Embora alheio à competência material da Justiça do Trabalho, o presente estudo adverte para a possibilidade de ocorrência de crime de sonegação de contribuição social previdenciária previsto no art. 337-A do Código Penal nas relações de trabalho que emerge visível no processo trabalhista e que, aos olhos do Juiz do Trabalho, não pode passar desapercebido para indicá-lo às autoridades competentes que tratam de sua repressão. Portanto, passemos à análise dos argumentos pertinentes.
O Direito do Trabalho tem por objeto as controvérsias decorrentes das relações de trabalho, mas não pode se omitir em face de condutas lesivas que, no exercício de sua jurisdição, sejam constatadas como puníveis na esfera penal.
O disposto no artigo 337-A do Código Penal, introduzido no ordenamento pela Lei 9983, de 17.06.2000 (vigência a partir de 17.10.2000), reformulou os fatos antes tipificados no artigo 95, a, b e c da Lei 8.212/91, transformando-os em crimes materiais, tipificando condutas fraudulentas como meios para evasão fiscal, realizáveis dentro das relações de trabalho. Observe-se o teor do dispositivo:
Artigo 337-A – Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir da folha de pagamento da empresa ou de documento de informação previsto pela legislação previdenciária segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviço;
II – deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços;
III – omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
A tendência de proteção, pelo ordenamento, dos bens jurídicos em uma acepção coletiva ou difusa - em especial o Erário e a ordem econômica, como instituições que garantem a efetividade da função social do Estado – e a nocividade capilar e difusa da sonegação fiscal a um Estado Social – porque deve manter a previdência e assistência sociais, a educação, a saúde pública e fomentar o direito ao trabalho, dentre outros direitos sociais, nos termos do artigo 6º da Constituição da República –, impõem a todos os Poderes da União e órgãos da Administração Pública, especialmente aos operadores do direito, atenção às condutas que possam vir a enquadrar-se como lesivas ao Erário, mormente os crimes contra a ordem tributária.
O delito de redução ou supressão de contribuição social previdenciária disposto no art. 337-A do Código Penal, é classificado, pelos doutrinadores, como crime material, e, assim, exige se prove a supressão (não pagamento) ou redução (pagamento a menor) da contribuição social previdenciária e qualquer acessório. O momento de sua consumação ocorre com a própria evasão da contribuição social, que se dá com a expiração do prazo para o cumprimento da prestação da obrigação. No entanto, no caminho do crime, a conduta típica é desmembrada em dois comportamentos: o antecedente, com a realização de uma das condutas fraudulentas retro descritas nos incisos; e o subseqüente, com o implemento dos resultados obtidos pelo não-pagamento. Afirmam os doutrinadores, ainda, que o elemento subjetivo é o dolo genérico, consistente na intenção de realizar a evasão tributária com obtenção do resultado, pouco importando no que seria utilizado o valor alcançado com a redução ou supressão da contribuição social.
À luz de tais dados, pode-se verificar, ainda que em tese, a tipificação das condutas instrumentais descritas nos incisos I e III do art. 337-A do Código Penal na dicção do reconhecimento de vínculo de emprego. Explica-se. Se num processo trabalhista resulta configurada a existência de uma relação de emprego ocorrida, por exemplo, de 03.11.2000 a 25.05.2002, tendo havido apenas o pagamento de valores mensais como se salário fossem, há verbas a serem satisfeitas ao trabalhador decorrentes do reconhecimento de tal status jurídico, tais como, férias com acréscimo de 1/3 (vencidas e proporcionais), gratificação de natal (dos anos de 2000, 2001 e 2002) e FGTS do período, para citar as que decorrem pura e simplesmente desse reconhecimento – ressalvando-se que poderiam decorrer outras, dependendo do caso concreto, como horas extras, adicionais de insalubridade, noturno, por tempo de serviço, etc. Essas parcelas não foram pagas e vão compor, portanto, as parcelas da condenação da sentença; por outro lado, por ordem do art. 832, §3º da CLT, tais parcelas também devem ser apontadas como base de cálculo para a incidência da contribuição social previdenciária, cotas do empregado e do empregador, de acordo com a Lei 8.212/91. Os valores devidos serão apurados, quantificados em sede de execução; no entanto, o direito material é definido quando do trânsito em julgado da decisão. Nesse momento consolida-se coisa julgada material. E, embora não se possa apontar, de início, o quantum sonegado a título de contribuição social, resulta claro que foi percorrido o caminho do crime para delinear a conduta antecedente, a fraude, portanto, desmascarada na ação trabalhista.
