Trata o presente artigo de analisar a conduta tipificada no artigo 12 da Lei n. 10.826/2003, lei conhecida como "Estatuto do Desarmamento", que dispôs sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, definindo crimes e dando outras providências.
Em que pese ter o "Estatuto do Desarmamento" entrado em vigor na data de sua publicação (artigo 38), ou seja, em 23 de dezembro de 2003, além de revogar, expressamente, em seu artigo 36, a Lei n. 9.437/97, antiga Lei de Armas, também concedeu um prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que o possuidor de arma de fogo, sem registro, providenciasse sua regularização perante a Policia Federal:
"Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos." (sublinhou-se)
Nestes termos, é fácil concluir que eventual responsabilização penal por "posse irregular de arma de fogo de uso permitido" (artigo 12), crime tipificado no capítulo IV do "Estatuto do Desarmamento", só terá aplicabilidade após o esgotamento do prazo legal de 180 (cento e oitenta) dias.
Recentemente, em 18 de março de 2004, foi editada a Medida Provisória n. 174, que modificou o "Estatuto", alterando o termo inicial dos prazos previstos nos seus arts. 29, 30 e 32:
"Art. 1°. O termo inicial dos prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da data de publicação do decreto que os regulamentar." (grifou-se)
Como se vê, com a edição da citada Medida Provisória, o prazo de 180 (cento e oitenta) dias só começará a correr a partir da data da publicação do decreto regulamentador do "Estatuto do Desarmamento" (Decreto n. 5.130, de 07 de julho de 2004).
De início, sobreleva-se a discussão sobre a possibilidade ou não de medida provisória tratar de matéria de natureza penal.
Se antes havia polêmica sobre a competência legislativa do Executivo em matéria penal, a exemplo de LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, que defendia tal possibilidade, embora a aplicabilidade da MP ficaria condicionada à sua conversão em lei (Direito Penal na Constituição, p. 39), com o advento da Emenda Constitucional n. 32/2001, foi posta uma pá de cal na celeuma, diante da nova redação do artigo 62, § 1°, I, "b", da Constituição Federal:
a) (...);"Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional:
§ 1° É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
b) direito penal, processual penal e processual civil..."
Quer parecer, inclusive, a despeito de posições respeitáveis na doutrina, que nem mesmo norma penal não incriminadora pode ser objeto de medida provisória, isso porque o referido artigo é taxativo, não fazendo uma sequer restrição, alcançando toda e qualquer norma de natureza penal. Daí não ser possível querer restringir a interpretação onde o legislador constituinte não deixou margem para tal.
Ademais, a edição de medidas provisórias só é possível havendo sido respeitados os dois pressupostos constitucionais da "relevância" e "urgência", como determina o caput do artigo 62 da Constituição Federal.
Que a matéria de Direito Penal é dotada de relevância, isso é indiscutível, mas onde a urgência da questão objeto da referida MP 174/2003, que inovou imediatamente o sistema jurídico penal?
Assim, tem-se que a medida provisória deveria ser declarada inconstitucional, aliás, duplamente inconstitucional, a uma, como visto, porque afronta o caput do art. 62 da Constituição da República, já que não se vislumbra a necessária urgência a reclamar uma atuação imediata por parte do Poder Executivo; a duas, porque a simples edição de medida provisória sobre matéria penal significa invasão de matéria reservada, pela Constituição Federal, a outro poder, afrontando, por isso mesmo, o princípio constitucional da "separação dos poderes".
Sobre esse último enfoque, ainda antes da Emenda Constitucional n. 32/2001, asseverava ALBERTO SILVA FRANCO:
"Se a CF/88 agasalhou, no campo penal, o princípio da legalidade; se tal princípio tem, entre outros significados, o de reserva absoluta de lei; se portanto, só a lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, mediante o procedimento adequado, poderá criar tipos e impor penas, é inquestionável que a medida provisória – ‘Não é lei porque não nasce no Legislativo. Tem força de lei, embora emane de uma única pessoa, é unipessoal, não é fruto de representação popular, estabelecida no art. 1°, § 1° (todo poder emana do povo). Medida Provisória não é lei’ (TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 1989, p. 153-154), que procede do Poder Executivo, representa não apenas um agravo ao princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege, mas também uma insuportável invasão em matéria reservada, pela Constituição Federal a outro poder. Enfim, uma dupla ofensa à Constituição que inquina o ato do Poder Executivo de flagrante inconstitucionalidade." (Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial – Parte Geral, p. 28)
De outro lado, havendo múltiplas possibilidades interpretativas, como confirmação do "princípio da interpretação efetiva", "interpretação sistêmica", "interpretação conforme", deve prevalecer aquela que melhor se coaduna com os princípios constitucionais e que possui maior eficácia.
