Responsabilidade civil do estado por ato legislativo típico

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20/08/2016 às 11:19
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O presente trabalho busca demonstrar que o ordenamento jurídico pátrio incorporou a responsabilidade objetiva do Estado por ato legislativo.

1. INTRODUÇÃO. 2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. 2.1RESPONSABILIDADE. 2.2 CONCEITO E EVOLUÇÃO. 2.3 EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO. 2.4 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. 2.5 AGENTES PÚBLICOS E RESPONSABILIDADE. 2.6 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.  2.7 FUNÇÃO LEGISLATIVA. 3. RESPONSABILIDADE POR ATOS LEGISLATIVOS. 3.1 FUNDAMENTOS DA IRRESPONSABILIDADE. 3.2 FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE. 3.3 LEIS CONSTITUCIONAIS DANOSAS. 3.4 LEIS INCONSTITUCIONAIS DANOSAS. 3.5 OMISSÃO LEGISLATIVA DANOSA 3.6 AÇÃO REGRESSIVA CONTRA OS LEGISLADORES. 4. DOUTRINA PÁTRIA. 5. JURISPRUDÊNCIA. 6. CONCLUSÃO. 7.  BIBLIOGRAFIA.

1. INTRODUÇÃO

            O tema da responsabilidade civil do Estado é enfrentado recorrentemente pelos publicistas e ganhou relevância na medida em que aquele ente cresceu, passando a intervir, cada vez mais, na vida dos particulares. Ao mesmo tempo em que tal ingerência estatal se desenvolvia acentuadamente, maior se tornava a consciência social de direitos e deveres, conseqüência do avanço de tecnologia e comunicação.

            Neste panorama, cabe ao Direito Público lidar com esta responsabilidade extracontratual Estado, que se constitui na “obrigação a este imposta de reparar danos causados a terceiros em decorrência de suas atividades ou omissões[1]”. Cumpre, portanto, garantir a justa reparação dos danos havidos em razão da atuação do Estado.

            Trata-se de direito constitucionalmente garantido, mas que ainda é interpretado e aplicado, por vezes, com uma cautela que se traduz em verdadeiro prejuízo, não apenas ao particular prejudicado, mas à própria estrutura do Estado Democrático de Direito. Para o que aqui interessa, é necessário afirmar que tal dificuldade é constatável no campo do ressarcimento frente à atuação legislativa lesiva.

            A evolução do instituto da responsabilidade patrimonial do Estado demonstra que, por certo período, predominou a não extensão da mesma aos danos causados pela atividade legislativa. Dentre os argumentos[2] utilizados para se defender a irresponsabilidade do Estado por atos legislativos, o argumento mais utilizado é o de que a lei é um ato de soberania. Ademais, a lei é norma geral, impessoal e abstrata, não podendo acarretar, portanto, danos a terceiros. Outro argumento recorrente é o de que a lei inova no ordenamento jurídico, não podendo violar direito anterior e modificando-o a partir de sua entrada em vigência. Há, ainda, o argumento de que impor responsabilidade por edição de ato legislativo implica criar uma insegurança no meio legislativo, impedindo a evolução normativa. Finalmente, há o argumento de que é a sociedade que edita a lei, posto que foi ela que elegeu representantes para o fazerem e, deste modo, o sujeito prejudicado pela lei foi o mesmo que, indiretamente, a editou.

            Considerações desta natureza levariam, naturalmente, a, ao menos, duas ordens de questionamento: (i) que soberania seria esta que, a princípio, protegeu os poderes Legislativo e Judiciário e deixou de justificar a irresponsabilidade do Executivo?; e (ii) como conciliar esta soberania com a igualdade entre os Poderes, de um lado, e entre particular lesado e seus concidadãos, de outro?

             O trabalho ora idealizado objetiva enfrentar a questão da necessidade de indenização decorrente da responsabilização por ato legislativo, posto que a irresponsabilidade estatal em semelhante caso seria uma afronta à segurança jurídica, um aval ao enriquecimento ilícito e um verdadeiro desrespeito ao princípio da boa-fé[3]. Não sendo possível, portanto, exigir que o particular sofra os danos decorrentes do “desempenho inconstitucional da função de legislar”, palavras do Ministro Celso de Mello constantes da ementa do Recurso Extraordinário nº 158.962[4], nem no desempenho injusto, caso da lei constitucional que atinge um ou poucos, ou na mora legislativa.

Como se pretende demonstrar na tese ora proposta, os argumentos que limitam a concessão de indenização ao particular comprovadamente lesado por ato legislativo estatal inconstitucional ou de efeitos particularizados não são razoáveis e o direito à reparação deve ser efetivo para que não se instale uma situação na qual o Estado tudo pode e ao particular resta suportar toda sorte de desrespeito a seus direitos.

            O intuito é demonstrar que a Constituição Federal e o ordenamento jurídico pátrio incorporaram a responsabilidade objetiva do Estado por ato legislativo e analisar o comportamento que os tribunais e julgadores estão adotando, neste sentido, bem como perquirir da efetivação do direito à reparação. Ademais, buscar-se-á, na presente tese, enfocar particularmente o tema relativamente aos atos legislativos típicos, leis formais, é dizer: os atos legislativos que seguem o procedimento específico das leis ordinárias e complementares. Não se trata aqui, portanto, de atos legislativos materiais, como o regulamento[5], a medida provisória, a lei delegada[6], decreto legislativo, resolução etc., nem de tratados e acordo internacionais. [7]

            Com este intuito, começaremos com uma breve exposição a respeito da evolução da responsabilidade patrimonial do Estado no Direito Público como um todo e no Direito Brasileiro, em específico. Abordaremos, assim, a questão da interpretação que deve ser dada à atual Carta Magna, no campo da responsabilidade pública, e individuaremos a função legislativa dentre as demais funções estatais para encaminhamento ao tema central deste trabalho.

            Em um momento seguinte, discorreremos a respeito do histórico evolutivo da relação entre Estado e ato legislativo danoso, quando trataremos da irresponsabilidade por ato legislativo e de seus principais fundamentos. A seguir, enfocaremos as principais teorias que buscaram justificar o dever de indenizar frente ao ato legislativo danoso. Cuidaremos, a partir daí, das hipóteses em que se configura o dever do Estado de indenizar terceiros por decorrência de ato legislativo, quais sejam: (i) lei inconstitucional; (ii) lei constitucional de efeitos particularizados seja para atingir um, seja para atingir um grupo restrito de sujeitos, por vezes, facilmente identificáveis; e (iii) omissão legislativa.

            Examinaremos, finalmente, a posição doutrinária atual a respeito do tema e analisaremos alguns julgados a fim de observar como o pensamento doutrinário tem influenciado a formação de uma nova jurisprudência quanto ao tema.

           

2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

2.1 RESPONSABILIDADE

            Responsabilidade é a situação do que tem que suportar as conseqüências de evento danoso[8]. Assim, do mesmo modo que a responsabilidade exige o dano, a capacidade de responder exige a personalidade jurídica [9].

            “Princípio geral de direito, informador de toda a teoria da responsabilidade, encontradiço no ordenamento jurídico de todos os povos civilizados e sem o qual a vida social é quase inconcebível, é aquele que impõe a quem causa o dano a outrem o dever de o reparar[10]”, no entendimento de Sílvio Rodrigues.

            A responsabilidade jurídica pressupõe: o infrator da norma, o prejudicado, o dano e o nexo causal entre a conduta do primeiro e este resultado lesivo[11]. Configurado evento com tais elementos, a aplicação do instituto objetivará, sancionando o agente, recolocar o prejudicado na situação anterior, ainda que apenas por meio de reparação econômica[12]. Cretella Júnior, analisando os prejuízos que justificam a reparação pela via jurídica, observa, ainda, que o dano pode decorrer, basicamente, de fato da natureza, de fato do homem e de fato da coisa, hipótese esta da coisa danosa[13].

            Espécie do gênero responsabilidade, a responsabilidade pública não decorre da privada, confusão que ocorre em razão de ser esta mais antiga que aquela[14]. A responsabilidade civil tem sua origem no direito romano e a responsabilidade pública parte de um amadurecimento recente do pensamento jurídico, explicitado no caso Blanco, em 1873[15]. Data que também é considerada essencial na história do reconhecimento da autonomia do Direito Público.

            A responsabilidade pública, assim como a privada, pode ser: contratual, conseqüência do desrespeito a uma cláusula contratual; e extracontratual ou aquiliana, decorrente da assunção dos riscos relativos às atividades desenvolvidas, da violação do preceito geral neminem laedere[16].

            A responsabilidade extracontratual é, em geral, direta. Assim, responde a Administração Pública por fatos lícitos ou ilícitos advindos da atuação de seus órgãos. Pode, entretanto, ser a responsabilidade aquiliana indireta, casos como o da culpa in vigilando de pacientes em hospitais públicos, por exemplo, por falta de diligência neste cuidado ou de danos causados pelos que, vinculados ao Estado, não são órgãos públicos[17].

            Outra forma de se analisar a obrigação de indenizar reside nos conceitos de responsabilidade subjetiva e objetiva. A primeira reside na concepção de culpa, ao passo que a segunda, baseia-se na idéia de risco. Desta feita, a responsabilização objetiva prescinde de culpa, bastando a existência de “relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente[18]”. Surge, assim, “o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou não culposamente[19]”.

            Esta concepção da responsabilidade estatal decorre da evolução das teorias organicistas a indicar que os atos dos funcionários seriam atos do próprio Estado, posto que aqueles concretizam a vontade da pessoa jurídica de direito público e atuam no exercício da função desta pessoa. A indenização por parte da pessoa pública, entretanto, não exclui o direito de regresso da administração em caso de ação (ou omissão) culposa ou dolosa do agente que, deve-se esclarecer, responde civil, penal e/ou administrativamente, embora o Estado só responda civilmente, ou seja, em pecúnia[20].

            Em estudo a respeito da responsabilidade pública por ato legislativo, Marisa Helena D’Arbo critica o emprego da expressão “responsabilidade civil” do Estado. A publicista argumenta[21] que o emprego do adjetivo “civil” pode revelar duas imprecisões: (i) o pensamento ultrapassado de que a pessoa jurídica só responde civilmente, ignorando, portanto, a responsabilidade penal em casos como os previstos na legislação ambiental; e (ii) o equívoco de se pensar que se aplica a legislação cível à responsabilização do ente estatal. A doutrinadora, conseqüentemente, prefere a expressão “responsabilidade pública”, defendendo que tal terminologia explicita a singularidade que o instituto adquire na seara do Direito Administrativo.

            Em que pese a crítica da estudiosa, o presente trabalho adotará a expressão “responsabilidade civil do estado”, posto que consagrada na doutrina e jurisprudência, sem prejuízo do emprego de “responsabilidade do Estado” e “responsabilidade pública”. Ademais, crítica também há quanto a esta última nomenclatura, que poderia sugerir algo como uma contraposição a uma responsabilidade privada e, assim, falta de unidade quanto à categoria responsabilidade[22].

            É preciso dizer, ainda, que o tema ora enfocado, qual seja o da responsabilidade pública por ato legislativo, insere-se no contexto da responsabilidade extracontratual do ente estatal e, portanto, empregaremos a terminologia: “responsabilidade aquiliana” ou “fora do contrato” e “responsabilidade extracontratual do Estado”,

2.2 CONCEITO E EVOLUÇÃO

            A responsabilidade patrimonial do Estado é uma garantia constitucional, instrumento de que se vale o cidadão para se defender do crescente intervencionismo estatal nas esferas jurídica e patrimonial do administrado[23].

            O instituto em questão é clara conquista do Estado de Direito, posto que nesta realidade está o ente estatal submetido a um ordenamento jurídico[24] e, por isto, é passível de responsabilização. O desenvolvimento do pensamento que culminou com a construção de uma teoria da responsabilidade e o esforço por ampliar o campo de aplicação da mesma decorrem de um amadurecimento do pensamento jurídico, que passamos a expor.

            O histórico da formulação de um raciocínio que permitisse a imputação ao Estado do dever de reparar danos decorrentes de atos e omissões seus, observa Hélio Helene, tem “suas raízes em velhas concepções da monarquia absoluta (de que deixou resquícios a parêmia inglesa ‘the king can do no wrong’), mas se apoiando por vezes em argumentos jurídicos[25]”. Por muito tempo vigorou a irresponsabilidade estatal amparada por argumentos, como os seguintes[26]: na soberania característica do Poder Público; na impossibilidade de o Estado violar o direito que ele mesmo cria; no caráter público daquele ente, que impediria sua sujeição ao princípio da responsabilidade que pertencia ao direito privado; e no entendimento de que os atos ilícitos de seus funcionários devem ser a estes mesmos imputados, pois não representariam a vontade estatal.

            Mesmo o longo período de irresponsabilidade estatal não foi pleno, datando, deste período, leis específicas que expressamente previram a responsabilidade em casos determinados e havendo já a compreensão, à época, de que o Estado deveria responder por danos de gestão do domínio privado do estado ou pelos causados pelas coletividades públicas locais[27].

            Deste modo, já no século XIX, várias teorias surgiram para justificar a submissão do Estado ao princípio da responsabilidade, ainda visto em sua concepção civilista. Dentre elas, pode-se citar a teoria “do mandado ou da representação, ou do enriquecimento sem causa, ou ainda, do abuso de direito, condicionando a responsabilidade estatal à natureza dos atos lesivos praticados pelos seus agentes ou à situação pessoal dos mesmos[28]”.

            É desta época a teoria francesa que classificava as atividades estatais em duas categorias, conforme fossem “necessárias ou essências à garantia da existência do Poder Público” [29] ou “facultativas, realizadas para satisfazer necessidades sociais, de progresso, bem-estar e cultura”[30].  Assim, diante da dupla personalidade do Estado, admitia-se a responsabilidade do Estado pelos atos de gestão, posto que o fato de serem facultativos denotava uma situação em que o Estado agia como um particular, mas não pelos atos de império indispensáveis ao papel do ente público[31]. Esta classificação, entretanto, era, por si só, um entrave à reparação do particular que se via refém da imprecisão quanto à separação entre duas esferas de atos.

