enseja várias figuras delituosas, quais sejam: o auto-abortamento, o abortamento consentido, o abortamento provocado sem consentimento da gestante, o abortamento provocado com o consentimento da gestante e o abortamento qualificado.
Na hipótese em epígrafe, tem-se que o aborto provocado foi realizado sem o consentimento da gestante, tipificado no art. 125, e prevê pena de reclusão, de um a quatro anos.
Nesta modalidade, o sujeito ativo é o terceiro que o provoca, e sujeitos passivos a gestante e o próprio Estado, diretamente interessado na preservação da vida humana, bem assim na integridade física da gestante.
Veja-se, como já delineado, o CP prevê em seu artigo 128 apenas duas hipóteses de aborto permitido. A autorização para a realização de aborto em seres anencéfalos seria uma terceira hipótese de aborto, esta criada pelo STF.
Gomes (2006, p. 409) afirma que a resposta fundamental para tal hipótese seria encontrada no âmbito da tipicidade material que exige três juízos valorativos distintos, quais sejam:
- Juízo de desaprovação da conduta (cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou seja, se o agente, com sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante);
- Juízo de desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado que consiste na ofensa desvaliosa ao bem jurídico) e
- Juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ser a realização do risco criado ou incrementado).
Passando à análise da situação de interrupção da gestação do anencéfalo, Busato (2005, p. 387) afirma a possibilidade de verificar-se com clareza solar que se está diante de uma situação onde a evolução da ciência médica permite um diagnóstico de cem porcento de segurança a respeito da inviabilidade da sobrevivência do produto da concepção. Por outro lado, o estágio de evolução da sociedade permite equiparar a aflição derivada desta gestação àquela sofrida pela gestante estuprada. Assim, transparece extreme de dúvida a necessidade de reconhecimento da causa supralegal de exclusão de ilicitude.
Sob olhar da medicina, no que se refere à questão da anencefalia mister citar o estudo publicado na página do Comitê Hospitalar de Bioética do Hospital de Emergência Eva Perón, na Argentina, onde se comenta que o “diagnóstico de anencefalia se realiza no útero com alto grau de certeza. Um estudo que combinou os resultados de seis instituições, detectou mais de 130 casos, sem nenhum diagnóstico falso positivo (em nenhum caso o diagnóstico pré-natal de anencefalia resultou equivocado)” (RT 836/2005).
Carneiro (2008, p. 72) afirma que no atual estágio de evolução social, permeada por uma angustiante complexidade, em contraponto ao acelerado avanço da ciência médica, questões éticas essenciais permanecem à deriva, sem o devido exaurimento dos limites e possibilidades que novos tratamentos e formas interventivas apresentam para o bem-estar físico-psíquico das pessoas que padecem de alguma doença grave.
É dizer, como a sociedade não está preparada para decidir sobre os contornos éticos das questões polêmicas em análise, tem-se que como substitutivo a transferência ao judiciário do ônus decisório.
Convém notar que a medicina, absolutamente avançada, concluiu que não é viável a geração de crianças anencéfalas, é dizer, que sem a atividade o cérebro, separado do organismo da mãe, ao cabo do período gestacional, o feto anencéfalo necessariamente perece. A inviabilidade da sobrevida do feto anencéfalo. Este perecimento deriva exatamente da falta de atividade cerebral.
Para clarificar, tem-se como necessário a definição da anencefalia, in verbis:
A anencefalia é uma patologia congênita que afeta a configuração encefália e dos ossos do crânio que rodeiam a cabeça. A conseqüência deste problema é um desenvolvimento mínimo do encéfalo, o qual com freqüência apresenta uma ausência parcial ou total do cérebro (região do encéfalo responsável pelo pensamento, a vista, o ouvido, o tato, e os movimentos). A parte posterior do crânio aparece sem fechar e é possível, ademais, que faltem ossos nas regiões laterais e anterior da cabeça. (RT 836/2005).
O anencéfalo nasce em estado vegetativo. Sua respiração e batimento cardíaco estão associados ao tronco, que permite a ele estas ações mecânicas. Todavia, não existe atividade cerebral propriamente dita, em face da ausência do cérebro. É dizer, este ser está definitivamente condenado à condição vegetativa, sem possibilidade de desenvolvimento dos sentidos.
Como bem observado por Barbato Jr. (2007, p. 436), “a questão reputada essencial relativamente à discussão em tela é a definição do conceito de vida humana.” (grifo do autor)
Como bem dito por Minahim (2000, p. 36) apud Carneiro, in verbis:
Hoje, estar consciente é qualidade essencial para falar-se em vida, tanto no que diz respeito ao seu início, quanto ao seu fim. Martin Rhonheimar (1999) afirma que uma das estratégias utilizadas para argumentar a favor do aborto consiste em considerar como pessoas apenas o ser dotado de autoconsciência, distinguindo assim indivíduo de pessoa. Por isso mesmo, os anencéfalos podem ter seu processo de gestação interrompido, mesmo no Brasil, já que apresentam anomalia na qual lhes falta a abóbada craniana, estando os hemisférios cerebrais ausentes ou representados por pequenas massas que repousam na base. Como dizer, em sala de aula, inspirados na leitura de Magalhães de Noronha ou Nelson Hungria, que o direito protege qualquer forma de vida, desde aquelas que tenham aparência de monstros, àquelas tidas como absolutamente inviáveis, sem distanciar, mais ainda, o direito penal do seu contexto.
