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Microcefalia e o beneficio de prestação continuada (BPC)

25/03/2018 às 16:46
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O texto discute a elevação do valor destinado ao beneficio de prestação continuada para os casos de microcefalia, à semelhança do que ocorre com os idosos aposentados por invalidez e que necessitam de assistência de terceiros, além da importância das famílias acolhedoras.

Encontrava-me no Nordeste – Alagoas e Pernambuco –, quando tive contato direto pela primeira vez com um mundo triste e desconhecido por todos: o mundo sombrio e silencioso da microcefalia, de um tom cinzento, que contrasta com a alegria das águas verde-transparentes das praias de São Miguel dos Milagres, Maragogi, Porto de Galinhas, dentre outras.

É um mundo “desconhecido” porque sabemos da existência da microcefalia apenas pelos jornais, lidos no conforto de nossas casas ou nos locais de trabalho. Isso porque o número de casos confirmados de microcefalia no Brasil é muito reduzido, de “apenas” 1.616 crianças (de uma população de mais de duzentas milhões de pessoas) segundo dados do Ministério da Saúde, posicionados até 18 de junho de 2016. Até então foram 86 (oitenta e seis) mortes de brasileirinhos.

Foi impactante, porém ao mesmo tempo, emocionante, presenciar de forma tão direta a cena (foram três casos em diferentes locais): o bebê com a cabecinha pequena e deformada, dormindo inocentemente, no abrigo do colo de suas mães, que manifestavam cuidados e atenções de tal magnitude que pareciam estar guardando um tesouro. De fato, cada uma daquelas mães heroínas (poderiam ser tias, avós, irmãs) está guardando e cuidando de um tesouro: uma Vida, que delas dependerá pelo resto de suas existências. Somente quem presenciou diretamente um caso de microcefalia entende o que ora afirmamos. Reafirmo: é algo emocionante, que beira o indescritível.

Janeiro de 2016 – a falácia do novo beneficio

Ao retornar para a cidade onde resido – Brasília –, deparo-me com surpresa e indignação com notícias de jornais (não lidos durante as férias) no sentido de que o governo iria “pagar uma bolsa mensal a famílias de bebês com microcefalia”, ou que “famílias de crianças com microcefalia terão direito a um salário mínimo”. Com variações nos textos, notícias dessa natureza varreram o país falaciosamente, no início do ano, por meio de eficientes técnicas de comunicação goebbelianas (Joseph Goebbels), marca registrada de um governo que se foi e que adotou como prática reiterada, durante mais de treze anos, a apropriação de programas sociais de autoria de governos anteriores ao seu. E não apenas apropriou-se deles, mas os utilizou como massa de manobra eleitoral – como foi essa tentativa em relação à microcefalia.   

A cínica falácia governamental foi no sentido de “dar a entender” para a sociedade que aquele governo estava criando um novo programa ou benefício para as crianças com microcefalia. O truque usado pelos comunicadores consistiu-se de usar os verbos no futuro do presente simples (“terá direito”, “terão direito”).

Ora, ocorre que o suposto e “novo” benefício aos quais os mensageiros goebbelianos se referiram trata-se do velho Benefício de Prestação Continuada-BPC, previsto no art. 20 da Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993 (LOAS-Lei Orgânica da Assistência Social), sancionada no governo Itamar Franco (tendo na ocasião como Ministro de Estado do Bem-Estar Social, o então deputado federal Jutahy Magalhães Junior).

Eis o teor do referido art. 20:

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

Vale dizer que o benefício de prestação continuada foi inserido na Constituição Federal, no art. 203, inciso V, nestes termos:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;

(...)

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Assim, a LOAS materializou o benefício criado na Carta Magna cinco anos antes. Importante lembrar que o Partido dos Trabalhadores (partido do governo que anunciou, falaciosamente, o “novo benefício” para as crianças com microcefalia, no início deste ano), foi contra o texto constitucional de 1988, votando “contra” em todos os momentos possíveis. Somente após a aprovação pela maioria, os parlamentares integrantes do Partido dos Trabalhadores assinaram o texto final, ainda assim porque era um formalismo, uma exigência legal - não tendo como não fazê-lo.


Benefício de Prestação Continuada – mais de vinte e oito anos

Portanto, é incontroverso que o benefício de prestação continuada tem existência constitucional há mais de 28 (vinte e oito anos), sendo mais de 23 (vinte e três) anos de existência infraconstitucional.

A relevância do Benefício de Prestação Continuada é que ele assegura ao beneficiário (pessoas com deficiência e pessoas idosas) ao menos um salário mínimo, conforme reza o texto constitucional (“garantia de um salário mínimo de benefício mensal”). Do mesmo modo, o texto legal acompanha a Constituição, conforme se observa no art. 29, parágrafo 2º, da Lei Orgânica da Assistência Social-LOAS, nestes termos:

§ 2º O valor do salário-de-benefício não será inferior ao de um salário mínimo, nem superior ao do limite máximo do salário-de-contribuição na data de início do benefício.(negritamos)

Ou seja, embora a Constituição tenha assegurado (garantido) ao benefício de prestação continuada que o seu valor não será inferior ao de um salário mínimo (deixando evidente que pode ser superior) a LOAS estabeleceu o teto, limitando-o ao “limite máximo de contribuição”.