            Ainda neste período em que a soberania irrestrita reconhecida às monarquias impedia a responsabilização do Estado, permitiu-se a imputação direta aos seus funcionários em casos em que sua conduta pessoal culposa lesasse direito do administrado. Parca, entretanto, foi a aplicação desta sistemática, posto que o exercício do direito de ação contra o agente público dependia de autorização prévia de órgãos estatais, o que resultava na manutenção de uma realidade de irresponsabilidade[32]. Ademais, mesmo que se lograsse tal autorização, o pequeno patrimônio do responsabilizado era outro empecilho à plena reparação do dano e vigia a aplicação da legislação cível, nesta seara.

            Em 1º de fevereiro de 1873, o aresto Blanco, proferido pelo Tribunal de Conflitos francês, reconheceu a responsabilidade do estado, independentemente de previsão expressa no ordenamento jurídico e já de acordo com princípios publicísticos, ainda que sem dar ao instituto contorno geral ou absoluto[33]. Tratava-se, nesta oportunidade, de ação indenizatória por acidente ferroviário, provocado por composição da Companhia Nacional da Manufatura de Fumo, que vitimara a menina Agnès Blanco[34].

            Aquele tribunal fora acionado a fim de solucionar o conflito negativo de atribuição, pelo qual se buscava fixar a competência para conhecimento e decisão da ação ao tribunal judiciário ou ao tribunal administrativo[35], posto que na França há o contencioso administrativo[36].

            O Tribunal de Conflitos, então, decidiu não só que cabia à Justiça Administrativa processar e julgar o feito por mau funcionamento daquele serviço público, como também afastou a aplicação do direito civil ao caso, posto que diverso é o regime jurídico a reger aquela relação jurídica. Desta feita, consagrou a autonomia do Direito Público, devolveu ao juiz administrativo o trabalho de formular a teoria da responsabilidade administrativa com base na doutrina e na jurisprudência, posto que não havia texto legal ao qual recorrer[37]. Firmara-se, assim, o entendimento de que a singularidade da relação entre administrado e Administração exigia tratamento diferenciado, não podendo receber o mesmo trato dispensado às relações entre particulares.

            Reflexões desta natureza já estavam presentes, em 1855, na decisão do caso Rotschild[38] e foram reafirmadas, cinco meses após a decisão do caso Blanco, na decisão Pelletier (1873). Nesta última, o Tribunal de Conflitos Francês, frente a uma realidade de irresponsabilidade estatal combinada com a possibilidade de se acionar diretamente o agente estatal causador do dano sem exigência de autorização, decidiu que, em função da separação de poderes, cabia ao Tribunal Administrativo a decisão, nestes casos, impedindo intervenção do Tribunal Judicial nos assuntos da Administração e aplicação do direito comum[39]. Assim, cumpria distinguir entre faltas pessoais, que não diziam respeito ao exercício da função e às quais se aplicava o direito civil, e as faltas funcionais, que deviam ser julgadas pelo Tribunal Administrativo e acarretariam a responsabilização pública[40].

            Reconhecida, como se disse, a autonomia do Direito Administrativo, coube aos publicistas a construção de uma teoria da responsabilidade estatal. A princípio, entretanto, a responsabilidade era reconhecida apenas subjetivamente, é dizer: diante de dano resultante de atuação estatal culposa ou dolosa e, assim, sempre provinha do comportamento ilícito. Era a teoria da culpa administrativa, que exigia a comprovação da culpa do agente público que lesara terceiro. A culpa não precisava, contudo, ser individual, como exigia o Direito Privado. Desta feita, a culpa individual é vista como apenas uma das hipóteses em que há imputação de responsabilidade à pessoa jurídica de direito público.

            A própria formulação da concepção francesa de faute du service demonstrava que a individualização da conduta não era necessária, a despeito de a responsabilidade seguir sendo somente subjetiva. A culpa do serviço da doutrina francesa ocorria em casos em que o serviço não funcionava como devia, funcionava mal ou com atraso. Deste modo, havia sempre culpa, ainda que presumida ou anônima, e a responsabilidade era subjetiva, não precisando a vítima provar que houve culpa, mas cabendo prova em sentido contrário pelo Poder Público[41].

            Um estágio mais recente da aplicação extensiva do instituto analisado se dá com a concepção objetiva da responsabilidade. Deste modo, o comportamento lícito ou ilícito, omissivo ou comissivo, que cause dano ao administrado merecerá reparo. É esta a formulação inscrita em nossa atual Constituição da República, exigindo para a reparação: (i) a ocorrência de um dano; (ii) dano que deve decorrer da atuação ou omissão de agente, nesta qualidade, constatando-se, assim, o nexo de causalidade entre o evento danoso e ação ou omissão estatal, não se perquirindo da culpa do agente; e (iii) um terceiro deve ser o atingido pelo dano. Trata-se da aplicação da teoria do risco administrativo, que se fundamenta no princípio da igualdade entre os administrados frente aos encargos decorrentes da atuação do ente público.

            “Baseia-se esta teoria no risco de dano que a atividade governamental gera para o administrado, impondo-lhe um ônus não suportado pelos demais[42]” ou, ainda, no risco e na solidariedade entre administrados[43]. É este o traçado da responsabilidade do Estado que, desde a Constituição Federal de 1946, integra o ordenamento jurídico brasileiro. Neste sentido, cabe lembrar que a teoria do risco administrativo admite exclusão ou atenuação da responsabilidade em função da conduta da vítima – por culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior, no primeiro caso, ou concorrência de culpas, no segundo. Esta situação, entretanto, deve ser provada pela pessoa jurídica de direito público, caso a indenização seja cobrada judicialmente.

            Poder-se-ia falar, ainda, da teoria do risco integral que é “de natureza objetiva, tem por igual fundamento a simples ocorrência do dano causado pela atividade estatal ao particular[44]” e dispensa, para fins de ressarcimento do administrado, a “culpa do agente ou do serviço, cabível mesmo quando o dano é resultante da culpa ou dolo da vítima[45]”.

            Adotada, entre nós, a teoria do risco administrativo, caberá ao Estado ressarcir o prejudicado sempre que houver a comprovação do nexo causal entre a conduta do agente público, pessoa física identificada que age em nome do Estado, e o dano comprovadamente sofrido pelo administrado. Neste sentido, a diferenciação entre ato lícito, que fere o princípio constitucional de igualdade ao gerar ônus especial e desproporcional a poucos, e ato ilícito, que atenta contra o princípio da legalidade, só interessa ao Estado para fins de direito de regresso. Isto, porque no caso do ato lícito não é cabível ação regressiva, pois é vontade estatal gerar o dano, ainda que imprevisto, quando da determinação da conduta[46]. Nesta esteira, será indenizável o dano certo, direto e presente, posto que o prejuízo futuro só justificará reparação quando inevitável[47].

            Como se observa, a passagem da concepção da irresponsabilidade do Estado para um momento, mais recente, em que este ente é passível de responsabilização está intrinsecamente ligada a dois aspectos, quais sejam: o reconhecimento da personalidade jurídica do Estado e a fixação do princípio da legalidade[48]. A responsabilidade pública, por sua vez, evoluiu tanto no sentido de desvinculação da idéia de culpa do agente público quanto para abarcar também os atos lícitos[49]. Pode-se dizer que tal noção foi além para comportar também a responsabilidade pelo fato das coisas e a adoção de uma teoria do risco[50].

2.3 EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

            Conforme se extraí da redação positivada constitucionalmente no ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade estatal no direito pátrio independerá de culpa ou dolo do agente, podendo, assim, assumir um caráter objetivo. Longa foi, entretanto, a evolução da responsabilidade estatal até que se adotasse tal postura. Neste sentido, cabe uma breve digressão para que se compreenda a modelagem que o instituto assumiu no Direito Brasileiro atual.

            No Direito Brasileiro, também a responsabilização do agente público pelo dano precedeu a do Estado, de modo que, se no período colonial vigorava a irresponsabilidade estatal[51], a partir da Constituição de 1824, inc. XXIX do art. 179[52], estabeleceu-se que os empregados públicos eram estritamente responsáveis pelo abuso e omissões no exercício da função, bem como por não responsabilizarem seus subalternos. Mostra Hélio Helene que os doutrinadores da época, entretanto, constatavam no citado dispositivo que não havia uma transferência da responsabilidade estatal, mas a positivação da responsabilidade criminal do empregado público[53]. O mesmo autor acrescenta que, no Império, “a responsabilidade da Administração Pública, independente da dos funcionários, foi, sobretudo, obra da jurisprudência[54]” sob um viés civilista.

            A Constituição de 1891, no art. 82, determinou a responsabilização do funcionário público por culpa, posto ter-lhe sido atribuída competência apenas para praticar atos legais[55]. Na vigência desta Carta Magna, entretanto, editou-se a Lei 221/1984 que disciplinou, entre outras coisas, a ação de indenização de particulares contra a União.[56] Na seqüência, o Código Civil de 1916, no art. 15, estabeleceu a responsabilidade subjetiva do Estado[57], quando configurada a ação culposa ou dolosa de seus representantes[58]. Daí que a reparação não dependia da ocorrência do dano, mas de ter o ato danoso contrariado o direito[59].

            As Cartas de 1934, no art. 171[60], e de 1937, no art. 158[61], estabeleceram a responsabilidade solidária do ente estatal e de seus agentes por danos que estes causassem por negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos.

            Foi com a Constituição de 1946 que se consagrou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado no ordenamento jurídico brasileiro. Aquela Carta Magna, em seu art. 194[62], disciplinou expressamente tal princípio, que se limitou aos danos decorrentes da atuação que os funcionários de pessoas jurídicas de direito público interno, nessa condição, causassem a terceiros.

            Tratando da grande alteração proporcionada por este dispositivo, Hélio Helene afirma que “a partir dele, a ação indenizatória do particular se volta contra as pessoas jurídicas de direito público e estas é que podem usar da ação regressiva contra os seus funcionários. Acresce que, na primeira parte, não se alude à necessidade de culpa do agente; esta só é indispensável para fundamentar a ação regressiva[63]”. Desta feita, o texto constitucional de 1946 refletia a adoção da teoria do risco administrativo.

            A partir deste momento, portanto, já não cabia discutir dolo ou culpa, bastaria que se formasse o nexo causal entre a ocorrência do dano e a ação ou omissão do agente público.[64] Consagrou-se, assim, a responsabilidade civil do Estado, que constou também na Constituição de 1967[65] e na Emenda Constitucional de 1969[66], nas quais apenas acrescentou-se que a ação regressiva seria cabível também no caso de dolo do funcionário. A nosso ver, entretanto, a ausência deste adendo não impediria compreender que ao dolo estaria estendida a aplicação do instituto, uma vez que se configuraria situação de gravidade ainda maior, justificando ação judicial para o ressarcimento ao erário público pelo agente[67]. Vale lembrar, entretanto, que as Cartas da década de 60 ampliaram o âmbito do instituto que, até ali, se restringia às pessoas jurídicas de direito público interno[68].

            Sob a égide do texto constitucional de 1969, Hélio Helene observa que o art. 107, que trata da responsabilidade do Estado, insere-se no capítulo “Dos Funcionários Públicos”, e, portanto, diria respeito tão-somente aos servidores de quaisquer Poderes, mas nunca aos membros, como o são, para o que aqui interessa, os legisladores[69].

            A Carta de 1988 ampliou a responsabilidade pública. Estendeu-se, assim, o dever de indenizar também quanto aos danos provocados pela atuação de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, e adotou-se o termo “agentes” ao em vez de “funcionários”, o que permitiu uma aplicação mais ampla do instituto.

2.4 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

            A responsabilidade extracontratual do Estado é a obrigação deste de reparar, ressarcir, indenizar, economicamente todo aquele que for lesado por ato omissivo ou comissivo, lícito ou ilícito, de qualquer natureza, desde que decorrente de atuação unilateral sua[70].

            Trata-se, portanto, de garantia constitucional positivada, no par. 6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos: as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. O Código Civil de 2002, por sua vez, prescreveu, em seu art.43: as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

            A Carta de 1988, portanto, ampliou a responsabilização do Estado, estendendo-a, assim, também aos danos provocados pela atuação de pessoas jurídicas de direito privado, que prestem serviço público, e adotou o termo “agentes” ao em vez de “funcionários”, o que permitiu uma aplicação mais ampla do instituto. Deste modo, o constituinte, em relação às Cartas anteriores, ampliou a sujeição passiva da obrigação de ressarcir, abarcando também as hipóteses de delegação do serviço público, e corrigiu a imprecisão que o termo “funcionários” gerava[71].

            Do dispositivo constitucional supracitado decorre que a responsabilidade civil do estado no direito brasileiro se verificará a partir do preenchimento de certos requisitos, quais sejam: (i) a ocorrência de um dano; (ii) dano que deve decorrer da atuação ou omissão de agente, nesta qualidade, exige-se, deste modo, a existência de nexo de causalidade entre o evento danoso e ação ou omissão estatal; (iii) um terceiro deve ser o atingido pelo dano; e (iv) para a responsabilização específica da pessoa jurídica de direito privado, há que se observar se ela presta serviço público. Observadas tais exigências, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos é que responderão aos terceiros e terão direito de regresso com relação ao agente responsável pela ocorrência do dano, única e exclusivamente, nos casos de dolo ou culpa do mesmo.

            Na lição de José Cretella Júnior, “o evento ou fato gerador do dano é o homem que, por ação ou omissão, atinge a pessoa ou os bens de outro homem, responsabilizando-se ou emprenhando a responsabilidade de alguém, pessoa física ou jurídica, em nome da qual desempenha atividades[72]”. O nexo causal, por seu turno, é a relação de causa e efeito entre a conduta do agente público e o prejuízo a atingir o patrimônio do particular. A reparação do dano material ou moral, finalmente, deve compreender danos emergentes, lucros cessantes, honorários advocatícios, correção monetária e juros moratórios, se cabíveis[73]. Na lição de Alexandre de Moraes, inclusive, há que se ater ao art. 178, par. 10, VI, do Código Civil e ao art. 1º do Decreto nº 20.910/32 para se concluir que a responsabilidade estatal está sujeita ao prazo prescricional de 5 anos do ato ou fato[74].