ARGUMENTOS SOBRE CONEXÃO ENTRE DIREITO À VIDA E ABORTO
A anencefalia é má formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, levando ou à morte intra-uterina, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. Afirma a literatura médica que a permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante.
Quando ocorre a gravidez, a mulher é envolvida por uma gama de sentimentos, alegria, incertezas, euforia; de um novo sentimento que só a mulher é capaz de sentir: o maternal. São nove meses de expectativa, de acompanhamento passo a passo, cada dia, o desenvolver do feto. E a alteração física é ultrapassada pela alegria da gestação, momento feminino nobre.
Impor à gestante o dever de carregar dentro de si, por nove meses, o feto com precisão não sobreviverá em face da anomalia que lhe acomete, causa à gestante dor, angústia, sofrimento; a afirmar-se, violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
A ciência médica afirma com uma certeza igual a 100% (cem por cento), Evidenciando que os fetos anencefálicos morrem como já mencionado, no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Ou, quando se chega ao final a gestação, a sobrevida é de apenas algumas horas.
Evidente, que se a anomalia que acomete o feto fosse de outra monta, conceder-se a autorização para interrupção da gestação seria prática de ato criminoso contra o direito à vida, princípio constitucional. Mas em se tratando de feto anencefálico, permitir que a agonia da mãe se prolongue, é impor a gestante danos de integridade física, moral e psicológica.
Necessário também observar através do Laudo Médico Pericial, se a gestação causa dano à saúde da gestante, em seu aspecto mental, social e físico.
Sobre o tema, imperioso trazer à colação consulta formulada ao Ministro aposentado do STF, Des. José Néri da Silveira, que assim se manifestou, in verbis:
“o direito à vida do feto, que é o primeiro dos direitos fundamentais da Constituição Federal, art. 5º, caput, é também assegurado ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve.
Numa ponderação hierárquica dos direitos e valores concernentes à vida e à dignidade humana garantidas também ao nascituro anencefálico, vivo e em desenvolvimento no ventre materno, em face de invocados direitos fundamentais da gestante, quanto à dignidade de pessoa humana, liberdade e autonomia de vontade, no sentido de interromper a gravidez, do que resultaria a morte do feto, não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é ferida pelo fato dessa maternidade, valor constitucionalmente exaltado.”
Apesar da transcrição do excerto da resposta da consulta formulada ao Ministro, imperativo não debruçar o olhar apenas sobre o direito à vida do feto, diga-se, anencéfalo, mas e, principalmente, sobre as transformações vividas no corpo e na mente da gestante.
Em total observância ao princípio constitucional de dignidade da pessoa humana, autorizar que se efetue a antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de fetos anencefálicos, desde que, seja o pedido formulado pela gestante e devidamente acompanhado de Relatório Médico, onde conste a referida anomalia fetal. Antes da realização do aborto terapêutico, deve a gestante ser acompanhada por equipe de psicólogos, a fim de que a mesma adquira certeza e convicção da efetivação do procedimento médico.
Observe-se ainda, que o acompanhamento supramencionado deve ser feito de forma imparcial, sem induzimentos de formação de opinião por parte dos profissionais, cabendo, exclusivamente a gestante a decisão que queira adotar.
Como já delineado anteriormente, o tema é extremamente polêmico e por este motivo, traz-se excertos de julgados sobre a matéria em análise, in verbis
HC 84025/RJ – RIO DEJ ANEIPO. Rel. Min. Joaquim Barbosa.
EMENTA: HABEAS CORUPOS PREVENTIVO. REALIZAÇÃO DE ABORTO EUGÊNICO. SUPERVINIÊNCIA DO PARTO. IMPETRAÇÃO PREJUDICADA. 1. em se tratando de habeas corpus preventivo, que vise a autorizar a paciente a realizar aborto, a ocorrência do parto durante o julgamento do writ implica a perda do objeto. 2. Impetração prejudicada.
ADPF 54 – Rel. Min. Marco Aurélio.
(...)
Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e das decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálios, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.
Carneiro (2008, p. 72) assevera que a discussão central é a respeito da chancela da ordem jurídica quanto à interrupção da gravidez, em decorrência de diagnóstico médico lastreado por exame – sem margem de erro – que atesta a ausência de cérebro e, com isso, irrefutável evidência da inviabilidade biológica do ser humano em prospecção. A densidade do problema resulta da controvérsia sobre:
a) quando tem início a vida humana;
b) que bem jurídico se está a tutelar e
c) qual a melhor política jurídico-criminal a se almejar.
Têm-se notícia que o fundamento basilar invocado pela Confederação proponente da ADPF é a de que a impossibilidade legal do aborto nesses casos viola a dignidade da condição feminina ao obrigar a mulher a levar a gestação de um feto, segundo ele, natimorto.
