6. ATIVIDADE DE RISCO
A necessidade de adequação do direito civil ao cunho social dos princípios fundamentais da nossa Carta Magna 16 fez nascer a marcante tendência do novo código à objetivação da responsabilidade civil, que está explícita no dispositivo a seguir transcrito:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". (grifos nossos)
Nenhuma novidade significativa se verifica no caput do dispositivo supratranscrito. Trata-se da responsabilidade civil extracontratual, anteriormente prevista no art. 159. do Código Civil de 1916, cuja imputabilidade do agente representa o elemento subjetivo da culpa e se constitui na reação provocada pela infração a um dever preexistente.
No parágrafo único, diversamente, se, por um lado, laborou com acerto o legislador, ao consagrar a responsabilidade civil objetiva, independentemente de culpa, noutro, não andou bem, quando introduziu na codificação o conceito aberto de atividade de risco, transferindo para os magistrados e doutrinadores a tarefa de definir o que efetivamente vem a ser atividade de risco, apta a justificar a obrigação de reparar o dano.
Parece ter passado despercebido pelo legislador que a falta de delimitação do conceito de atividade de risco, por certo, ao menos até que a jurisprudência se pacifique – o que, sem dúvida, demorará anos ou até décadas - dará ensejo a inúmeras decisões díspares, causando, também, aumento significativo de demandas judiciais indenizatórios, a serem apreciadas nos diversos juízos e tribunais, já tão avolumados de trabalho.
Com efeito, vaticinando esse problema, CARLOS ROBERTO GONÇALVES, assim previu: "...a admissão da responsabilidade sem culpa pelo exercício de atividade que, por sua natureza, representa risco para os direitos de outrem, da forma genérica como está no texto, possibilitará ao Judiciário uma ampliação dos casos de dano indenizável". 17
É bem verdade, como disse ANDERSON SCHREIBER, que a "história das codificações mostra que um código consiste menos nas suas palavras, e mais no que sobre elas se constrói. De fato, o conteúdo de um código é sempre dinâmico, no sentido de que suas normas não são nunca dadas, mas construídas e reconstruídas dia-a-dia pelos seus intérpretes". 18
Na hipótese em discussão, porém, o Código Civil, não delimitando o conceito de atividade de risco, relegou ao magistrado uma discricionariedade que antes pertencia exclusivamente ao legislador. Terá o juiz a difícil missão de, por exemplo, decifrar, para reconhecer a responsabilidade civil, a que categoria de pessoas estaria o legislador se referindo como executora de atividade de risco. A pessoa comum que utiliza o seu veículo para se locomover, ao fazê-lo, estaria exercendo atividade de risco? Havendo um acidente de veículo, com danos, ficaria o motorista obrigado a repará-los mesmo sem a comprovação da sua culpa? Essas são apenas algumas indagações que serão suscitadas acerca da atividade de risco.
Feitos esses registros, cabe-nos, agora, a árdua tarefa de tentar compreender o sentido da norma em análise, talvez o dispositivo mais polêmico do novo Código Civil.
Duas situações são verificadas: na primeira, a responsabilidade civil poderá ser reconhecida, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei; e na segunda, por sua vez, a responsabilidade civil poderá ser reconhecida, independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
A primeira situação é muito clara e dispensa maiores questionamentos. A hipótese prevê a reparação do dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, a exemplo da norma inserta no art. 14. do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece: "O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos".
A outra, entretanto, é muito mais complexa. É onde nos deparamos com o conceito demasiadamente aberto, ou melhor, a falta de conceituação da atividade de risco a que se refere a norma.
