O conceito de pessoa com deficiência passou recentemente por significativas transformações.
A redação original da Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social) conceituava como deficiente a pessoa incapaz para o trabalho e para a vida independente. Da mesma forma, o artigo 3º do Decreto nº 3.298/1999, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, definia deficiência como “[...] toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.
Todavia, desde a Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada pelo Brasil em 09 de julho de 2008, nos termos do §3º do art. 5º da Constituição Federal e, portanto, com equivalência de emenda constitucional, o ordenamento jurídico brasileiro possui um novo conceito baseado em critérios sociais, não mais apenas médicos, dessa vez com eficácia revogatória de toda a legislação infraconstitucional que lhe seja contrária.
A referida Convenção, já em seu preâmbulo, na alínea “e”, aponta para a incompletude do conceito de deficiência, que deverá ser verificado e atualizado em cada momento/contexto histórico, apontando, ainda, para sua dimensão social, não mais a considerando como algo intrínseco à pessoa. Vejamos a disposição do preâmbulo da Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2008, p. 27), no tocante à conceituação de deficiência
e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas [...].
A Lei nº 13.146 de 06 de julho de 2015 que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, denominado Estatuto da Pessoa com Deficiência, veio confirmar esse novo conceito e adequar a legislação brasileira ao disposto na Convenção.
O art. 2º do Estatuto define como pessoa com deficiência aquela que possui “[...] impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”. Da definição legal infere-se que há vários tipos de deficiências, que deficiência intelectual é uma espécie[1] e o intuito da lei é a igualdade de condições entre as pessoas na participação da vida em sociedade.
Dessa forma, compreende-se que o novo conceito considera que a deficiência não está na pessoa, mas na relação entre a pessoa (que tem impedimentos em alguma área) com o meio (barreiras), que impedem sua participação plena na sociedade.
A Convenção e o Estatuto representaram um grande passo na diminuição das barreiras sociais em relação as pessoas com deficiência, pois passa do modelo médico para o modelo social e nos remete a Classificação Internaciacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2001, que permite descrever situações relacionadas com a funcionalidade do ser humano e suas restrições. Em contrapartida, a redação original da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993), que conceituava pessoa com deficiência como incapaz, caminhava em sentido retrógrado à essa evolução social.
Bublitz (2012) acertadamente defende que deficiência não deve ser confundida com incapacidade. Fávero (2012, p. 115) também critica o antigo conceito legal
[...] fez muito mal, pois definiu pessoa com deficiência, para efeito deste benefício, como aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho (art. 20, §2º). Tal definição choca-se, frontalmente, com todo o movimento mundial pela inclusão da pessoa com deficiência. Num momento em que se procura ressaltar os potenciais e as capacidades da pessoa com deficiência, por esta lei, ela deve demonstrar exatamente o contrário [...]. Muitos pais acabam impedindo seus filhos com deficiência de estudar e de se qualificar, justamente para não perderem o direito a esse salário mínimo.
De fato, o núcleo da atual definição é a interação dos impedimentos que as pessoas têm com as diversas barreiras sociais, tendo como resultado a obstrução da sua participação plena e efetiva na sociedade, em condição de igualdade com as demais pessoas. A deficiência não é mais, assim, vista como algo intrínseco à pessoa, como pregavam as definições puramente médicas (impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial); a deficiência está na sociedade, não na pessoa.
Nesse sentido, vejamos o apontamento de Fonseca (2008, p. 24)
Os impedimentos de caráter físico, mental, intelectual e sensorial são, a meu sentir, atributos, peculiaridades ou predicados pessoais, os quais, em interação com as diversas barreiras sociais, podem excluir as pessoas que os apresentam da participação da vida política, aqui considerada no sentido mais amplo […].
Lei nº 8.742/1993, alterada pela Lei nº 12.435/2011, dispõe sobre a organização da Assistência Social, e já adota, em seu art. 20, §2º, I, o conceito de pessoa com deficiência trazido pela Convenção da ONU e, assim, está consentânea com o sistema constitucional brasileiro. Da mesma forma, o Decreto nº 7.612/2011, que institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, já traz em seu art. 2º, a definição de pessoa com deficiência consentânea com a Convenção da ONU.
Notamos, assim, que o legislador brasileiro já vem encampando o novo conceito de pessoa com deficiência trazido pela Convenção da ONU e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, vez que possui equivalência de emenda constitucional e eficácia revogatória de toda a legislação infraconstitucional que lhe seja contrária, nos termos do §3º do art. 5º da Constituição Federal, sendo, portanto, o conceito que deve ser utilizado quando da interpretação de todas as normas que buscam garantir direitos as pessoas com deficiência.
REFERÊNCIAS:
BUBLITZ, Michelle Dias. Conceito de pessoa com deficiência: comentário à ADPF 182 do STF. Revista da AJURIS. Porto Alegre, v. 39, n.127, p. 353-369, set. 2012.
FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direitos das pessoas com deficiência: garantia de igualdade na diversidade. In: SANTOS, Marisa Ferreira dos; LENZA, Pedro (Coord.). Direito previdenciário esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A ONU e o seu conceito revolucionário de pessoa com deficiência. LTr: Revista Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 72, n. 3, mar. 2008
Nota
[1] Com a Declaração de Montreal sobre Deficiência Intelectual em congresso internacional realizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com participação brasileira, o uso do termo “deficiência intelectual” vem sido preferido ao de “deficiência mental” porque o adjetivo “mental” confunde com o significado de “doença mental”, que por sua vez vem sido substituído para “transtorno mental” (SASSAKI, dez.2004).