            A responsabilidade do Estado, é preciso esclarecer, decorre de uma conduta unilateral que, mesmo que lícita, omissiva ou comissiva, viole direito alheio, invadindo a esfera juridicamente garantida de outrem, e não meramente debilitando o direito de modo autorizado pelo ordenamento jurídico, como no caso de desapropriação, hipótese em que há direito à indenização, mas não se fala em responsabilidade[75]. No mesmo sentido, ressalte-se que o dispositivo citado explicita que a responsabilização em comento independerá de culpa e o Supremo Tribunal Federal admite que há também nexo de causalidade quando da omissão estatal[76].

            Observado isto, conclui-se que a indenização não se confunde com o instituto da responsabilidade civil do estado por ato lícito. Neste caso, a lesão à esfera juridicamente protegida de outrem surge como mera conseqüência, não como objetivo da atuação/omissão, do exercício de poder deferido ao próprio Estado que deverá ressarcir a pessoa atingida. A indenização, por sua vez, tem aplicação também em casos, como o citado, em que o objetivo estatal era aniquilar o direito alheio, estando autorizado juridicamente para tanto.

2.5 AGENTES PÚBLICOS E RESPONSABILIDADE

            O ordenamento jurídico brasileiro, desde a Constituição da República de 1946, incorporou expressamente a responsabilidade objetiva do Estado que, em sua primeira expressão, limitava-se aos danos decorrentes da atuação que os funcionários de pessoas jurídicas de direito público interno, nessa condição, causassem a terceiros.

            Agente público diz respeito a todo aquele que desempenha função pública, não importando a forma de sua investidura ou a natureza do vínculo que mantém com o ente estatal, se há ou não remuneração, se a atuação é permanente, transitória ou acidental.  Para Maria Emília Mendes Alcântara, o termo abarca quem quer que se apresente perante terceiro como exercente de atividade ou função pública, sendo irrelevante a regularidade de sua investidura[77].

            No mesmo sentido, Edmir Netto de Araújo entende que a noção de agente é mais ampla que a de funcionário ou servidor público[78], abrangendo “todo aquele que, de alguma forma, sob qualquer categoria ou título jurídico, desempenha função ou atribuição do Poder Público como a si pertinente, seja em virtude de relação de trabalho (estatutária ou não), seja em virtude de relação contratual, por encargo público, ou qualquer outra forma de função de natureza pública será, enquanto a desempenhar, um agente público[79]”.

            Juliana Luvizotto, por sua vez, esclarece que a “condição de atuar nessa qualidade revela que o agente deve estar no exercício de suas funções para possibilitar a imputação da responsabilidade ao Estado”, o que “não deve ser compreendido como o estar em serviço, podendo mesmo ocorrer a responsabilidade estatal ainda que o agente esteja fora do seu período de trabalho, bastando que tenha se utilizado da condição de agente[80]”.

            Há que se frisar que o texto constitucional fala em atuação dos agentes e, neste sentido, os três poderes possuem agentes públicos capazes de, com sua atuação, lesar os direitos de terceiros.  Neste conceito, há que se incluir o conceito de agente político, membros de cada um dos Poderes[81].

            Ora, o Estado realiza suas funções, atua e age, por meio de seus agentes, é dizer: é através de pessoas físicas, representantes da pessoa jurídica de direito público, que o Estado atua. Neste sentido, os agentes são não apenas os servidores ou funcionários públicos, mas também, para o que aqui interessa, os legisladores.

            Assim, verifica-se que, com uma interpretação extensiva do que se deve entender por agente e Administração, o Estado deve responder pela atuação legislativa que comprovadamente provoque danos materiais, patrimoniais ou, mesmo, morais a terceiros, com mais razão ainda quando esta atividade se verifica inconstitucional.

2.6  ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

            A ideologia do Estado Democrático de Direito implicou a sujeição de todas as pessoas à ordem jurídica e, conseqüentemente, todo aquele que lesionar bem jurídico deverá reparar o dano. O Estado, logicamente, não foge a este raciocínio.

            A responsabilidade estatal, entretanto, encontra-se regida por uma lógica própria e é mais extensa pela própria função do Estado, que tem muitas prestações a cumprir, que detém o uso da força, que atua em contato constante com bens e direitos dos administrados que não tem como impedir ou minimizar a intervenção estatal. Daí que os danos causados podem ser maiores do que os que se dariam entre particulares e que as situações de lesão aos bens jurídicos sejam de maior variedade.  A aplicação cada vez mais extensiva da responsabilidade do Estado se impõe pela concepção do Estado de Direito.

2.7 FUNÇÃO LEGISLATIVA

            Tratando da tradicional tripartição das funções estatais, Marisa Helena D’Arbo lembra que foi “com Montesquieu que a teoria da tripartição dos Poderes consolidou-se e incorporou-se ao Estado Constitucionalista Moderno, com a divisão do exercício do poder (função) e a previsão da correspondência entre a divisão funcional e a divisão orgânica da atividade estatal[82]”. Deste modo, cada uma das funções do Estado corresponde a um Poder, que são os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

            A doutrinadora Maria Emília Mendes Alcântara[83], questionando se se está diante de poderes ou de órgãos exercentes de funções estatais, conclui que, tecnicamente, não há que se falar em Poderes do Estado, mas em Funções do Estado. Disto compreende-se que o Poder é uno e, portanto, não poderia se entender a responsabilidade estatal objetiva pelo exercício de uma função e não de outras[84]. Todos os atos, assim, devem ser considerados como frutos de um mesmo poder e tratados, conseqüentemente, da mesma forma[85].

            No mesmo sentido, Juary C. Silva entende que “assente que o Poder do Estado é uno, distinguindo-se apenas as funções por meio das quais ele atua, normalmente confiadas a órgãos distintos (chamados, com evidente impropriedade de Poderes), infere-se que qualquer ato estatal será hábil a ensejar a responsabilidade do Estado perante o lesado, independentemente do órgão estatal que o praticou[86]”. Daí, não há que se distinguir entre atos legislativos, executivos e judiciários para fins de responsabilização do Estado[87].

            O mesmo autor afirma que a unidade do Poder é política, pois juridicamente ele se encontra dividido nas supracitadas funções[88]. Perquiri, então, do conteúdo da função legislativa que, para ele, é “aquela por meio da qual o Estado cria normas jurídicas gerais e abstratas, de acordo com o que prevê a respeito a Constituição[89]”, alertando quanto ao caráter aproximativo do enunciado e à pouca utilidade prática do mesmo[90].  

            Disto, o estudioso conclui que, no ordenamento jurídico brasileiro, não há total coincidência entre função legislativa e órgão legislativo, posto que: (i) todos os poderes expedem atos normativos, com destaque para as medidas provisórias e leis delegadas, por meio das quais o Executivo participa do processo legislativo; e (ii) o Legislativo exerce atribuições jurisdicionais, como se dá no processo de impeachment, e executivas, ao dispor sobre a criação de cargos e serviços internos[91]. De todo modo, Juary C. Silva reconhece a insuficiência da divisão orgânica, bem como a vagueza da definição da atividade legiferante[92].

            Nesta esteira, Hélio Helene[93] assevera que, além dos atos legislativos de incumbência do Chefe do Executivo, o Executivo participa da elaboração da lei ora através do exercício do poder de veto, ora por ser de sua iniciativa exclusiva. Valendo dizer que também há projetos de lei cuja iniciativa compete ao Poder Judiciário, como é o caso do Estatuto da Magistratura (art. 93, caput, da Constituição da República de 1988). Salienta, então, o autor que tal classificação das funções estatais não se faz pela exclusividade no exercício das atribuições, mas na principalidade ou preponderância[94].

             Edmir Netto de Araújo, tratando das funções do estado, definiu a função legislativa como “exercício da atividade ou função de deliberação” e asseverou que “compreende essa função o estabelecimento de regras gerais e impessoais de direito, às quais todos deverão obedecer[95]”. Ensina, ainda, que tal atividade compete aos eleitos pelo podo para dizer o direito, sendo que o Poder Legislativo é a organização corpórea e permanente desta função estatal[96].

            Esclarecido que a função legislativa é mais uma das exercidas pelo Estado, observa-se que também está submetida à ordem jurídica e aos limites que lhe foram impostos constitucionalmente[97]. Daí que só se possa aceitar alguma diferenciação entre os Poderes para fins de responsabilização pela atividade danosa em face de peculiaridades que a justifiquem – é o caso do tratamento dado ao direito de regresso em face dos legisladores, como se verá adiante. Incumbe, portanto, demonstrar o nexo causal entre dano e serviço público legislativo[98].

3. RESPONSABILIDADE POR ATOS LEGISLATIVOS

        

3.1 FUNDAMENTOS DA IRRESPONSABILIDADE

            Longo foi o período no qual vigeu a teoria da irresponsabilidade do Estado. Como “as características da atividade da administração pública, nelas incluídas, além do caráter prático, a continuidade e espontaneidade, tornam mais freqüente a ocorrência de danos resultantes de atos da administração[99]”, foi quanto à Função Executiva que, primeiramente, se desenvolveu uma teoria da responsabilidade. Na seqüência, questionou-se a responsabilidade por ato jurisdicional, pensamento que apresenta, ao menos, duas peculiaridades, segundo Hélio Helene: a produção da coisa julgada e a o direito ao devido processo legal[100]. Menos aventada é a responsabilidade por ato legislativo que, para aquele autor, implica um estudo que considera o caráter abstrato da lei e o fato de ter o ato legislativo primariedade frente aos demais comandos estatais[101].

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            Analisando a evolução da responsabilização estatal nos três poderes, observa Cretella Júnior que: “no campo da responsabilidade pública, em relação aos Poderes do Estado, a evolução foi sucessiva, gradual, por períodos, tendo ocorrido primeiro, no âmbito do Poder Executivo, a regra; depois, no campo do Poder Legislativo, a exceção[102]”.

            Para Marisa Helena D’Arbo, a “dificuldade na sistematização da matéria refere-se à questões como a aceitação da lei – ato legislativo – como fonte geradora da responsabilidade do Estado, do Parlamento como órgão capaz de submeter o Estado à responsabilização e, ainda, dos agentes legislativos como agentes públicos a obrigarem o Estado[103]”.

            Vários, portanto, foram os argumentos para justificar a irresponsabilidade do Estado legislador, ainda quando aos atos administrativos e judiciais passou a ser oponível o princípio da responsabilidade pública. Fundamentou-se[104] a impossibilidade de se indenizar por ato legislativo: (i) por conta da soberania do Poder Legislativo; (ii) pelo tradicional conceito de lei, vontade geral da nação; (iii) pelo entendimento de que a lei, quando proíbe atividade, o faz por ser esta prejudicial ou contrária ao direito; (iv) por faltar individualidade e especialidade ao dano gerado pela lei, prejuízo que se reparte dentre todos; e (v) pela separação do poderes, por meio da qual ao Judiciário não caberia atribuir responsabilidade se a lei não o faz, posto que invadiria a seara legislativa.

            Soberania

            A reflexão a respeito da responsabilidade do Estado por atos legislativos suscitou uma série de argumentos em oposição à extensão da teoria da responsabilidade ao exercício da função legislativa. Dentre os raciocínios construídos, neste sentido, Maria Emília Mendes Alcântara aponta, como o mais antigo, a defesa da lei como um ato de soberania, podendo ser imposta a todos sem ensejar qualquer compensação[105]. Deste modo, a lei seria, portanto, a expressão máxima da soberania estatal[106].

            Tratava-se de uma época em que soberania e responsabilidades eram antônimos e a lei não poderia lesar injustamente os administrados, por conta de sua supremacia[107]. Tal posição convivia já com a responsabilização pelos atos de gestão, mas, mesmo tendo sido vigorosamente questionada a soberania, Canotilho afirma que restou como “seqüela ineliminável da soberania a lei que nunca cessou de ser reputada como um acto perfeito e incontestado[108]

            A doutrinadora citada observa, a este respeito, que a soberania é atributo do Estado e não de seus poderes. Neste sentido, Hélio Helene acrescenta que a “soberania do Estado se traduz em todos os atos deste, providos de autoridade pública. Portanto, tanto a lei, quanto a sentença, quanto o ato administrativo são manifestações da soberania do Estado. A lei – sem desconhecer o caráter de supremacia em relação a outros mandamentos do Estado e sem entrar no exame dos fatos que a hajam determinado – é um ato estatal, produzido por um órgão do próprio Estado e, por isso, revestido da autoridade deste[109]”.

            Paulo Gilberto Cogo Leivas, por sua vez, é da opinião de que a soberania é o poder supremo e independente, daí que só o poder constituinte seja soberano e não o Poder Legislativo, que se submete aos limites constitucionais[110].

            Acrescenta Maria Emília Mendes Alcântara, ainda, o fato de que a lei deve necessariamente estar submetida à ordem constitucional. Daí que não se possa opor a soberania legal à Carta Maior[111]. Esclarece Miguel Marienhoff, por seu turno, que soberania não significa infalibilidade ou impunidade[112].

           

            Conceito de Lei

            Fato é que a “afirmação da irresponsabilidade do Estado por ato legislativo tem como pano de fundo a definição da lei como ato de caráter geral e impessoal[113]”. Norma geral, impessoal e abstrata não ensejaria desigualdade, impondo-se a todos por igual sem gerar prejuízo ressarcível.

            A realidade, entretanto, demonstra que não são poucas as leis editadas para atender aos interesses de grupos específicos e que objetivam, assim, atingir pessoas determinadas, causando-lhes especificamente danos. Para tais cidadãos o caráter geral e impessoal da lei desaparece e ela se impõe discriminadamente. Em outras circunstâncias, leis direcionadas ao bom cumprimento do interesse público geram, neste intuito, também prejuízos a certa parcela da sociedade[114].