Ora, se a Constituição foi expressa em proibir a edição de medida provisória em matéria penal, qual a interpretação que dá maior eficácia ao dispositivo constitucional? É claro que será aquela que não procura restringir o campo de atuação da norma, já que o legislador constituinte foi excessivamente objetivo em sua redação.
Ademais, tendo em vista o princípio constitucional da "estrita legalidade", que informa o direito penal, a medida provisória não poderia, jamais, enveredar-se em matéria penal, restringindo-se o campo de abrangência do texto constitucional (artigo 62, § 1°, I, "b") e, por isso mesmo interpretando-se a Constituição em desconformidade com os seus próprios princípios.
E como deverá, então, ser aplicada a Lei n. 10.826/2003?
Transcorrido o prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contados a partir da data de publicação do "Estatuto do desarmamento", como determina o seu art. 30, a conduta tipificada no seu art. 12 passará a ser considerada criminosa ou, ao contrário, aguarda-se a fluência do aludido prazo a partir da data da publicação do decreto regulamentador do "Estatuto", como determina a MP 174/2003, reputada, por nós, flagrantemente inconstitucional?
Entendemos mais coerente a primeira solução, principalmente em respeito ao "princípio da interpretação efetiva", pelo que, havendo mais de uma interpretação possível, opta-se por aquela dotada de maior eficácia.
Ora, no caso, se a própria constituição cuidou de proibir, não pode o intérprete, sob o pálio de proteger o indivíduo, fazer a opção pela interpretação inconstitucional.
Assim, tendo em vista que aqueles prazos para que os possuidores de armas de fogo sem registro regularizassem suas autorizações nos moldes da nova lei ainda não fluíram, a conduta de "posse irregular de arma de fogo de uso permitido", prevista no artigo 12 da Lei n. 10.826/2003, é atípica, pelo menos até a fluência do referido prazo.
Desta feita, os possuidores de armas de fogo de uso permitido, sem registro ou com registro vencido, têm duas opções até o esgotamento do prazo de 180 (cento e oitenta) dias:
a) providenciar a regularização de sua autorização;
ou
b) entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento do Estauto.
Com efeito, dispõe os arts. 31 e 32 da Lei n. 10.826/2003, respectivamente:
"Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei." (grifou-se)
"Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei." (grifou-se)
De outra parte, nem se pode pretender querer aplicar o artigo 10 da Lei n. 9.437/97 aos fatos ocorridos após a edição do "Estatuto do Desarmamento", eis que aquela Lei foi expressamente revogada pelo Estatuto, em seu artigo 36:
"É revogada a Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997."
Portanto, a conseqüência relevante e imediata que se extrai de tal ilação é que eventual prisão do indiciado por tal fato, pelo menos até a fluência do prazo previsto na Lei n. 10.826/2003, caracterizará constrangimento ilegal, sanável pelo habeas corpus.
Por fim, é oportuno esclarecer a opção, no título, pela terminologia "atipicidade" e não "antijuridicidade", uma vez que, também esta última, afastada da conduta, sendo um dos elementos conceituais de crime, este restaria, por sua vez, descaracterizado.
É que se defende neste artigo a teoria, segundo a qual, a tipicidade penal é composta de "tipicidade formal" e "tipicidade conglobante". Para que haja, por sua vez, "tipicidade conglobante", mister se faz que a conduta do agente seja antinormativa e "materialmente típica". Antinomatividade significa contrariedade à norma penal, bem como que a conduta não seja imposta ou fomentada por ela. Já a "tipicidade material" pressupõe a lesividade a bem jurídico relevante.
Assim, não basta seja o fato formalmente típico, devendo ser conglobantemente típico, ou seja, considerando que o ordenamento jurídico é um sistema, não se admitindo, portanto, antinomias, normas que se excluem, em havendo uma norma que permita ou fomente tal e qual conduta, outra não poderá proibi-la. (Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 80)
Aliás, sobre antinomia, veja-se o escólio de BOOBIO:
"antinomia significa o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras, e, com referência a um sistema de normas, o encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas, a eliminação do inconveniente não poderá consistir em outra coisa senão na eliminação de uma das duas normas" (op. cit., p. 91)
Portanto, se o art. 30 da Lei n. 10.826/2003 afastou provisoriamente a eficácia do tipo incriminador do art. 12 da mesma lei, criando, com isso, um direito subjetivo ao indivíduo, é o mesmo que dizer que a lei permitiu, temporariamente, a prática daquela conduta (art. 12). Logo, tornou-a conglobantemente atípica, justamente porque não há a necessária antinormatividade, devendo o crime ser desconfigurado no plano da tipicidade e não da antijuridicidade.