Essa circunstância – valor do referido benefício não ser inferior ao salário mínimo – é fundamental para as crianças com microcefalia, mormente as que se encontram na denominada “primeira infância”. Isso porque essas crianças precisam da assistência de terceiros – as cuidadoras -, papel essencial para o cuidado e auxilio no acompanhamento e desenvolvimento psicomotor da criança, geralmente assumido por suas mães que, por óbvio, não poderão trabalhar (abdicando, assim, de renda extra para a família). Por outro lado, caso essas mães venham a exercer atividade laboral para o sustento da família, é certo que terão que contar com o apoio de terceiros (cuidadoras).


Benefício insuficiente para o enfrentamento da microcefalia

Acréscimo

Ante esse quadro, descortina-se uma questão por demais óbvia, em relação ao valor usualmente destinado ao benefício de prestação continuada, de um salário mínimo: este valor é suficiente para atender esse triste status quo? Pensamos que não, eis que é imperioso prever um meio de compensação para a mãe que abandona o seu trabalho, ou para remunerar a cuidadora.

A questão é simples, prevista na própria Constituição e na LOAS: a elevação dos repasses do benefício para as crianças que têm microcefalia, medida que pode ser adotada por meio de decreto presidencial. Entretanto, o enfrentamento desta questão é urgente.

A elevação do repasse do benefício está em consonância com o art. 203, incisos I, II e IV da Constituição, anteriormente citados.

Da mesma forma, a elevação amolda-se no art. 4º, I e III, da LOAS, verbis:

Art. 4º A assistência social rege-se pelos seguintes princípios:

I - supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;

(...)

III - respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;

Importante observar que, para as pessoas idosas aposentadas por invalidez, que necessitam da assistência de terceiros, a Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, previu, em seu art. 45, um acréscimo de 25%, nestes termos:

Art. 45. O valor da aposentadoria por invalidez do segurado que necessitar da assistência permanente de outra pessoa será acrescido de 25% (vinte e cinco por cento).

Essa disposição é o reconhecimento, pelo Legislador, de que as pessoas com invalidez (deficiência) demandam – por óbvio! - maiores custos, decorrentes da assistência de terceiros. Lembremo-nos que tal regra (acréscimo de 25%) está explícita para os benefícios previdenciários (aposentadoria), que não se confundem com os assistenciais (benefício de prestação continuada).

Entretanto, no caso do benefício de prestação continuada, a Carta Magna apenas estabeleceu um piso, um valor mínimo (não pode ser inferior a um salário mínimo), de forma que, repita-se, um decreto presidencial pode sanar a questão – dispondo de acréscimo de percentual no repasse do benefício em favor das crianças com microcefalia.

In casu, poderia haver a introdução de um parágrafo 4º no art. 1º no referido Decreto 6.214, de 28 de setembro de 2007, nestes termos:

§ 4º.  O valor do benefício de prestação continuada destinado às crianças (pessoas) portadoras de microcefalia será acrescido de 25% (vinte e cinco por cento).

Naturalmente, o percentual deve ser cuidadosamente estudado. Apesar do exemplo acima registrar 25%, pensamos que um acréscimo de 50% é razoável para os casos de microcefalia. Para que se tenha uma ideia de qual seria o impacto financeiro da medida, considerando que todas as 1.616 crianças com casos de microcefalia confirmado estão recebendo o benefício (o que é improvável), o impacto seria de apenas R$ 355.520,00 mensais (se o acréscimo for de 25%) ou de R$ 711.040,00 mensais (se o acréscimo for de 50%). Ou seja, podemos considerar o custo (prefiro dizer: investimento) do referido acréscimo como um valor desprezível, mas de elevada função social.

Por outro lado, é evidente que esses custos são incomparavelmente menores do que os dos equipamentos públicos que poderiam receber essas crianças: os centro-dias.       

Composição da Renda Familiar para fins de concessão do beneficio

Para fins de direito à percepção do benefício, foi estabelecido no art. 20, parágrafo 3º, da LOAS, o seguinte:

Art. 20, § 3º. “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.”

Não adentraremos na questão do parâmetro previsto de ¼ (um quarto), até porque esse quantum vem sendo questionado nos tribunais superiores. A questão que abordamos é outra: as parcelas consideradas para fins de composição da renda familiar, no Decreto em vigor.

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Ocorre que ao regulamentar o art. 20, § 3º, parece-nos que o Decreto ampliou em demasia o que a lei determinou. Nesse sentido, confira-se o teor do art. 4º, inciso VI, do Decreto 6.214, de 28 de setembro de 2007:

Art. 4o  Para os fins do reconhecimento do direito ao benefício, considera-se:

(...)

VI - renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, seguro-desemprego, comissões, pro-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19

A ressalva que consta no referido art. 19, parágrafo único, tem esta redação:

Art. 19.  Parágrafo único.  O valor do Benefício de Prestação Continuada concedido a idosonão será computado no cálculo da renda mensal bruta familiar a que se refere o inciso VI do art. 4o, para fins de concessão do Benefício de Prestação Continuada a outro idoso da mesma família.