            Já apontava Canotilho que, na realidade do Estado intervencionista, a fronteira entre atos legislativos, gerais e abstratos, e atos administrativos tornou-se incerta. Daí que “muitas das modernas leis não são já normas gerais e abstratas, mas sim reacções estaduais tendentes a resolver problemas concretos e singulares, situações de necessidade carecidas de remédio urgente, dotadas de executividade imediata e aderentes a um facto determinado[115]”. Reconhece o autor português, ainda, que há leis que se referem a uma pessoa ou grupo determinado ou, ainda, dizem respeito a fatos particulares[116].

            Neste sentido, cabe distinguir lei material, norma abstrata e geral, e lei formal, ato expedido em conformidade com o processo disciplinado e com o poder conferido constitucionalmente[117]. Deste modo, não é lei o ato que não emana do Poder Legislativo, ainda que tenham força de lei, como é o caso da medida provisória. Nossa Constituição Federal, vale dizer, não limitou o campo da lei, cabendo a esta apenas obedecer à própria Carta Maior[118].

            Deste ponto de vista formal, portanto, não há empecilho a que a lei fuja à generalidade e atinja um ou um grupo específico. “O caráter de generalidade, que, por pressuposto, se atribui à lei, primeiramente não é confirmado por numerosos casos (lei em sentido formal), nem é impeditivo, de modo absoluto, que uma norma geral cause na sua aplicação desmedido sacrifício a um ou alguns indivíduos[119]”.

            Para Tércio Sampaio, o pensamento de que a lei deveria prescrever normas gerais, dirigidas à universalidade, é fruto do liberalismo que repelia a idéia de privilégio. O professor, entretanto, observa que, modernamente, já não se faz tal restrição. Continua-se, assim, a afirmar que as leis são normas gerais, embora se reconheça que existem leis com efeitos particularizados[120].

            Paulo Gilberto Cogo Leivas é do entendimento de que o ato legislativo é a lei formal, ou seja, a que emana do Parlamento, mesmo que não seja norma jurídica (lei de efeitos concretos). Desta feita, a generalidade não é requisito para se reconhecer a lei[121].

            Frise-se que não há que se falar em responsabilidade por dano decorrente de disposição constitucional, pois o constituinte originário é irresponsável, cria amparado pela soberania nacional[122]. Hélio Helene, neste sentido, trata da hipótese de inconstitucionalidade da norma constitucional decorrente do exercício do poder revisional, exercido através das emendas constitucionais, e o poder constituinte derivado, pelo qual os estados-membros elaboram suas próprias constituições[123]. Assim, José Cretella Júnior também reconhece a possibilidade de inconstitucionalidade de normas federais, estaduais e municipais[124].

                        Tratando do tema, Miguel Marienhoff afirma que a reforma constitucional tem limites materiais nas cláusulas pétreas, realidade também presente no direito argentino, e procedimentais[125]. Daí falar-se em norma constitucional inconstitucional em função do exercício do poder revisional em conflito com o texto originário ou excedente em relação ao campo de alteração.

            Tal não é a opinião de Juary C. Silva, para quem quanto “à responsabilidade estatal, afigura-se que tal problema não se coloca, ex definitione, quando se cuida de atos do Poder Constituinte, originário ou derivado, bem assim de quaisquer normas de índole constitucional[126]”.

            A Constituição de 1988, disciplinando os atos legislativos, dispôs: Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções. Deste modo, o ordenamento jurídico brasileiro consagrou que há três espécies de leis (complementares, ordinárias e delegadas) que estão no mesmo plano hierárquico, sendo reservada constitucionalmente às leis complementares algumas matérias[127]. Além disto, podem ser as leis federais, estaduais e municipais.

            A lei como inovação no universo jurídico

            Outra tese defendeu que a lei, por ser de sua natureza inovar no ordenamento jurídico, não viola direito anterior, pois este passa a se subordinar à nova norma ou deixam de existir. Deste modo, não caberia argumentar que há direitos adquiridos, pois é da atividade legislativa a constante modificação[128].

            Seria o “reconhecimento de que a configuração do direito é dada pela lei e, portanto, esta, que cria e delimita o direito, não pode atentar contra este. Daí, se a lei limita direitos já concedidos, traz encargos a serem suportados pelos indivíduos, como membros da sociedade[129]”, ressalvando-se a hipótese de leis inconstitucionais. Nesta esteira, “quando a lei suprime um direito já concedido, pode compensar ou não esse sacrifício[130]”.

            Nesta seara, há que se perquirir se a atuação do legislador está respeitando os ditames constitucionais. Caso se afigure desrespeito à Carta maior, certo será o direito à reparação pelo dano inconstitucionalmente criado[131].

            Incentivo à atividade legislativa

            Fugindo aos raciocínios jurídicos, há quem proclame que a responsabilização por ato legislativo prejudicaria a criação legislativa. Os legisladores ficariam, assim, intimidados pela aplicação do instituto e o ordenamento jurídico sofreria os maiores danos em atraso e estagnação[132].

            Tal raciocínio apenas poderia resultar em uma desigualdade de tratamento entre os poderes do Estado. Seria ignorar que o progresso também no campo administrativo ocorre  que “não mais se debate na atualidade sobre a possibilidade de o Estado indenizar danos que a sua atividade administrativa pode acarretar a terceiros, e tal ponto de vista, em nenhum momento, chegou a eliminar a dinâmica necessária ao proceder da Administração[133]”.

            Certamente, por outro lado, o progresso normativo se daria com acertos e não pela ignorância dos erros cometidos. A aplicação da responsabilidade civil do Estado aos atos legislativos implicaria verdadeiro amadurecimento da classe parlamentar que se veria obrigada a ser técnica em seu trabalho, a dimensionar o alcance dos efeitos da função legislativa e incluir no ato legislativo mesmo a norma a restabelecer o equilíbrio econômico.

            Ademais, tal irresponsabilidade contraria o princípio da isonomia entre os administrados, impondo a alguns o dever de arcar com o ônus da efetivação do interesse coletivo[134].

            O legislador é autor e lesado

            Finalmente, há os que alegam que o legislador é também parte da coletividade atingida pela norma e, assim, confunde-se com o lesado. Daí que, sendo autor e lesado, não pode o Estado ser responsabilizado pelos danos que causar[135]. Mais uma vez, Edílson Pereira Nobre Júnior explicita que o mesmo não se alega quanto ao Executivo, poder que também tem seus representantes eleitos e nem por isto está isento do dever de responder pelos prejuízos que acarretar a terceiros[136].

            Neste sentido, Hélio Helene acrescenta o argumento de que, por ser o legislativo o fautor da lei, não seria possível a seus componentes agir com culpa ou, ao menos, a individualização desta seria difícil[137]. O mesmo doutrinador, adiante, esclarece, entretanto, que não se trata de apurar as condutas dos parlamentares, mas de verificar as conseqüências concretas do ato prejudicial[138].

            Imunidade Parlamentar

            Neste sentido, ensina Cretella Jr. que “se cada parlamentar é protegido pela imunidade, inerente ao cargo, a qualquer tipo de responsabilidade será também imune o ato emanado do colégio parlamentar, que é a síntese da manifestação da vontade de cada um de seus membros[139]”. Mas “a responsabilidade do Estado não está ligada à possibilidade, ao menos teórica, de imputação do respectivo órgão ou agente,[140]”daí que não seja tal alegação argumento suficiente a afastar a responsabilidade do Estado Legislador.

            Impossibilidade de o judiciário conhecer de ato exclusivamente político

            Maurício Jorge Mota define atos políticos como “aqueles atos que dizem respeito ao poder estatal em bruto, pré-jurídico[141]” como o exercício do Poder Constituinte. Ademais, “apenas o exercício do poder constituinte originário é insindicável pelo Poder Judiciário, sendo seus atos insuscetíveis de gerar a responsabilidade civil do Estado legislador. O poder constituinte derivado, por já ser um poder condicionado pela ordem jurídica, poderia ensejar a responsabilidade estatal[142]”.

            Também no sentido de admitir o controle judicial da atuação do legislativo, Edmir Netto de Araújo afirma que “a atividade de legislar é política mas não exclusivamente política, uma vez que está adstrita ao ordenamento constitucional[143]”.

3.2 FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE

            Neste contexto, há que se esclarecer, a princípio, quem são os personagens da relação jurídica enfocada. É preciso, assim, conceituar o Estado “como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território[144].” A soberania nacional é expressada pelo Estado no desempenho de cada uma de suas funções, é dizer: legislativa, executiva e judiciária.

            Há, ainda, que reconhecer o Estado como a pessoa jurídica de direito público.[145] Ademais, a “responsabilização do Estado é conseqüência da personalização deste ente e da sua subordinação ao Direito[146]”.

            Acentua Marisa Helena D’Arbo: “A desmistificação do conceito de soberania, a unidade do Poder Estatal e os postulados do Estado de Direito são fundamentos utilizados pelos doutrinadores partidários da tese da responsabilidade do Estado, para afastar o dogma da irresponsabilidade e propugnar pela responsabilização ampla deste ente jurídico em todas as suas atividades, seja administrativa, judiciária ou legislativa[147]”.

            Além disso, ensina Juary C. Silva que o Estado, ente dotado de personalidade jurídica como já se disse, sujeita-se “à responsabilidade perante terceiros prejudicados em virtude de atos seus, qualquer que fosse a fonte de tais atos, isto é, proviessem eles de órgãos executivos, legislativos ou judiciários. Isso, ademais de ter respaldo lógico, corresponderia ao princípio da igualdade de todos perante a lei[148]”, de modo que alguns não deixariam de ser ressarcidos em virtude de o ato danoso ser uma lei e não uma to administrativo, por exemplo.

            Uma vez estabelecido o princípio da responsabilidade estatal, uma série de novos desafios surgiram ao jurista quanto a sua aplicação.          Coube, assim, ao operador do Direito constatar que a lei, fruto principal da função legislativa, poderia diretamente causar danos injustos, ainda quando não fosse a mesma inconstitucional. Questionou-se, assim, o próprio conceito de ato legislativo, antes visto como “expressão máxima da soberania estatal[149]”.

            “Se a lei, ato geral e impessoal, dirigida à grande massa dos administrados, estabelecendo situação de igualdade para todos; se a lei, por princípio inatacável, porque expressão do anseio médio da coletividade; se a lei, produto de requintada e complexa técnica legislativa, a bem dizer, se identifica com o próprio Estado, que a ela também se submete, como pretender responsabilizar a pessoa jurídica matriz pela edição do ato, que ao próprio órgão editor interessa? [150]”.

            Várias teorias foram formuladas para justificar a responsabilização estatal por ato legislativo. Como mostra do esforço jurídico para impingir também ao Legislativo a responsabilização civil por sua conduta lesiva, bem como a evolução deste pensamento, passamos a expor teorias que foram, neste sentido, criadas.

            Um dos fundamentos da responsabilidade pública é a teoria do enriquecimento sem causa do Estado.[151] Neste sentido, o ato legislativo geraria um acréscimo ao patrimônio público em detrimento do privado. Cretella Jr. exemplifica esta teoria com a hipótese da atividade econômica que, em virtude de lei, passa a ser monopólio do Estado que, assim, aumenta seu patrimônio[152]. A crítica feita a tal pensamento é particularmente com relação ao fato de que o ato legislativo objetiva concretizar um interesse público, daí que não seria sem causa, o que, por sua vez, ocorre nos atos ilegais e nos eivados de desvio de poder.

            A teoria da indenização dos danos derivados de atos legislativos construtivos[153], por sua vez, parte da diferenciação entre os atos legislativos construtivos, que inovam na ordem jurídica e ensejam indenização, e os normativos, que apenas tratam da norma jurídica preexistente. A distinção, na prática, é difícil e, de todo modo, nem toda lei construtiva justifica indenização. Nesta esteira, podemos exemplificar com uma lei que ampliasse o intervalo de idade escolar obrigatória. Estar-se-ia, assim, diante de norma que inova no ordenamento jurídico sem, contudo, justificar reparação por parte do Estado.

            De autoria de Otto Mayer, a teoria do sacrifício especial[154] prescreve que se um particular ou grupo de particulares sofre prejuízo especial em função de uma lei que vise atingir o interesse público, ele deve ser indenizado, arcando, portanto, a coletividade por aquele sacrifício. “O sacrifício especial surge quando o indivíduo é afetado de maneira desigual e desproporcional por prejuízos que extrapolam os prejuízos normais, impostos a todos, como decorrentes da relação Estado e súditos, em um sistema de perdas e garantias recíprocas, condição de existência do próprio Estado[155]”. O ressarcimento, nesta seara, objetiva diluir o sacrifício, tornando-o coletivo.

            Cabe trazer à baila, ainda, a teoria da expropriação[156]. Tal fórmula preconiza que deve haver indenização quando o Estado ataca a propriedade, tida aqui em sentido amplo. Assim, a prática de uma atividade econômica, que o ente estatal pretende agora monopolizar, poderia ser vista como uma propriedade e assim ensejar a indenização decorrente da desapropriação. A grande crítica feita a tal pensamento é que ocorre a distorção do instituto da desapropriação, que se limita à apreensão forçada da propriedade particular pelo ente público.

            Das mais importantes é a teoria da igualdade dos encargos públicos, que se fundamenta no princípio constitucional da igualdade e implica não deve haver desigualdade entre os administrados em termos de ônus suportados em proveito da implementação do interesse comum.

            Estas teorias, representam a busca do jurista por evitar que ao particular coubesse o ônus exclusivo de uma legislação criada em proveito da coletividade. O rigor jurídico, entretanto, revela que aquelas não puderam explicar todos os casos em que o ente estatal deve indenizar pelos danos provenientes de sua atuação legislativa, além de buscar fundamento diverso daquele usado para ressarcimento de prejuízos advindos de atos executivos e jurisdicionais[157].