No que diz respeito à responsabilidade objetiva, várias concepções em torno da idéia central do risco são identificadas, dentre as quais, conforme a contundente e precisa preleção do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Professor, SÉRGIO CAVALIERI FILHO, podem ser destacadas as teorias do risco-proveito, do risco profissional, do risco excepcional, do risco criado e do risco integral. 19
Cuidaremos a seguir, em aligeiradas linhas e com o objetivo meramente ilustrativo, dessas modalidades de risco:
a) Na teoria do risco-proveito a responsabilidade incorre sobre aquele que adquire algum proveito da atividade danosa. De acordo com essa teoria, a vítima do fato lesivo teria de provar a obtenção do proveito, ou seja, do lucro ou vantagem pelo autor do dano.
b) A teoria do risco profissional sustenta que o dever de indenizar sempre decorre de um fato prejudicial à atividade ou profissão do lesado, tal como ocorre nos danos causados por acidente de trabalho.
c) O risco excepcional é aquele que escapa à atividade comum da vítima, ainda que estranho ao trabalho que normalmente exerça, a exemplo dos casos de acidentes de rede elétrica, exploração de energia nuclear, radioatividade etc.
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d) Na teoria do risco criado, segundo o insigne mestre CAIO MARIO, citado por SERGIO CAVALIERI FILHO, "aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo se houver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo" (Responsabilidade civil, 3ª ed., Forense, 1992, p. 24) 20. Diferem as teorias do risco-proveito e a do risco criado ao passo em que, nesta última, não se correlaciona o dano a um proveito ou vantagem do agente.
e) Por fim, a teoria do risco integral é uma modalidade extremada da doutrina do risco, porquanto nela se dispensa até mesmo o nexo causal para justificar o dever de indenizar, que se faz presente somente em razão do dano, ainda que nos casos de culpa exclusiva da vítima.
Em sintonia com essas teorias, AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, em seu renomado dicionário da língua portuguesa, definiu a expressão "atividade", como sendo: "qualquer ação ou trabalho específico; meio de vida; ocupação; profissão; exercício efetivo de função ou emprego"; etc. E assim conceituou o "risco": "perigo ou possibilidade de perigo; situação em que há probabilidades mais ou menos previsíveis de perda ou ganho". 21
À luz dessa conceituação, poder-se-á entender por atividade de risco, apta a justificar a obrigação indenizatória, aquela empreendida habitualmente pelo agente causador do dano com fins lucrativos, como meio de vida ou como profissão. A freqüência da prática da atividade e a sua finalidade lucrativa induzem à previsibilidade, ou probabilidade, do risco para direitos de outrem.
Com o liame entre a atividade normalmente desenvolvida pelo agente com fins lucrativos - conduta humana, e o dano, além do nexo de causalidade, é que se justificaria o dever de indenizar, ainda que inexistente a ilicitude ou a culpa.
É essa, ao que nos parece, a melhor hermenêutica da norma inserta na segunda parte do polêmico parágrafo único do art. 927, do novo Código Civil. Todavia, por certo, a amplitude desse dispositivo somente será delimitada pela jurisprudência, após o aprofundado exame dos casos concretos que serão submetidos à apreciação dos julgadores, o que, como já dito, demandará muito tempo.
Nessa esteira de raciocínio, exclui-se, de logo, a possibilidade de se responsabilizar civilmente, sem a comprovação de culpa, aquele motorista que se envolveu em acidente de trânsito, com danos, quando utilizava o veículo apenas para sua locomoção, sem fins lucrativos.
Dir-se-ia, então, ao contrário senso, que todo ato danoso praticado no exercício de atividade profissional, com fins lucrativos - portanto, seria indenizável.
A questão não é tão simples assim.
O que dizer, por exemplo, da atividade médica? Sem sombra de dúvida, o médico, assim como o dentista, o enfermeiro, o farmacêutico etc., exerce atividade de risco. O dano decorrente do exercício de sua profissão seria indenizável, independentemente de comprovação de culpa?
O nosso novo Código Civil estabelece que:
"Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho".
Essa disposição legal, correspondente a do art. 1.545. do CC-1916, evidenciou a exclusão da responsabilidade objetiva dos profissionais da medicina, a exemplo do que já ocorria com os profissionais liberais em geral, cuja responsabilidade, a teor do que estabelece o art. 14, § 4º, do Código do Consumidor, é apurada mediante a verificação da culpa.