Note-se que, reconhecida uma relação de emprego, essa declaração opera efeitos "ex tunc", ou seja, desde o início da prestação dos serviços, com cargas constitutiva e condenatória, do que decorre o dever de anotar a carteira profissional com a data de admissão, de pagar os salários ou diferenças de salários e demais direitos, tais como férias, décimo terceiro salário, adicionais, horas extras, conforme o caso concreto. Isso tudo em relação a esfera trabalhista. Não menos verdade é que o reconhecimento de um contrato de emprego gera efeitos retroativos, desde o início do marco, também na esfera previdenciária. Isso porque a própria condenação da sentença trabalhista autoriza a dedução, do montante total devido ao empregado, dos valores que deveriam ter sido recolhidos à previdência social a título de contribuição previdenciária do empregado, determinando-se que sejam calculados mês a mês e respeitadas as alíquotas bem como o teto do maior salário-de-contribuição à época em que deveria ter sido feito seu pagamento, sendo do empregador o dever de recolher os valores devidos pela sua cota, bem como pela cota do empregado para posterior comprovação nos autos, sob pena de execução forçada nos próprios autos da ação. Disso resulta claríssimo que o provimento judicial trabalhista gera efeitos desde quando reconhecido o direito. A relevância dessa produção de efeitos está no fato de que a consumação do delito previsto no art. 337-A do Código Penal ocorre com a redução ou com a supressão da contribuição social; no entanto, para chegar-se a tal ponto, há que haver condutas prévias, comissivas ou omissivas, que garantam o objetivo final de evasão fiscal, as ditas condutas fraudulentas. É o que ocorre quando em plena continuidade está a relação de trabalho: o trabalhador, em total informalidade, vai prestando os serviços, o tomador vai lhe pagando periodicamente por isso – dadas as naturezas fungível, sinalagmática e continuativa dessa relação – e a cada passagem de lapso específico consolidam-se lesões ao fisco, ou seja, em cada mês não são recolhidas as contribuições sociais pertinentes, posto que as partes entendem estarem protegidas pela informalidade ou por outra situação jurídica com aparência de legalidade. Ressalta-se, outrossim, que a relação de emprego é a regra, é preceito constitucional, um dos pilares da ordem econômica e financeira (art. 170) e dos direitos fundamentais (arts. 6º e 7º); todas as demais relações de prestação de trabalho são exceção e devem se estruturar consoante as regras legais de cada uma, sob pena de serem cobertas pelo manto do reconhecimento do contrato de emprego, regra geral. De qualquer sorte, no âmbito da previdência social, estão previstas todas as formas de prestação de trabalho como fatos geradores para a incidência da contribuição social, não apenas a relação de emprego, esta sim, centro da competência material da Justiça do Trabalho.
Por outro lado, a norma penal é de cunho objetivo, não exigindo um dolo específico, diferenciado, senão o dolo genérico de querer desviar, no todo ou em parte, o valor que seria devido a título de contribuição social, cotas do empregado e do empregador. Ocorre que se verifica a hipótese de conduta fraudulenta na omissão do reconhecimento do contrato de emprego, não sendo raro o mau "costume" dos empregadores de não anotarem a carteira de trabalho do empregado para evitar-se a formalização da relação e, assim, a imposição da obrigação tributária da contribuição social específica. É conduta nociva ao meio social, pois o trabalhador, em si mesmo considerado, além de ver sonegado o direito do reconhecimento de uma situação de fato que é jurídica com o inadimplemento de inúmeros consectários legais e o próprio tempo de contribuição para a futura jubilação, sofre coletivamente pelo desvio de tributos que são destinados ao sistema de financiamento da previdência social, em sentido amplo, e à assistência social. Trata-se de tema atualíssimo na mídia e que dispensa maiores comentários.