            Ora, diante dos termos em que, constitucionalmente, está prevista a responsabilidade civil do Estado, não há que se buscar em fórmulas várias o fundamento da obrigação estatal de indenizar pelo ato legislativo danoso. Observa-se que a Constituição Federal de 1988 não fez distinções entre os Poderes para tais fins, garantindo a indenização pela pessoa jurídica de direito público pelo dano causado por seus agentes, nesta qualidade, a terceiros. Trata-se, portanto, de situação em que também se visa proteger o princípio igualdade.

            Assim, lesado pelo ato legislativo, surge ao indivíduo o direito subjetivo ao ressarcimento. Tratando do modo com que o Estado responde, nestes casos, Cretella Jr. afirma: “Em dinheiro, quando é necessário fazer prova concreta da ofensa gerada pelo ato legislativo danoso. Em espécie, quando o simples exame dos autos possibilita ao magistrado a verificação imediata do prejuízo” [158]

            A doutrina, via de regra, ao tratar da responsabilidade por ato legislativo, aborda três hipóteses: (i) a lei que causa dano assegura direito à indenização quanto a este; (ii) a lei é silente quanto a tal direito; e (iii) a lei nega expressamente o direito à reparação[159].

            No primeiro caso, a questão seria restrita ao valor da indenização, posto que o direito à mesma já se encontra explicitamente assegurado. Já no segundo caso, já houve defesa no sentido de que se a lei é silente, não poderia o juiz se substituir ao legislador e, assim, conceder a indenização[160]. Ora, raciocínios desta natureza só são cabíveis quando as normas não são interpretadas em sua relação com o diploma constitucional. Deve-se, assim, buscar a norma constitucional que dispõe a respeito da responsabilidade estatal e ali encontrar-se-á a norma a ser aplicada frente aos efeitos legais danosos.

            No ordenamento jurídico brasileiro, caberá compensação sempre que lei provocar lesão patrimonial certa, anormal e especial[161]. Isto, porque o §6º do art. 37 da Constituição de 1988, ao dispor a respeito da responsabilidade objetiva do Estado, não fez distinção entre os atos legislativos, executivos e jurisdicionais, preferindo assegurar indenização aos atos danosos dos agentes estatais ou de pessoas jurídicas no exercício de atribuições do poder público.

            Quando a lei nega expressamente o direito à indenização por dano que ensejar, traz em seu bojo norma inconstitucional (que exclui direito do administrado) e, assim, deve o prejudicado recorrer à disposição constitucional acerca da responsabilidade estatal para se proteger dos efeitos danosos de norma constitucional presente naquele texto legal. A inconstitucionalidade, que consiste na negação do direito de reparação patrimonial, pode, assim, ser argüida incidentalmente na própria ação de indenização[162]. Assim, se não reconhecido o direito à reparação legalmente, será o Judiciário competente para reconhecer a inconstitucionalidade de sua negação e reconhecê-lo[163]. “Aderimos”, assim, “a essa, entendendo que o próprio legislador não pode eximir-se de responsabilidade, pela simples inclusão de cláusula liberatória no texto do ato legislativo ofensivo[164]”.

            Interessante notar que o dano deriva, de fato, do ato lícito e constitucional que viola o princípio da igualdade e não do dispositivo que nega o direito constitucionalmente assegurado à reparação do prejuízo pelo Estado. Neste sentido, pode-se considerar, como o faz Maria Emília Mendes Alcântara, que a vítima é duplamente lesada, pois, além do dano gerado constitucionalmente, está diante norma inconstitucional que lhe nega direito a reparo. Tal óbice, entretanto, como afirma a mesma estudiosa, não afetará o valor do ressarcimento, posto que este será o da época do pagamento[165].

            Diferente da posição ora esposada, é a de Cretella Jr. que ensina: “Os requisitos exigidos para efeitos de indenização assim se resumem: 1º) só ocorre indenização quando o próprio legislador, expressa ou tacitamente, a concedeu; 2º) se o legislador não fixou a indenização, ou omitiu-se, cabe ao juiz decidir de acordo com o que a lei preceituou; 3º) se a lei nada disse a respeito da indenização, vigoram as seguintes regras: a) de modo algum se concede indenização se a atividade vedada ou restringida era imoral, ilícita ou contrária ao interesse público; b) não se concede indenização a não ser que o prejuízo, por sua especialidade ou gravidade, ultrapasse o normal dos sacrifícios impostos pela legislação; c) não cabe indenização se o sacrifício imposto pelo legislador tem por objetivo o interesse nacional; d) cabe, porém, indenização se o sacrifício imposto pela medida legislativa recai sobre interesses particulares com a finalidade de favorecer ou proteger outros interesses particulares[166]”.

            Neste sentido, Miguel Marienhoff entende que não cabe indenização ao atingido por lei que proíba para o futuro o exercício de atividade perigosa, lesiva à saúde ou à moral públicas. A reparação só seria cabível, se a atividade atingida fosse lícita e não afetasse a saúde ou moral públicas[167]. Este não é nosso entendimento, posto que, embora contrárias “a algo como os bons costumes”, tais atividades estavam protegidas pelo ordenamento até, então, vigente. Seria ferir a segurança jurídica, surpreendendo particulares que àquele labor se dedicaram, por vezes, com exclusividade. O doutrinador argentino, entretanto, faz interessante ponderação, ao reconhecer na indenização por criação de monopólio de atividade lícita uma decorrência lógica do direito constitucional à propriedade, ao direito ao exercício da indústria lícita e a comercializar[168].

            Desta forma, para alguns autores, a irresponsabilidade do Estado Legislador só excepcionalmente dá espaço à indenização concedida pelo próprio legislador por lei ou relativa a dano decorrente de lei declarada inconstitucional[169].

            Interessante observar que se a responsabilização por ato ilícito decorre do princípio da legalidade, a por ato lícito respeita ao da igualdade[170]. Neste sentido, quando a atuação lícita do ente estatal afeta alguns membros da coletividade, a indenização patrimonial objetiva corrigir a desigualdade gerada.

3.3 LEIS CONSTITUCIONAIS DANOSAS

            Apesar de a lei ser conceituada, tradicionalmente, como ato geral, impessoal e abstrato, a realidade mostra que, por vezes, aquela pode atingir particular ou grupo de particulares especificamente[171]. Deste modo, há pessoas que são os destinatários exclusivos da norma ou sofrem seu impacto de modo anormal e especial[172]. Trata-se, na verdade, de aparente “lei em tese”, que, a despeito de ter sido elaborada e aprovada em obediência ao procedimento constitucionalmente previsto, não é dotada daquela generalidade[173].

            Como ensina Cretella Jr., é “lei na forma, mas, na realidade, é verdadeiro ato administrativo pela substância ou conteúdo, o que não estava na previsibilidade do legislador” [174]. Cabe, portanto, a indenização, quando o bem coletivo é feito com o sacrifício de um ou de poucos, pois, se a todos o encargo é igualmente imposto, não haverá direito a compensação [175]. Canotilho aponta, portanto, que a questão é de saber se é exigível que o particular suporte o encargo ou se se trata de uma hipótese que implica o ressarcimento em virtude da desigualdade provocada pelo ato lícito[176].

            No mesmo sentido, não se trata aqui de se saber se a ruptura do princípio da igualdade quanto ao ônus que se arca pelo bem da coletividade se verifica quando dos posteriores atos de execução, devendo o próprio texto legal por si só ensejá-la ou se estaria diante da responsabilidade por ato administrativo[177]. É o que ocorre nas leis de efeitos concretos, as quais restringem ou eliminam direitos[178].

            Dentre os exemplos que se pode citar a respeito encontram-se: a legislação urbanística, particularmente as leis de zoneamento que, invariavelmente, podem implicar a eliminação do direito de edificar; e a instituição de monopólio por via legal a inviabilizar a atividade econômica protegida pela norma anterior [179]. Quanto ao último exemplo, Cretella Jr. ensina que o Estado pode impor medidas restritivas ao exercício da atuação comercial ou industrial sem que caiba ressarcimento, desde que no exercício do poder de polícia e, assim, com vistas à regulamentação da atividade[180]. Se o objetivo, entretanto, é o de criar um monopólio sobre a atividade lícita, parece-nos que será sempre devida indenização pelo prejuízo comprovadamente sofrido.

            A primeira decisão[181] que reconheceu o dever estatal de indenizar por um ato legislativo constitucional data de 1938 e ocorreu na França, quando o Conselho de Estado Francês decidiu caso envolvendo a Companhia La Fleurette. Nesta oportunidade, uma lei, que objetivava proteger o setor leiteiro, proibiu a fabricação de substitutos do leite que tivessem certos empregos. Desta forma, atingiu pouquíssimas empresas, dentre as quais a citada. Diante da situação de desigualdade advinda do ato legislativo, coube àquela Companhia suportar o ônus pela proteção legal da indústria de laticínios que estava à beira de um colapso, em virtude do princípio da igualdade frente às despesas advindas da realização do interesse coletivo. O caso é interessante, pois se tratava de situação em que o legislador silenciou a respeito do direito à reparação e, assim, decidiu-se que só frente à negação legal ao direito à indenização é que não caberia ao Judiciário conferi-lo[182].

            Também importante é a decisão do caso Bovero de 20.01.1963[183], em que um locatário que tinha um filho que estava mobilizado, servindo ao exército francês na Argélia, seria despejado em virtude de sentença judicial que reconhecera o direito do locador. Na fase de execução do julgado, uma lei suspendeu os despejos movidos contra aqueles que tivessem parentes mobilizados. Deste modo, o comando legal atingiu um número restrito de pessoas, proprietários que se viram atingidos em seus direitos. Foi, então, responsabilizado o Estado por conta dos danos trazidos pelo diploma em reafirmação ao princípio de igualdade de todos perante os encargos públicos. Um destaque desta decisão é o reconhecimento do direito à reparação em casos em que os prejudicados são indetermináveis[184] e individualizados somente quando da execução do comando normativo, momento em que se verifica a especialidade do dano[185].

            Do exposto, claro está que cabe indenização por ato legislativo constitucional que, por si só, provocar prejuízo certo, anormal e especial a um particular ou a um grupo de particulares[186].

            Interessante a observação de Yussef Said Cahali, para quem o verdadeiro problema da responsabilidade do Estado Legislador é quanto à “possibilidade de indenização do dano causado pelo ato normativo ainda que conforme às regras constitucionais[187]”, pois a análise de tal responsabilização exige o exercício regular da função legislativa.

            Nesta esteira, César Viterbo Matos Santolim considera que a lei inconstitucional danosa ou a lei de efeitos particularizados prejudiciais não são hipóteses de responsabilidade estatal por ato legislativo, mas por atos ilícitos – ou pelo vício da inconstitucionalidade ou pela natureza de ato administrativo. Para tal autor “estuda-se o ato legislativo lícito (geral, abstrato e constitucional), que gera danos. Ficando o Estado, independentemente de manifestar seu poder pela via executiva, legislativa ou judiciária, preso à responsabilidade objetiva por seus atos, que necessita, tão-somente, da demonstração de prejuízo antijurídico e do nexo de causalidade entre este e o ato estatal, o que deve ser examinado é se o interesse tutelado juridicamente e que serve de substrato ao ato, é mais ou menos relevante que aquele que decorre do dano havido. No primeiro caso, o dano não é ressarcível, posto que não é antijurídico. No segundo, sim[188].”

           

3.4 LEIS INCONSTITUCIONAIS DANOSAS

            A lei inconstitucional é aquela que ofende a Constituição, sendo com esta, no todo ou em parte, incompatível ou inconciliável ou tendo desrespeitado alguma (ou algumas) das disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo – desde a iniciativa até a promulgação e sanção presidencial (CF, arts. 59 a 69)[189]. Alguns doutrinadores criticam a utilização do termo lei inconstitucional, pois é “da natureza mesma do conceito de lei a sua adequação ao ordenamento jurídico. O descompasso entre norma inferior (ato legislativo) e norma superior (constitucional) retira da primeira o seu dom de legalidade. Resulta o ato em mera atividade da administração, cuja responsabilidade será apurada em atenção a princípios largamente conhecidos[190]”.

            De todo modo, observa-se que a atividade legislativa, diferentemente de muito do que já se disse, é vinculada material e formalmente. A Constituição Federal disciplina o procedimento a ser seguido para a elaboração dos atos legislativos, além de estabelecer uma série de normas materiais contra as quais a lei não pode dispor. Desta feita, o diploma legal inconstitucional, por um motivo ou por outro, ensejará a reparação patrimonial respectiva.

            Em virtude da previsão constitucional do controle de constitucionalidade[191], no Brasil, a diferenciação entre atos legislativos constitucionais e inconstitucionais para fins de responsabilização do Estado adquire, aqui, outra importância. Segundo Maria Emília Mendes Alcântara, é preciso identificar se a inconstitucionalidade é formal – e, assim, dar ao ato o mesmo tratamento dispensado ao ato lícito que causa danos – ou material, caso em que o dano resulta diretamente do desrespeito à ordem constitucional e, de outro modo, não teria ocorrido[192].

            No primeiro caso, portanto, frente à inconstitucionalidade formal deve o prejudicado demonstrar que sofreu um dano anormal e especial para fins de obtenção do ressarcimento[193]. No segundo caso, por sua vez, todos os que forem lesados em virtude da inconstitucionalidade material poderiam argüi-la em juízo e, assim, ser indenizados até que a mesma fosse declarada[194].

            No mesmo sentido, Canotilho admite a responsabilidade frente à inconstitucionalidade formal[195], mas aponta que a inconstitucionalidade material implica novos desafios à argumentação.