7. QUESTÕES PROCESSUAIS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Também no âmbito do Direito Processual Civil, com a obrigação de se reparar o dano independentemente de comprovação de culpa, alguns aspectos controvertíveis hão de surgir, em demandas judiciais, acerca da responsabilidade civil objetiva.
Poderá o juiz, por exemplo, numa ação judicial escorada na responsabilidade civil subjetiva, onde a culpa não resultou comprovada, condenar o agente causador do dano a indenizar a vítima, fundamentando a sua decisão na ocorrência da responsabilidade civil objetiva?
Pense-se na hipótese de uma demanda judicial em que se pede a condenação do réu a indenizar danos causados por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, ou, ainda, por ato ilícito (arts. 186. e 927, caput, do CC). Durante a instrução do processo o autor não satisfez o seu ônus de comprovar a culpa, ou o ato ilícito, do agente causador do dano. Mas, o evento danoso foi praticado no exercício de atividade de risco por ele normalmente desenvolvida, com fins lucrativos, o que resultou sobejamente provado nos autos.
Poderá o julgador, nesse caso, julgar procedente o pedido de reparação de danos, com fulcro na segunda parte do parágrafo único do art. 927, do Código Civil, ou seja, com base na responsabilidade civil objetiva?
Ora, conforme determina o art. 282, inciso III, do Código de Processo Civil, insta ao autor expor na petição inicial os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, sendo que na fundamentação está a causa de pedir.
Na hipotética exemplificação, a ação foi fundamentada na responsabilidade civil subjetiva, cuja causa de pedir vem a ser: a) a conduta humana; b) nexo causal; c) o dano; e d) a culpa. Na responsabilidade objetiva, por sua vez, a causa petendi é: a) a conduta humana; b) o nexo causal; c) o dano; e d) o risco. A culpa e o risco são, portanto, elementos que distinguem as causas de pedir desses dois sistemas de responsabilidade.
A solução da questão sob exame, ao que parece, está na análise das causas de pedir da responsabilidade subjetiva e da responsabilidade objetiva. Inexistindo identidade entre as causas petendi dos dois sistemas de responsabilização, por óbvio, não poderá o juiz inovar no processo, alterando a causa de pedir da demanda.
Com efeito, dispõe o art. 264. do Código de Processo Civil:
"Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei.
Parágrafo único: A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo." (grifo nosso)
Nesse diapasão, o art. 460, do mesmo estatuto processual, estabelece que:
"É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado".
Da inteligência das disposições processuais transcritas, extrai-se que, ainda que durante a instrução do processo resulte comprovado o nexo de causa e efeito entre a conduta, o risco e o evento danoso, se a pretensão do autor não se fundamentou no risco, mas sim na culpa, não há que se falar em responsabilidade objetiva do agente causador do dano.
Por conseguinte, no nosso entender, não poderá o juiz, numa ação judicial fundamentada exclusivamente na responsabilidade civil subjetiva, condenar o agente causador do dano a indenizar a vítima com base na ocorrência da responsabilidade civil objetiva, sob pena de nulidade da sentença.
8. CRITÉRIOS VALORATIVOS DA INDENIZAÇÃO
Da conduta humana, do dano e do nexo de causalidade, e inexistindo quaisquer das excludentes da responsabilidade civil, advém a obrigação indenizatória. Mas, como quantificar tal indenização?
Sabe-se que a finalidade jurídica da indenização, conforme de depreende do disposto no art. 402. do Código Civil, é a recomposição integral do patrimônio daquele que sofreu o dano, devendo abranger não só o que se perdeu (dano emergente), mas também o que deixou de ganhar com o evento danoso (lucro cessante).
A responsabilidade civil tem, pois, essencialmente, a função reparadora ou indenizatória, embora possa vir a assumir, acessoriamente, caráter punitivo.
Essa indenização, no que diz respeito ao conteúdo da reparação obrigacional, pode ser: a) específica ou in natura, que consiste em fazer com que as coisas voltem ao estado em que se encontravam antes de ocorrido o evento danoso; e b) por equivalência, que se traduz pelo pagamento por equivalente em dinheiro. Nesta, o juiz deve estabelecer o conteúdo do dano, considerando o dano emergente, o lucro cessante e, às vezes, o dano moral.
O Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil, em alguns casos, estabeleceram critérios para tarifação da indenização, a saber:
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a) danos causados por demanda de dívida inexigível (arts. 939. a 941 do CC-02 e art. 42. do CDC);
b) danos à vida e à integridade física da pessoa (arts. 948. a 951 CC-02);
c) danos decorrentes de usurpação e esbulho (arts. 952. CC-02);
d) por injúria, difamação ou calúnia (art. 953. CC-02);
e) por ofensa à liberdade pessoal (art. 954. CC-02)
No entanto, a regra básica de Direito Civil para a mensuração do quantum debeatur está expressa no art. 944, do novo código, que dispõe:
"Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único: Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização."
O caput do artigo transcrito é muito claro. A indenização deve ser medida de acordo com a extensão do dano. Se o prejuízo é de "X", compreendendo o dano emergente e o lucro cessante, a indenização terá de ser também de "X".
O problema está no parágrafo único desse artigo. Como poderá o juiz considerar a gravidade da culpa para fixar o valor indenizatório na hipótese de responsabilidade civil objetiva, que independe de culpa?
Comentando esse dispositivo legal, RUI STOCO, citado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, assim expressou a sua preocupação:
"Também o parágrafo único desse artigo, segundo nos parece, rompe com a teoria da restitutio integrum ao facultar ao juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização se houver ‘excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano’. Ao adotar e fazer retornar os critérios de graus da culpa obrou mal, pois o dano material não pode sofrer influência dessa gradação se comprovado que o agente agiu culposamente ou que há nexo de causa e efeito entre a conduta e o resultado danoso, nos casos de responsabilidade objetiva ou sem culpa. Aliás, como conciliar a contradição entre indenizar por inteiro quando se tratar de responsabilidade objetiva e impor indenização reduzida ou parcial porque o agente atuou com culpa leve, se na primeira hipótese sequer se exige culpa? 22
Em verdade, não nos parece coerente admitir a influência da gradação da culpa, se comprovado o nexo de causa e efeito entre a conduta e o resultado danoso, nos casos de responsabilidade civil objetiva, onde sequer se analisa a culpa para impor a indenização.
Assim, a primeira vista, deduz-se que o parágrafo único do art. 944, do Código Civil, somente será aplicado nos casos de responsabilidade subjetiva, onde a comprovação da culpa é imprescindível para gerar o dever de indenizar. Se inexistir culpa na conduta do agente causador do dano, por óbvio, não poderá haver a sua gradação no momento da fixação do valor indenizatório.
Por outro lado, no artigo em comento, deixou o legislador se esvair a oportunidade de prever parâmetros para disciplinar a extensão e os contornos do dano moral, tanto mais porque, superadas as divergências acerca da sua reparabilidade, o foco principal de debates reside, hoje, na sua quantificação.
Buscando suprir essa lacuna, e defendendo o caráter punitivo da indenização por danos morais, ao adotar a teoria do "valor do desestímulo", o Projeto de Lei n. 6.960/2002, que altera dispositivos do novo Código Civil, acrescenta um segundo parágrafo ao artigo 944, in verbis: "§ 2° A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante". O quantum indenizatório, portanto, compreenderia, também um valor capaz de dissuadir a prática e a reiteração do ato ou fato que gerou o dano.
Tratando dos critérios valorativos do dano moral, MARIA CELINA BODIM DE MORAES, lembrou que o "STJ, de modo especial nos votos do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, tem sustentado sistematicamente que, na fixação do quantum reparatório, devem ser considerados os seguintes critérios objetivos: a moderação, a proporcionalidade, o grau de culpa, o nível socioeconômico da vítima e o porte econômico do agente ofensor. No espaço de maior subjetividade, estabelece, ainda, que o juiz deve calcar-se na lógica do razoável, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso." 23
Para fixar o valor da indenização decorrente de dano moral, portanto, deve o juiz observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, de modo que ela se constitua em compensação ao lesado e sirva de desestímulo ao agente causador do dano.