Ademais, considerando-se que o risco, a função do risco, é o que justifica o empreendedor de capital, ao entrar no mercado, ele se vê diante de regras que, por vezes, são a si favoráveis, como os incentivos fiscais lato sensu, e, outras, nem tanto assim, porque vem a equilibrar sua tentativa de lucro fácil e a qualquer preço, como o arcabouço jurídico trabalhista, que entra como grande equilibrista na relação capital-trabalho. Portanto, a Justiça do Trabalho, ao receber ação trabalhista, vigia e resguarda o cumprimento da própria função social do contrato de trabalho, e, encontrando instituto paralelo e indireto de proteção ao trabalhador, como é a ameaça concreta de processo penal por sonegação de contribuição social previdenciária pela prática de fraudes dentro da relação de trabalho, deve utilizar tal instrumento. Dessa forma, fecha-se um "cerco" a um sistema defensor que não está dentro da relação de trabalho – e por isso refoge à competência da Justiça do Trabalho – mas sim, muito maior, abrangendo a própria atividade econômica, o mercado e seus consectários e o Erário. Esse é um dos pontos relevantes para que se perquira qual o papel do magistrado do trabalho diante de uma realidade social que cada dia mais mostra a fragilidade do trabalhador, trazendo à lume sua condição de hipossuficiência para além da esfera jurídico-trabalhista. Os juízes não podem fechar os olhos aos prejuízos e também às agruras a que são submetidos os trabalhadores, muitas vezes postos em condições de indignidade, sem o reconhecimento do contrato mínimo. Estes, quando se encontram com ação trabalhista ajuizada, estão a buscar, não apenas direitos de cunho econômico, mas também a correção da indignidade a que foram submetidos calados pela evidente necessidade de ganhar o pão de cada dia. Se o magistrado do trabalho pode usar de mais um instrumento de correção de desigualdades, chamando as autoridades competentes para auxiliá-lo nessa tarefa de proteção ao sistema jurídico como um todo, deve fazê-lo. Com esses passos de atuação dos agentes estatais, o empreendedor de atividade econômica poderá sopesar com mais clareza os riscos a que está exposto quando concorre no mercado, se quiser alcançar o sucesso de seu empreendimento. É dever do Estado deixar claros esses riscos, expressão do princípio da boa-fé. De resto, o alarme a virtual delito de sonegação vem a dignificar o empreendedor correto, cumpridor de seus deveres, que anota o contrato de emprego na carteira profissional, que paga salários em dia, que se dispõe a negociar coletivamente e que recolhe as contribuições sociais incidentes sobre o trabalho, um dos componentes de sua produção. Também aqui há correção de desigualdades, expressão do mega princípio da isonomia. Note-se que a questão é muito ampla, por isso, a necessidade de colocar-se "cada coisa no seu devido lugar". Que justiça há em se reconhecer um status jurídico, condenar ao pagamento de parcelas trabalhistas, as quais serão obtidas após longa batalha no processo de execução – segundo calvário do trabalhador – e silenciar quanto a um possível delito de conseqüências muito maiores do que perpetuação da prática da má-fé? Seguramente uma justiça incompleta, que satisfaz um pouquinho, mas não olha para todos os bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. Se o juiz do trabalho não pode agir de ofício, entrando em esfera de competência alheia, também não pode se calar. E, com simples decisão na sentença, pode iniciar a movimentação de outro sistema protetivo.
Assim, vislumbra-se a hipótese de incidência da norma penal do art. 337-A do Código Penal em inúmeras condutas das partes litigantes em processo trabalhista. No entanto, em razão de que limitada a competência da Justiça do Trabalho pelos termos do art. 114 da Constituição, e considerando-se que a competência para a ação penal de sonegação fiscal de tributo federal é o Ministério Público Federal (por se tratarem, as contribuições previdenciárias, de tributo devido ao INSS, autarquia da União, atraindo a competência penal da Justiça Federal - art. 109, IV, da Constituição), titular da ação penal que decidirá sobre a conveniência e oportunidade do ajuizamento da respectiva ação penal, contra quem e nos termos que entender cabíveis, no mínimo, seria benéfico envidarem-se esforços conjuntos para o esclarecimento de fatos trazidos à lide trabalhista e que virtualmente possam consubstanciar conduta típica, seus procedimentos processuais, especialmente no que tange ao resultado da ação e à incidência da contribuição social previdenciária, não se excluindo o interesse direto do INSS. Formar-se-ia, então, espécie de cerco ao empregador sonegador.
A iniciativa da repressão do crime pode (e deve) se dar com o Juiz do Trabalho quando visualiza conduta fraudulenta no processo do trabalho. Note-se que a intimação do INSS para ciência das verbas trabalhistas da condenação que vão formar o salário de contribuição para a incidência da contribuição social previdenciária não supre o alerta à conduta delituosa. O INSS é agente arrecadador da União do tributo consubstanciado na contribuição social previdenciária e não o próprio sujeito ativo, titular do tributo; seu poder-dever repousa na ação fiscal arrecadatória, na cobrança da obrigação tributária. E mesmo se fosse o titular, o pagamento do débito não teria o condão de, por si só, extinguir a punibilidade da conduta típica, matéria amplamente controvertida na jurisprudência específica. Quem é o titular da ação penal, ou seja, quem detém o poder-dever de punir na esfera penal é o Ministério Público, no caso, o MP Federal. As esferas trabalhista, previdenciária e penal são completamente independentes entre si e isso não retira a harmonia com que devem se conduzir.
Sobre o tema:
EISELE, Andreas. Crimes contra a Ordem Tributária. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada, Editora Dialética. São Paulo. SP. 2002.