            Tal não é nosso entendimento. Defendemos que a indenização e a declaração de inconstitucionalidade são imprescindíveis em um e em outro caso. Isto, porque a declaração do vício interessa a toda a comunidade, não sendo o respeito à disciplina constitucional de elaboração e aprovação do ato legislativo mera formalidade. Ora, o objetivo do constituinte originário é tornar a forma também uma defesa do Estado Democrático de Direito e, assim, buscou, pelo estabelecimento de quóruns de deliberação e de aprovação, de prazos e outros requisitos, consagrar a segurança jurídica e proteger matérias de maior relevância[196]. Ademais, assim como cabe indenização a todo aquele prejudicado por vício material, também é devido ressarcimento a todo lesado por vício formal. E, em função da presunção de constitucionalidade de que se reveste a lei, imperiosa é a argüição do vício, já que enquanto vige tal presunção o Estado segue irresponsável[197].

            Desta feita, cabe ao prejudicado argüir o vício que torna a lei inconstitucional independentemente da natureza deste ser material ou formal. Ainda que o vício seja apenas de forma, até que a matéria da lei passe por novo processo legislativo que respeite a toda a disciplina formal disposta constitucionalmente, posto que tal ato legislativo não é convalidável e imprescritível a ação que visa atacar esta nulidade, não caberá ao administrado suportar qualquer ônus. Promulgada nova lei, desta vez formal e materialmente constitucional, só caberá indenização em virtude de prejuízo anormal, especial e certo.

            A inconstitucionalidade, desta feita, deverá ser declarada pelo Poder Judiciário e o particular deverá demonstrar o nexo causal entre a lei inconstitucional e o prejuízo. Até a declaração de inconstitucionalidade, cabe dizer, a lei gozará a presunção de constitucionalidade, sendo assim considerada cogente e válida[198].

            Considerando o ordenamento jurídico espanhol, Maria Ángeles Ahumada Ruiz[199] considera que um dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é justamente o reconhecimento do dever de reparar os danos provocados pelo ato legislativo viciado, questão que, alerta a autora, é considerada marginal no estudo do controle de constitucionalidade[200].

            Tratando da declaração de inconstitucionalidade, Juary C. Silva analisa a retrooperância desta, posto que, reconhecido o vício da lei, os atos sob sua vigência realizados serão considerados, posteriormente, lícitos e justificarão a reparação pelo Estado[201].

            Neste sentido, cabe observar que a Lei 9.868/99, disciplinando o processo e julgamento da ação declaratória de inconstitucionalidade, prescreve: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.           Desta feita, reconhecido o efeito modulador da decisão do STF, já não se pode afirmar que a declaração de inconstitucionalidade perpetrará necessariamente um efeito ex tunc. Tal disposição legal encerra, assim, contradição por “ser o ato inconstitucional nulo, mas poder ter efeitos válidos até determinado instante[202]”, palavras de Manoel Ferreira Filho. Interessantes são os questionamentos de Oscar Vilhena a respeito do art. 27 da Lei 9.868/99: “existe insegurança jurídica maior do que ser obrigado a obedecer a ato inconstitucional? Ou ainda ‘excepcional interesse social’ contrário à Constituição? [203]”.

            De todo modo, a modulação de efeitos ainda não foi analisada quanto à responsabilidade do Estado Legislador e o entendimento jurisprudencial é no sentido de que, ausente a declaração de efeitos ex nunc, há que se reconhecer o efeito retroativo da declaração de inconstitucionalidade. Cabe, ainda, esclarecer que o próprio dispositivo supracitado encontra-se submetido ao controle de inconstitucionalidade pela ADIN 2154 e ADIN 2258, ambas de relator do Ministro Carlos Alberto Direito, e aguardam julgamento[204].

            Quanto à questão de estar revogada a lei danosa, afirmamos que tal não prejudicará o ressarcimento dos prejuízos ocorridos quando de sua vigência e que, porventura, a esta transcendam. Incumbe, assim, citar Juary C. Silva, que resumindo voto da safra do Ministro Leitão de Abreu em ação declaratória de inconstitucionalidade cujo objeto era lei revogada, enumera que: “dada a natureza declaratória da ação, não é imperativo que se repute prejudicada a representação pela superveniência da revogação da norma averbada de inconstitucionalidade, uma vez que a aferição da incompatibilidade entre a norma tachada de inconstitucional e a norma superior pode realizar-se, quer esteja em vigor a norma secundária, quer haja perdido a sua eficácia; embora revogado o ato, se este houver produzido efeitos, que perdurem, malgrado a revogação, subsiste o interesse na declaração de que o vínculo jurídico, estabelecido com base na norma revogada, constituiu-se de modo legítimo ou  ilegítimo[205]”. Não tem sido, todavia, este o entendimento do Colendo STF, que se posiciona pela perda de objeto da ADIN em face da revogação da lei[206].

            De fato, não há grande dificuldade na aceitação da idéia de responsabilização do estado em virtude da atividade legislativa inconstitucional em virtude da rigidez de nossa Constituição e da existência de um controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário[207]. Neste sentido, Hélio Helene acrescenta que a questão da inconstitucionalidade da lei, muitas vezes, se resolverá com o ataque aos atos expedidos para sua execução e que estão igualmente viciados[208], o que, alertamos (e o próprio autor reconhece), não é possível quanto às leis de efeitos concretos.

            Cabe, ainda, trazer a lição de Maurício Jorge Mota que lembra que a legislação ordinária também pode ensejar a responsabilidade do Estado Legislador, quando atenta contra disposições de lei complementar à Constituição Federal. O mesmo não ocorre entre lei e tratados internacionais, posto que o Supremo Tribunal Federal lhes confere o nível hierárquico de lei ordinária. Por fim, com relação às normas anteriores à Carta Magna, dá-se o fenômeno da recepção ou revogação, daí que não se fale também em responsabilização estatal[209].

3.5 OMISSÃO LEGISLATIVA DANOSA

            Tradicionalmente, ensina-se que o controle de constitucionalidade reside neste exame de conformidade material (observância dos direitos, princípios e garantias asseguradas pelo constituinte) e formal (competência, prazos, rito, etc.) entre o ato jurídico e a Constituição[210]. Admite-se, hodiernamente, a inconstitucionalidade por omissão, ou seja, pelo descumprimento do dever constitucional de complementar a norma, conferindo-lhe exeqüibilidade[211].

            Oscar Vilhena observa, assim, “a preocupação de se controlar as omissões inconstitucionais para que a Constituição não fique desprovida de eficácia, em função da inoperância dos poderes responsáveis pela produção de atos infraconstitucionais, necessários para a efetivação de seus preceitos[212]”.

            Canotilho também reconhece o direito subjetivo do administrado à operatividade prática dos preceitos constitucionais, mas aponta que na doutrina portuguesa predomina o entendimento de que o controle seria político, devendo o cidadão instigar seus representantes no Parlamento à produção legislativa[213].

            Ocorre que, em algumas matérias constitucionais, preferiu o constituinte devolver ao legislador ordinário o trabalho de disciplinar em minúcias do tópico, dando assim exeqüibilidade ao direito do administrado. Este é a chamada “reserva legal”, “pela qual a Constituição impõe a existência de lei formal para disciplinar determinados assuntos[214]”. Por outro lado, compreendem o ordenamento jurídico brasileiro os princípios de supremacia da Constituição e de efetividade da norma constitucional a exigir a atividade complementar do legislador[215].

            Yone Frediani lembra que a omissão pode ser total ou parcial, quando ocorre o cumprimento insatisfatório do dever constitucional de legislar. A estudiosa aponta, ainda, que a inércia do Poder Legislativo não pode ser injustificada e ressalta que “referida responsabilidade não é ilimitada, mas passível de determinação em situações peculiares e especiais, quando o silêncio do legislador implicar em ato jurídico relevante, eis que relacionado com previsão constitucional não observada pelo Legislativo[216]”.

            Maria Emília Mendes Alcântara entende que, caso exista prazo para a emanação das normas complementares à Constituição, clara estará a hipótese de indenização pela inércia do Poder Legislativo. Diferentemente, se não há prazo estipulado, deve ser observado o que razoavelmente seria despendido para casos semelhantes e, assim, impedir-se-ia que os legisladores se eximissem de tornar exeqüíveis direitos constitucionalmente assegurados[217]. Desta feita, decorrido o prazo razoável, caberia ao titular do direito a propositura da ação com vistas ao ressarcimento devido. Compensação esta devida ainda que o Judiciário venha a fixar condições para o exercício daquele direito e, neste caso, devida até que tal fixação ocorra em já tendo ocorrido dano patrimonial[218].

            No mesmo sentido, Yone Frediani,[219] que, além disso, aponta a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção como instrumentos para o combate da inércia parlamentar. Declarada a inconstitucionalidade da mora, caberia aos particulares ingressar com ações para reparação dos danos, nas quais se fixaria o momento a partir do qual a lei deveria ter sido editada e a lesão ocorreu[220].

            Quanto ao mandado de injunção, a autora aponta e analisa os efeitos da decisão concessiva da injunção: (i) a possibilidade de o Judiciário suprir a omissão ao elaborar norma regulamentadora, invadindo a seara constitucionalmente conferida ao Legislativo; (ii) o Judiciário poderia dar ciência ao Poder competente para as providências cabíveis, o que igualaria o mandado de injunção, em efeitos, à ação de inconstitucionalidade por omissão; e (iii) viabilizar o exercício do direito, prerrogativa ou liberdade cerceado pela ausência de regulamentação, criando regra para o caso concreto[221].

            Neste sentido, é o seguinte precedente jurisprudencial:

“Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito a reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8., par. 3., ADCT: deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença liquida de indenização por perdas e danos. 1. O STF admite - não obstante a natureza mandamental do mandado de injunção (MI 107 - QO) - que, no pedido constitutivo ou condenatório, formulado pelo impetrante, mas, de atendimento impossível, se contem o pedido, de atendimento possível, de declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão competente para que a supra (cf. Mandados de Injunção 168, 107 e 232). 2. A norma constitucional invocada (ADCT, art. 8., par. 3. - "Aos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional especifica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica n. S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e n. S-285-GM5 será concedida reparação econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição" - vencido o prazo nela previsto, legitima o beneficiário da reparação mandada conceder a impetrar mandado de injunção, dada a existência, no caso, de um direito subjetivo constitucional de exercício obstado pela omissão legislativa denunciada. 3. Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado e a entidade estatal a qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício, e dado ao Judiciário, ao deferir a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais típicos, o provimento necessário a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de modo a facultar-lhe, quanto possível, a satisfação provisória do seu direito. 4. Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação a ordem de legislar contida no art. 8., par. 3., ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e a Presidência da Republica; b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença liquida de condenação a reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicara a coisa julgada, que, entretanto, não impedira o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável”. (MI 283, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, TRIBUNAL PLENO, julgado em 20/03/1991, DJ 14-11-1991 PP-16355 EMENT VOL-01642-01 PP-00001 RTJ VOL-00135-03 PP-00882).

            Por fim, assevera a doutrinadora Yone Frediani, com a qual concordamos: “se ao Judiciário falece competência para suprir a lacuna no caso concreto por falta de densidade sêmica da norma constitucional, a situação deverá se resolver no âmbito da responsabilidade civil do Estado legislador, com a conversão do direito inconstitucionalmente negado no seu equivalente em pecúnia[222]”.

            Cumpre, ainda, extrair do texto constitucional alguns dispositivos que, 22 anos após a promulgação da Carta da República de 1988, carecem de regulamentação para ter a operatividade que o constituinte almejara: o direito dos trabalhadores à participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei (art. 7º, XI); o direito dos trabalhadores ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei (art. 7º, XXI); o direito de greve do servidor público que será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica (art. 37, VII); o direito à revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices, da remuneração dos servidores públicos (art. 37, X); e a disciplina a dar efetividade à proteção à pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento (art. 5º, XXVI). Estes são apenas alguns exemplos da inércia legislativa, problema que pode ser combatido, por meio dos instrumentos explanados, pela confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional, posto que legitimadas constitucionalmente à proposição de ação direta de inconstitucionalidade[223].

3.6 AÇÃO REGRESSIVA CONTRA LEGISLADORES

            O §6º do art. 37 da Constituição de 1988 dispõe que caberá ação regressiva do Estado contra o agente que ensejar dano a terceiro por culpa ou dolo. Deste modo, a vítima pode propor ação contra o Estado e, em caso de conduta culposa ou dolosa do agente, contra este ou ambos.

            A ação regressiva é dever do Estado, nos termos constitucionais. A denunciação da lide ao agente, por sua vez, não nos parece obrigatória, a despeito da redação do art. 70 do Código de Processo Civil que dispõe: “A denunciação da lide é obrigatória: [...] III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”. Isto, porque o mandamento constitucional, adotando a teoria do risco administrativo, prescinde da demonstração de dolo ou culpa do agente, o que, inclusive, implicaria em mora na prestação jurisdicional[224].

            Característica da responsabilidade estatal por ato legislativo é, entretanto, a impossibilidade de ação regressiva do Estado contra o agente, posto que há imunidade parlamentar prescrita, constitucionalmente, nos seguintes termos: “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. O mesmo vale para os vereadores municipais por força do art. 29, inc. VIII[225], da Carta Maior e aos deputados estaduais em virtude do §1º do art. 27[226] do mesmo diploma.

            Deste modo, no campo estrito da responsabilidade por ato legislativo, a ação regressiva encontra os óbices característicos da atividade legislativa. Primeiramente, tal atuação é revestida pela inviolabilidade, imunidade material ou imunidade absoluta, de que trata o citado caput do art. 53 da Constituição Federal, como garantia que o ordenamento jurídico deve dar para viabilizar a democracia representativa.

            Neste sentido, não se trata de um privilégio, mas do reconhecimento de que “a representação política acarreta para o cidadão comum, quando eleito, um acervo de responsabilidades e riscos que o tornam diferente do cidadão que era antes, desigualando-o[227]” frente aos seus concidadãos comuns. Ademais, garante-se, assim, a liberdade desses mesmos parlamentares para que façam o necessário exercício de suas funções pelo bem do Estado, ainda que desagradando a detentores de poder político e econômico.