Dessa forma, o decreto presidencial vigente considerou como integrante da renda familiar, para fins de percepção do benéfico de prestação continuada, todas as parcelas recebidas sob quaisquer títulos – inclusive benefício de mesma espécie concedido a outro integrante no mesmo grupo familiar -, o que nos parece equivocado. Se há outro benefício assistencial pago a outro membro do grupo familiar, é porque essa família encontra-se em vulnerabilidade social, agora agravada com a chegada de mais um membro (criança com microcefalia).  

Portanto, há que se desconsiderar da renda familiar todo e qualquer benefício assistencial concedido a membro do mesmo grupo familiar, para fins de concessão do benéfico de prestação continuada para crianças com microcefalia.  

A exceção prevista no decreto presidencial (art. 19, parágrafo único) é decorrente do Estatuto do Idoso (Lei 10.741, de 01 de outubro de 2003), em seu art.34, parágrafo único:

Art. 34, Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.(negritamos).                                                                                  

Entendemos que, no caso das crianças com microcefalia, também um decreto presidencial resolve essa questão, bastando excluir da composição da renda familiar o benefício de prestação continuada (ou qualquer outro tipo de rendimento assistencial) recebido por outro membro do grupo familiar, por meio de inclusão do parágrafo 4º no art. 4º, ou de inclusão do art. 8º, no Decreto 6.214, de 28 de setembro de 2007.

A redação do novo texto poderia ser na seguinte direção:

O valor de qualquer benefício assistencial concedido a outro membro do grupo familiar não será computado no cálculo da renda mensal bruta familiar para fins de concessão do Benefício de Prestação Continuada, para a criança com microcefalia, da mesma família.

Famílias acolhedoras e microcefalia

Embora não seja o objetivo desse despretensioso trabalho discorrer sobre o tema, não poderíamos deixar passar em branco o papel extraordinário que as famílias acolhedoras poderão assumir para a criança com microcefalia, (infelizmente) abandonada por seus pais.

O acolhimento familiar, desconhecido da população brasileira, está previsto na Carta Magna, art. 226, inc.VI, verbis:

“estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;”.

Grosso modo, o acolhimento familiar é medida protetiva que possibilita à criança e ao adolescente em vulnerabilidade e afastado de sua família ser colocado sob a guarda de outra família, previamente selecionada, cadastrada e vinculada a um programa. A criança fica abrigada no seio de uma família, com todas as atenções desta, em vez de permanecer em alguma instituição de acolhimento (abrigo, casa lar).

No Estatuto da Criança e do Adolescente o acolhimento familiar comparece nos arts 19, § 1º; art. 34, §§ 1º e 2º; art. 50, § 11; art. 50, § 4º; art. 88, inc. VI; art.93, parágrafo único; art. 101, inc. VIII.   

Para os casos de crianças com microcefalia afastadas de seus pais, as famílias acolhedoras consistem-se na alternativa ideal para abrigá-las, devendo essas famílias receber algum subsidio financeiro, inclusive o benefício de prestação continuada.

Por outro lado, considerando as dificuldades óbvias na adoção de crianças com microcefalia, pode ser que encontramo-nos em momento especial para debater a primazia na adoção dessas crianças por famílias acolhedoras que demonstrarem interesse, depois de decorrido um lapso de tempo. É de sabença geral que laços de vinculo e afeto surgem entre famílias acolhedoras e as crianças por elas acolhidas, de forma que ante um quadro de dificuldade de adoção dessas crianças, há que se privilegiar e fortalecer esse vínculo, por meio da adoção, em conformidade com o superior interesse do menor e da absoluta prioridade que a ele deve ser assegurada, nos termos do art. 227, caput, da Constituição, verbis:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Todas as medidas propostas ao longo desse texto submetem-se a um dos principais princípios fundamentais da Constituição Federal (cláusulas pétreas), qual seja, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III).    

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Sobre o autor
Milton Cordova Junior

Advogado, Mestrando em Estudos Jurídicos Avançados, pós-graduado em Direito Público, com Extensão em Defesa Nacional pela Escola Superior de Defesa, extensões em Direito Constitucional e Direito Constitucional Tributário. Empregado de empresa pública federal. Recebeu Voto de Aplauso do Senado Federal por relevantes contribuições à efetivação da cidadania e dos direitos políticos (acesso in http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/09/26/ccj-aprova-voto-de-aplauso-ao-advogado-milton-cordova-junior). Idealizador do fundo de subsídios habitacional denominado FAR - Fundo de Arrendamento Residencial, que sustenta o Programa Minha Casa Minha Vida, implementado por meio da Medida Provisória 1.823/99, de 29.04.1999.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDOVA JUNIOR, Milton. Microcefalia e o beneficio de prestação continuada (BPC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5380, 25 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51607. Acesso em: 21 nov. 2024.

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Nota dos editores: Alguns trechos deste trabalho podem estar desatualizados no momento de sua publicação na Revista Jus Navigandi.

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