Aliás, como bem analisado pelo professor Barroso apud Carneiro (2008, p. 73), in verbis:
“Não há na farmacologia médica nada que se possa fazer para salvar esse feto, só se pode fazer algo para preservar a mãe, que terá gravidez de mais alto risco, sim”. Barroso também pede a aplicação do periculum in mora para evitar a insegurança jurídica provocada por decisões judiciais divergentes, como é o caso do Hábeas Corpus 84.025-6/RJ.”
Discorrendo sobre o tema, Dworkin (2003, p. 143-144) apud Carneiro (2008, p. 74) assim argumentou:
Não são apenas indesejáveis, mas igualmente terríveis; o trauma é tão severo, que algumas mulheres fariam qualquer coisa para evitá-lo; Se, em desespero, para fazer um aborto, uma mulher desafiasse o direito penal, poderia arriscar a própria vida. Se se submetesse à lei, as conseqüências para ela seriam graves – não teria de arcar apenas com desvantagens econômicas, sociais ou profissionais, mas muitas vezes sofreria um dano irreparável a seu amor próprio.
Ora, tratando-se de antônimos, morte e vida, tanto do ponto de vista natural quando jurídica, tem-se que a falta de atividade cerebral representa morte. E, por mais lamentável que seja não há que se falar em preservar, haja vista a vida do feto ser impossível, dada a anencefalia. Sendo uma vida inviável a interrupção da gestação é conduta que não atinge o bem jurídico tutelado pelo direito penal, excluindo-se, por conseqüência, a tipicidade penal.
CONCLUSÃO
O tema sub examine é por demais polêmico, abarcando diversos setores sociais. A vida é considerada como o maior valor humano e bem jurídico, o maior bem jurídico, e, em termos de Direitos Humanos, é o primeiro a ser reconhecido e respeitado, quer corresponda a valor humano quer a bem jurídico.
Posto isto, tem-se que a realização do aborto pode ser considerada como violação ao princípio constitucional de direito à vida. Ora, se todos têm direito à vida, e a vida humana começa após a fecundação, que ocorre após o 6º e 7º dias após a concepção, a realização do aborto é crime.
Sergio Ferraz apud Miotto assegura que: “Uma coisa é indiscutível: desde o zigoto, o que se tem é vida, diferente do espermatozóide e do óvulo; vida diferente do pai e da mãe, mas vida humana, se pai e mãe são humanos.”
É de concluir-se que, a interrupção da gravidez é violação à Constituição. Excetuam-se, entretanto, os casos de abortamento terapêutico, porque devidamente justificável.
Imperioso observar que a interrupção da gestação de anencéfalo já é admitida em outros países de legislação mais moderna. Nossa legislação de parte especial do Código Penal é de 1940 e responde a uma realidade da ciência médica contemporânea à sua edição.
É cediço que os bebês portadores da anencefalia nascem sem o cérebro ou caixa craniana formada – como já observado anteriormente – com isso, não possuem funções básica e morrem em pouco tempo. Então fazer ou não a interrupção é um direito da gestante. Aliás, parece natural que a decisão sobre a continuidade de uma gravidez que implica em riscos e está comprometida deva ser da mulher.
Martins (2005) afirma que existem apenas duas exceções para a realização do aborto legal segundo nosso Código Penal, quais sejam: nos casos de estupro e de risco para a gestante; o caso do anencéfalo, portanto, não se aplica a nenhum dos casos referidos. (grifamos).
Realizando uma abordagem religiosa sobre o tema, Sherer (2008) afirma que, acompanhando as audiências públicas promovidas pelo STF em vista de eventual legalização do aborto nos caso de anencefalia, verificou que o debate, por vezes, tornou-se apaixonado, perdendo-se o foco e a noção da gravidade daquilo que está em jogo.
Sendo Estado brasileiro é laico – sem uma definição religiosa – tem-se, todavia, que a sociedade brasileira é pluralista e ninguém poderia ter a pretensão de representar a única opinião aceitável num Estado laico, que não impõe à sociedade um pensamento único.
Ora, socorrendo-se das palavras de Andrade (2008), como fonte inesgotável de controvérsia, é de se pautar por um discurso comprometido com o olhar ético, humanista e, inclusive, respeitando as convicções espirituais circundantes.
Entretanto, não se pode olvidar que, um Estado Democrático de Direito, a preservação da dignidade da pessoa humana, devem ser posicionados com grande ênfase na norma-ápice, pensamentos dogmáticos não devem estar pautados em ideais moralista ou, simplesmente, amparados em doutrinas religiosas.
No desenrolar do presente artigo, não se pretendeu responder aos questionamentos/indagações propostas pela hipótese do crime apresentado. Objetivou-se demonstrar as diversas controvérsias trazidas com a questão do abortamento anencéfalico, trazendo, inclusive, à colação posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
Dentre as indagações suscitadas, tem-se o fato de a figura paterna está emocional e psiquicamente abalada com o fato de saber da existência de uma gravidez anencéfala. Questionamento que oportunamente será apreciado.
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