            A inviolabilidade, disciplinada constitucionalmente, implica que o voto dos parlamentares deixa de ser sancionável por lei, não cabendo qualquer processo frente a tais atos e não podendo ser considerados ilícitos[228]. Assim, configura-se a imunidade material “indispensável ao cumprimento das atribuições que cabem constitucionalmente ao Poder Legislativo[229]”.

            É a lição de Fernanda Dias Menezes: “Considerando-se sua finalidade específica, ou seja, a de garantir a independência imprescindível ao cumprimento do mandato representativo, devem as imunidades ser visualizadas como prerrogativas funcionais. De fato, é sob este prisma que precisam ser compreendidas, e não como privilégio ou direito subjetivo dos congressistas. Sim, porque, na verdade, o interesse juridicamente protegido por elas é o do Poder Legislativo como instituição ou, antes mesmo, o interesse do povo de ter a sua representação respeitada[230]”.

            O instituto em comento, portanto, decorre do interesse público em assegurar ao parlamentar ampla liberdade no exercício do mandato[231] e é garantia que viabiliza a harmonia e independência do Poder Legislativo para com os demais Poderes[232]. Ademais, o ato legislativo resulta de uma comunhão de votos e opiniões, de modo a dificultar a individualização das condutas dos parlamentares e, consequentemente, ação regressiva contra os mesmos.

            Desta feita, ainda que seja possível ação de reparação de danos contra a pessoa jurídica a que estão vinculados pela aprovação de texto legal constitucional, os parlamentares não responderão na via regressiva. Ademais, a própria natureza da lei, como ato jurídico complexo, ou seja, fruto da concorrência de vontades de órgãos distintos, impediria a delimitação dos autores do ato legislativo[233]. Outra não é a lição de Hélio Helene: “em matéria de lei, incabível falar em culpa, individual ou coletiva, na edição da lei; nem haverá como falar em responsabilidade de representantes do povo que agem no exercício de seu poder decisório[234]”.

4.DOUTRINA PÁTRIA

            Um dos primeiros publicistas brasileiros a tratar do intricado tema da responsabilidade por ato legislativo, Amaro Cavalcanti assinala que tal dever de indenizar só era admitido quando o legislador o previsse expressamente. Deste modo, “este princípio geral, se pode dizer, constituiria, sem restrição, o direito positivo e a jurisprudência dominantes ao tempo do Império. Na República, porém, já não seria lícito afirmá-lo de maneira tão categórica. Cabendo, agora, ao poder judiciário a faculdade do julgar da validade das leis, é manifesto que o indivíduo, que se considerar lesado pelos seus dispositivos, pode levar a sua ação ao referido poder e, uma vez obtida a anulação da lei, poderá igualmente, segundo as circunstâncias do caso, exigir e obter uma justa indenização da lesão sofrida[235]. Declarada a inconstitucionalidade da lei, caberia à pessoa jurídica de direito público correspondente o reparar o dano causado e comprovadamente sofrido.

            Ensina Odete Medauar, tratando dos atos legislativos típicos (leis complementares e ordinárias), que a doutrina pátria aceita a responsabilização pela lei inconstitucional e que se pode também responsabilizar pelo ato de efeitos particularizados, posto que o mesmo não é dotado de caráter de generalidade e impessoalidade[236].

            Para Maria Sylvia prevalece a regra da irresponsabilidade por ato legislativo. A autora reconhece, entretanto, a responsabilidade em caso de lei previamente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal que, para ela, segue a mesma regra dos atos normativos do executivo, já que o dano decorre do exercício que foge à competência constitucional. Não adentra a doutrinadora profundamente na questão da responsabilidade por atos lícitos, embora aponte o caso da lei de efeitos concretos[237].

            Também considerando que, de modo geral, “reputa-se que a edição da lei não gera dever de indenizar[238]”, Marçal Justen Filho salienta que há, ao menos, três hipóteses a considerar, quais sejam: lei inconstitucional, lei materialmente defeituosa e a responsabilidade civil por omissão legislativa. Neste último ponto, afirma que “se a Constituição estabelecer o dever de exercer a competência legislativa, a omissão será uma infração à ordem jurídica. Já a ausência de norma jurídica qualificando a conduta ativa como obrigatória conduz a uma infração omissiva imprópria[239]”. Daí, “a responsabilização civil do Estado depende da prova da violação ao dever de diligência[240]”.

            Juary C. Silva é da opinião de que “a hipótese que dá azo a tal responsabilidade é apenas a dos atos legislativos (ou paralegislativos) formal ou materialmente inconstitucionais[241]. No mesmo sentido, J. Guimarães Menegale[242].

            Edmir Netto de Araújo, por seu turno, considera indispensável a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal para ressarcimento de dano causado por norma inconstitucional, mas admite a responsabilidade pela pseudo lei em tese, ou seja, leis de efeitos concretos[243]. A respeito, José Cretella Júnior lembra que a lei em tese, norma geral, abstrata e impessoal, não enseja a responsabilidade do Estado Legislador, nem é atacável por mandado de segurança, em contraponto à lei de efeito concreto, verdadeiro ato administrativo[244].

            E Hely Lopes Meirelles é do pensamento de que a lei “dificilmente poderá causar prejuízo indenizável ao particular, porque como norma abstrata e geral, atua sobre toda a coletividade, em nome da Soberania do Estado, que, internamente se expressa no domínio eminente sobre todas as pessoas e bens existentes no território nacional. Como a reparação civil do Poder Público visa a restabelecer o equilíbrio rompido com o dano causado individualmente a um ou alguns membros da comunidade, não há falar em indenização da coletividade. Só excepcionalmente poderá uma lei inconstitucional atingir o particular uti singuli, causando-lhe um dano injusto e reparável. Se tal ocorrer, necessária se torna a demonstração cabal da culpa do Estado, através da atuação de seus agentes políticos, mas isto se nos afigura indemonstrável no regime democrático, em que o próprio povo escolhe seus representantes para o Legislativo. Onde, portanto, o fundamento para a responsabilização da Fazenda Pública se é a própria coletividade que investe os elaboradores da lei na função legislativa e nenhuma ação disciplinar têm os demais Poderes sobre agentes políticos? Não encontramos, assim, fundamento para a responsabilização civil da Fazenda Pública por danos eventualmente causados por lei, ainda que declarada inconstitucional[245]”.

            Questionando Hely Lopes Meirelles, José Cretella Júnior ensina que os agentes do Executivo e Judiciário são passíveis de responsabilização, embora escolhidos democraticamente pelo povo por meio de concurso público. Ademais, este autor afirma que “não interessa a causa do erro. Interessa o dano, em primeiro lugar, depois, o nexo causal[246]”.

5. JURISPRUDÊNCIA

            Se a doutrina, com exceções respeitáveis como a posição de Hely Lopes Meirelles[247], parece coesa quanto à aceitação da responsabilização extracontratual do Estado por ato legislativo, a jurisprudência parece ainda encontrar dificuldades em firmar critérios para possibilitar a indenização, nestes casos, e oscila.

A idéia de irresponsabilidade estatal por ato legislativo já não se sustenta mais após a Constituição da República de 1988. Não parece razoável ignorar o fato de que todos os poderes estão abarcados pela norma constante do par. 6º do art. 37 da Carta Magna, o qual fixou a responsabilidade objetiva do Estado. A despeito da mora do Poder Judiciário em acolher tão entendimento quanto ao referido dispositivo, em 1992, o Supremo Tribunal Federal, em acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 153.464, do qual foi relator o Ministro Celso de Mello, se posicionou no sentido de que o “estado responde civilmente por danos causados aos particulares pelo desempenho inconstitucional da função de legislar[248]”. No mesmo sentido, é o acórdão do STF relatado pelo Ministro Castro Nunes: “O Estado responde civilmente pelos danos causados em virtude de ato praticado com fundamento em lei declarada inconstitucional.[249]

Poder-se-ia supor que a decisão da Corte Suprema colocaria fim aos problemas enfrentados pelos particulares na busca pela justa reparação dos prejuízos sofridos pela atuação legislativa inconstitucional ou de efeitos discriminatórios. Infelizmente, isso não ocorre. A despeito dos apelos doutrinários e da posição exarada por aquela Corte, da análise da jurisprudência sobre o tema, observa-se que há verdadeiro receio no Judiciário quanto à condenação do Estado e, por vezes, nega-se completamente a possibilidade de indenização nessas circunstâncias, como se vê no julgado abaixo que elenca uma série de argumentos, no mínimo, questionáveis:

 “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. PLANO COLLOR. BLOQUEIO DE CADERNETAS DE POUPANÇA. LITISCONSÓRCIO ALTERNATIVO. IPC DE MARÇO DE 1990. ILEGITIMIDADE DO BANCO CENTRAL DO BRASIL. DOCUMENTOS INDISPENSÁVEIS À PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. EXTRATOS BANCÁRIOS. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA INDEVIDA. […]

- Inexistente a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes de atos legislativos. O Poder Legislativo, soberano e com atuação dirigida a toda coletividade, tem seus representantes eleitos pelo povo, que, em tese, não poderia reclamar a ocorrência de dano. Sendo a lei norma abstrata e geral, exercício da soberania estatal, presume-se legitimamente expedida.

- Decorrendo, pois, o bloqueio, de ato legislativo geral e impessoal, a abarcar toda a coletividade, não houve dano especial ou anormal, afastando a responsabilidade no caso de perda do poder aquisitivo da moeda em face de medidas econômicas. […]” (TRF 3ª Região, Apelação Cível – 590398/SP, Rel. Ministro Newton De Lucca, Quarta Turma, julgado em 04/09/2002, DJU 30/06/2004 p. 277)

Há, é fato, grande receio quanto à dilapidação da separação dos poderes, dogma constitucional, por vezes, interpretado de modo tão rígido que cercearia considerável parte do papel jurisdicional. Ora, a Constituição Federal dispôs que os Poderes deveriam atuar de modo harmônico e independente (art. 2º), o que já afastaria tal rigidez, e, por outro lado, atribuiu expressamente ao Judiciário, em vários dispositivos, a função de se pronunciar a respeito da (in)constitucionalidade de leis e atos normativos (como dispões, a exemplo, o art. 97).

Na esteira do acórdão citado, é o seguinte precedente:

            “RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO POR ATOS LEGISLATIVOS. LEI Nº 8.024/90. INOCORRÊNCIA. 1 - Não há que se falar em responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes de atos legislativos, uma vez que, adotado o regime democrático, o próprio povo escolhe seus representantes para o Legislativo. 2 - Ainda que fosse possível a responsabilização do Estado, para que haja ressarcimento, é necessária a comprovação de efetivo dano moral à autora. 3 - Apelação improvida”.(AC 523467, Rel. Desembargador Manoel Alvares, Quarta Turma, TRF 3ª Região, julgado em 01/02/2002, DJ 01/02/2002 p. 531)

Lei inconstitucional: exigência de Declaração de Inconstitucionalidade pelo STF

            O ordenamento jurídico brasileiro adotou, em sede de controle de constitucionalidade judiciário, o controle difuso, é dizer: todo membro do Poder Judiciário é competente para reconhecer a inconstitucionalidade de uma norma. Desta feita, o juiz ou tribunal poderá declarar incidentalmente tal vício, o que terá efeito entre as partes da relação jurídica principal objeto da ação. Acolheu-se também o controle principal a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em ação direta que tem por objeto o próprio vício legal e cuja decisão gera efeitos erga omnes[250].

            No caso de declaração por tribunal, cumpre lembrar que o art. 197 da Constituição de 1988 dispõe que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. Ademais, cabe exclusivamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei federal ou estadual declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art.52, X, CF).

            Para o que aqui interessa a jurisprudência predominante assentou que a responsabilidade do Estado Legislador exige a declaração da inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. É o julgado:

            “ADMINISTRATIVO. CRUZADOS NOVOS BLOQUEADOS. MP N. 168/90. LEI N.8.024/90. CORREÇÃO MONETÁRIA. BTNF. DANO MORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO LEGISLATIVO. AUSÊNCIA DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI. NÃO-CABIMENTO. 1. Consolidado está, no âmbito do STJ, o entendimento de que a correção dos saldos bloqueados transferidos ao Bacen deve ser feita com base no BTNF. Precedentes. 2. Apenas se admite a responsabilidade civil por ato legislativo na hipótese de haver sido declarada a inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado. 3. Recurso especial provido”. (REsp 571.645/RS, Rel. Ministro  JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/09/2006, DJ 30/10/2006 p. 265)

            Alerta Edílson Pereira Nobre Júnior[251], com o qual concordamos, que esta posição está de acordo com sistemas estrangeiros que apenas admitem o controle de constitucionalidade judiciário concentrado, é dizer: somente o órgão da cúpula do Poder Judiciário poderia declarar a inconstitucionalidade. Como já se disse, tal não é a realidade brasileira, na qual se reconheceu a todo membro deste Poder a competência para apontar o vício, afastando a aplicação legal.

            Maurício Jorge Mota, por sua vez, assevera que a posição jurisprudencial dominante privilegia o princípio de presunção de constitucionalidade das leis, mas ressalta que “em favor dessa constitucionalidade milita essa presunção, mas esta é, como presunção, iuris tantum, ou seja, admite prova em contrário, que é exatamente, o que se realiza no processo de conhecimento”142. O mesmo autor afirma que é justamente em virtude de tal princípio que os particulares tendem a cumprir a lei, ainda que a julguem inconstitucional, não podendo o Estado alegar o fato da vítima (obediência à norma viciada) como motivo do dano a fim de eximir-se da reparação devida 149-150.

            No mesmo sentido Juliana Cristina Luvizotto observa que, embora, não haja “definição acerca do efeito da decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de controle difuso, o STF tem reconhecido que essa declaração quebra a presunção de constitucionalidade inerente à regra jurídica, circunstância, portanto, que parece afastar o entendimento de que a declaração de inconstitucionalidade para fins de responsabilidade é somente aquela proferida através do controle concentrado[252]”. Amplia-se, assim, o acesso do jurisdicionado à Justiça, posto que há um número limitado de legitimados à proposição da ação direta, o que se corrige com a declaração em sede de controle difuso que poderia, pela via recursal, ser analisada por aquela Corte.         Alerta, ainda, a estudiosa que o STF tem estendido a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de lei municipal a outras idênticas, embora, de outros municípios[253].

             Já demonstrando uma evolução no raciocínio jurídico pátrio:

            “ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CADERNETA DE POUPANÇA. PLANO  COLLOR. CRUZADOS BLOQUEADOS. INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE DA  UNIÃO. BANCO CENTRAL. ATO LEGISLATIVO. DECLARAÇÃO FORMAL DE  INCONSTITUCIONALIDADE. NECESSIDADE.

- Necessário para configurar situação ensejadora da indenização a efetiva prova do dano originado do agir estatal. A r. Sentença a quo condenou o  BACEN a indenizar o particular “ante a visível inconstitucionalidade da mencionada legislação, contrariadora do direito de propriedade do autor”, sem apontar, todavia, o ato praticado pelo banco central que teria causado, concretamente, o prejuízo ao apelado em razão da sua atuação.

 - Em se tratando de indenização por dano causado em face de ato legislativo, imperativo que a lei tenha sido declarada inconstitucional pelo STF, seja em ação direta ou pelo controle difuso. Embora a sentença a quo tenha-se referido à inconstitucionalidade visível da lei 8.024/90, não houve qualquer declaração formal de inconstitucionalidade dos seus dispositivos por parte do excelso pretório.

- "Se promovida ação indenizatória sob fundamento de inconstitucionalidade da lei 8.024/90, o banco central não poderia figurar no pólo passivo, desde que não legisla. A competência para legislar, consoante normas da c. Federal, é do congresso nacional, e as mais das vezes, com a iniciativa do poder executivo.” (AC 130468/PE, Rel. Desembargador Federal Castro Meira, Primeira Turma, TRF 5ª Região, julgado em 01/03/2001, DJ 01/06/2001 p. 317)

Lei constitucional: exigência de dano especial

            Contrariando entendimento também presente na doutrina brasileira, Miguel Marienhoff questiona a exigência da especialidade do dano e afirma que, na Argentina, tal argumento é utilizado sem fundamentação[254]. Afirma o autor que tal posição provém de países nos quais a Constituição não apresenta a rigidez que caracteriza a argentina e, para o que nos interessa, a brasileira, podendo ser alterada por leis e, assim, os direitos patrimoniais decorreriam mais da legislação que da Carta Maior.

            A realidade do Brasil e do país vizinho, entretanto, demonstra que é da Constituição que decorrem os direitos patrimoniais e, assim, generalidade alguma justificaria verdadeiro confisco de bens dos administrados. Não se poderia, assim, alegar a igualdade de todos perante os encargos públicos, pois a despeito de não estar afetado o direito à igualdade, foram desrespeitados o direito de propriedade e os direitos adquiridos. Ademais, não se trata aqui de encargo público e, de todo modo, raros são os casos de efetiva generalidade no prejuízo.[255]

            Daí, Miguel Marienhoff ensina que mesmo frente ao prejuízo que não é especial, mas que atinge de modo diferenciado largo setor da população e contraria preceito constitucional, o ato legislativo é inconstitucional e a todos cabe reparação. Acrescenta a crítica no sentido de que a limitação da responsabilidade por ato legislativo à quantidade de pessoas atingidas não decorre da lógica jurídica[256], posto que a inconstitucionalidade não depende do número de atingidos pelo preceito legal.

            Os julgados, entretanto, são no sentido de se exigir a especialidade do dano:

            “CONSTITUCIONAL, CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO (CF/88, ART. 37, § 6º). INDÚSTRIA DE BRINQUEDOS. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. ALTERAÇÃO DE ALÍQUOTAS (CF, ART. 153, § 1º). PREJUÍZO.  DEVER DE INDENIZAR. NÃO-OCORRÊNCIA. 1. A responsabilidade do Estado pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros é objetiva, independendo da demonstração de culpa do agente, salvo para efeito de ressarcimento, em ação regressiva. 2. Relativamente aos atos legislativos (aí incluídos os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo), somente quando eivados de inconstitucionalidade, assim declarada  definitivamente pelo Poder Judiciário, ou quando se tratar de ato legislativo de efeito concreto, que atinja uma determinada pessoa ou grupo de pessoas, ou, ainda, quando praticados com manifesta ilegalidade podem gerar a obrigação indenizatória. 3. Hipótese em que não se fazem presentes tais pressupostos, visto que o ato invectivado reveste-se de caráter geral e abstrato, não tendo alcançado somente o grupo de atividade da autora-apelada. 4. Não demonstrada, ademais, a ocorrência de um dano especial e extraordinário, que tenha sido suportado pela autora, não procede a pretensão indenizatória. 5. Sentença reformada. 6. Providas a apelação e a remessa oficial”. (AC 199934000272436/DF, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, Sexta Turma, TRF 1ª Região, julgado em 12/12/2005,  DJ 30/10/2006 p.201)

            “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. PLANO COLLOR. BLOQUEIO DE CADERNETAS DE POUPANÇA. LITISCONSÓRCIO ALTERNATIVO. LEGITIMIDADE DO BANCO CENTRAL DO BRASIL E DO BANCO DEPOSITÁRIO. IPC DE MARÇO DE 1990. ILEGITIMIDADE DO BANCO CENTRAL DO BRASIL. CORREÇÃO MONETÁRIA INDEVIDA PELO BACEN. ÍNDICES DO IPC. CORREÇÃO MONETÁRIA DEVIDA PELO BANCO DEPOSITÁRIO. [...] - Inexistente a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes de atos legislativos. O Poder  Legislativo, soberano e com atuação dirigida a toda coletividade, tem seus representantes eleitos pelo povo, que, em tese, não poderia reclamar a ocorrência de dano. Sendo a lei norma abstrata e geral, exercício da soberania estatal, presume-se legitimamente expedida. - Decorrendo, pois, o bloqueio, de ato legislativo geral e impessoal, a abarcar toda a coletividade, não houve dano especial ou anormal, afastando a responsabilidade no caso de perda do poder aquisitivo da moeda em face de medidas econômicas. [...]”. (AC 684603/SP, Rel. Desembargadora Federal Therezinha Cazerta, Quarta Turma, TRF 3ª Região, julgado em 23/05/2001, DJ  31/08/2004 p.368)

Omissão legislativa: ciência ao Poder competente

            A respeito da intrincada questão relativa à efetividade da prestação jurisdicional em sede de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, José Afonso da Silva defende que, diante da inação parlamentar, a decisão judicial deve ser normativa, valendo após expirado um prazo fixado para que o legislador supra a omissão.[257]

            Tal não tem sido a posição majoritária, como se observa na decisão da segunda turma do TRF da 1ª Região na Apelação Cível 200135000172830 (julgado em 03/04/2006, DJ 29/05/2006 pág.128):

            “CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EXAME DO MÉRITO NESTA INSTÂNCIA RECURSAL. ART. 515, § 3º, DO CPC. REVISÃO GERAL ANUAL DA REMUNERAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS. ART. 37, X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19/98. ADIN Nº 2.061-7/DF. MORA LEGISLATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE INDENIZAÇÃO. [...]II - Não há impossibilidade jurídica a ser reconhecida, eis que o pedido de indenização por dano é admissível e a Constituição consagra a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados a terceiros em virtude da atuação de seus agentes (art. 37, § 6º). III - "Analisando a nova redação do art. 37, X, da CF/88, introduzida pela E.C. nº 19/98, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista - PDT e pelo Partido dos Trabalhadores - PT, visando tornar efetiva a norma constitucional que assegura a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos, 'julgou procedente, em parte, o pedido formulado na ação direta, para assentar a mora do Poder Executivo no encaminhamento do projeto previsto no inciso X do artigo 37 da Constituição Federal, e determinar a ciência àquele a quem cabe a iniciativa do projeto, ou seja, ao Chefe do Poder Executivo' (ADin nº 2.061-7/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, pleno STF, unânime, julgamento em 25/04/01, in DJU de 29/06/01, pág. 33), concluindo, pois, que ao Judiciário não é dado suprir a omissão legislativa." IV - Sendo vedado ao magistrado a imposição de prazo ao Chefe do Executivo para cumprimento da norma contida no art. 37, X, da CF/88, também não há que se falar em fixação de indenização em virtude da referida inércia, vez que a atuação do Poder Judiciário, em relação à revisão geral de remuneração dos servidores públicos, limita-se a dar ciência ao Presidente da República acerca da omissão, nos termos da norma constitucional contida no § 2º do art. 103. V - Apelação parcialmente provida, tão-somente para afastar a carência de ação. No mérito, porém, julgar improcedente o pedido.

6. CONCLUSÃO

            A responsabilidade estatal tem por fundamento o par. 6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Ali assentou o constituinte o princípio pelo qual o Estado responderá por danos em face do particular. Claro está que o Estado conta com agentes públicos para exercer as suas funções, quais sejam: legislativa, judiciária e executiva. Neste sentido, a atuação estatal, por meio de tais prepostos, pode atingir a esfera do particular e causar dano.

            Não distinguiu o texto constitucional as funções do Estado ou a espécie de agente para fins de responsabilização do Poder Público. Daí que esteja Edmir Netto de Araújo com razão ao afirmar que a evolução do princípio em comento levará inexoravelmente ao fim de “uma das maiores contradições possíveis em Direito Administrativo, qual seja ‘a diferenciação entre as atividades do mesmo Poder Público para fins’ de responsabilização[258]”. Deste modo, “admitida a unidade do Poder estatal, depreende-se, como corolário lógico, o caráter unitário da responsabilidade do Estado.”[259]

             Esclarecida a unidade da responsabilidade do Estado e a supremacia da Constituição, a qual deve obediência o legislador, a conseqüência será necessariamente entender que não pode a lei negar o direito à indenização ou concedê-lo a menor e a obrigação de reparar subsistirá ainda que silente o mandamento legal – posto que fixado constitucionalmente. Ademais, adotada constitucionalmente a teoria do risco administrativo, a responsabilidade objetiva do Estado, a configuração do nexo causal entre o dano sofrido pelo administrado e a atuação do agente público, de modo geral, submeterá aquela pessoa jurídica de direito público ao dever de indenizar pela inconstitucionalidade do ato legislativo exarado, pelo prejuízo anormal, especial e certo da lei constitucional ou pela impossibilidade de exercitar direitos e garantias constitucionais face à omissão legislativa.

            A doutrina pátria é no sentido da aceitação da responsabilidade em face da atividade legislativa inconstitucional, exigindo, majoritariamente, que a declaração do vício seja feita pelo Supremo Tribunal Federal. Já existe, entretanto, posicionamento, inclusive jurisprudencial, acolhendo a declaração de inconstitucionalidade em sede de controle difuso, em verdadeiro reconhecimento da sistemática pretendida pelo constituinte originário.

            Desta feita, tal declaração pode, contudo, ser pleiteada na mesma ação em que se pedir a indenização, posto que o ordenamento jurídico brasileiro acolhe o controle incidental de constitucionalidade. Se já houve, por sua vez, a declaração de inconstitucionalidade pelo controle concentrado, houve também o reconhecimento do “ilícito legislativo” e, portanto, do dever de indenizar[260].

            Menos pacífica é a questão relativa à responsabilidade por ato legislativo constitucional típico. Conseqüência do incremento da atividade legiferante do Estado é o crescimento das hipóteses em que tal ente atinge o patrimônio do administrado, ainda que respeitando os mandamentos constitucionais e perseguindo o interesse público. É o que ocorre, corriqueiramente, na legislação urbanística, na criação de reservas ambientais, na instituição de monopólio estatal sobre atividades lícitas ou em decorrência da extinção, por lei, de empresa pública.

            Desta feita, ainda que no exercício constitucional da função de legislar, o parlamentar causa dano especial, anormal e certo a um ou a poucos. Ora, se público é o interesse, também coletivo deve ser o ônus. Caberá, assim, ação indenizatória por parte do particular também sempre que atingido por lei de efeitos particularizados, despida de generalidade, verdadeiro ato administrativo.

            Mais complexo é o tema da obrigação de reparar por omissão legislativa. Nesta seara, somos da opinião de que se deve seguir por uma destas hipóteses: (i) se expirou prazo constitucionalmente fixado para a regulamentação, claro está o dever de ressarcir e o momento em que se inicia, bastando comprovar o dano e o nexo causal; e (ii) se não há prazo, há que se considerar um prazo razoável, entre a iniciativa, deliberação (nas Comissões e no Plenário), votação e sanção, a partir do qual se verificará o dano. Quanto à prestação jurisdicional, a efetividade obriga a seguir o pensamento de José Afonso da Silva para defender a decisão que fixa prazo para regulamentação e, em caso de desrespeito, confere ao particular o direito de obtê-la do Poder Judiciário, valendo para o caso concreto. Tal posicionamento já encontra acolhida jurisprudencial, como se viu, e é o mais tendente a substituir a solução de meramente dar ciência ao Poder competente.

            Do exposto, somos da opinião de Hélio Helene, para quem nestes “casos todos, atos legislativos inconstitucionais, atos legislativos de caráter individual e, por fim, atos legislativos constitucionais e de caráter geral, mas que, pelo conteúdo de suas disposições, vão causar dano anormal a uma ou poucas pessoas, parece-nos de aceitar-se a responsabilidade do Estado pela reparação dos prejuízos[261]”.

            Diferentemente do que ocorre relativamente a outras funções do Estado, não caberá ação regressiva deste em face dos legisladores, posto que não é possível individuar as condutas, pois as decisões são colegiadas, o que, também, impede a constatação de dolo ou culpa no atuar dos agentes políticos em comento. Por fim, a imunidade parlamentar é prerrogativa constitucionalmente conferida aos mesmos, isentando-os de qualquer processo decorrente do exercício funcional do voto, palavra ou opinião.

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Sobre o autor
Renata Rodrigues Silva e Lima

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).

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