Aplicabilidade da Lei 8.429/92 aos agentes políticos

02/09/2016 às 16:37
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O presente artigo sujeita-se a mostrar a inaplicabilidade da Lei n. 8.429/92, com relação a atos Improbidade Administrativa aos agentes políticos a luz do princípio da presunção de constitucionalidade das leis.

Diante de situações que envolvem atos de improbidade administrativa, muito se questionou sobre a inaplicabilidade da Lei de Improbidade aos agentes políticos, sob o argumento de que há regramento jurídico próprio para a perda do mandato do detentor cargo político, não cabendo seu afastamento com fulcro em mencionada Lei.

Para tanto, mencionara a Reclamação n.2.138/DF, que tramita no STF, onde alguns Ministros, se manifestaram sobre submissão dos detentores de mandado político à Lei de Improbidade.

O Relator, Min. Nelson Jobim, esposou o entendimento de que os agentes políticos, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade, não respondem por improbidade administrativa com base na Lei 8.429/92, mas apenas por crime de responsabilidade, tendo sido seguido pelos Ministros Maurício Corrêa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Ilmar Galvão e César Peluso.

Divergindo do voto do Relator, o Min. Carlos Velloso, que entendeu que os agentes políticos respondem pelos crimes de responsabilidade tipificados nas respectivas leis especiais, mas, em relação ao que não estiver tipificado como crime de responsabilidade, e estiver definido como ato de improbidade, devem responder na forma da Lei 8.429/92, aplicável a qualquer agente público.  O julgamento do feito encontra-se atualmente sobrestado por pedido de vista do Min. Joaquim Barbosa.

Em que pese, no presente momento, seis ministros terem votado no sentido de não estarem os agentes políticos sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa, não se pode, em absoluto, ter-se esse entendimento como definitivo, como lucidamente sustentou o Min. Carlos de Britto em recentíssima decisão (j. 06/06/2006) proferida nos autos da Reclamação 4400/MG, que, por sua eloquência, cumpre-nos transcrever:

Vistos, etc.  Cuida-se de reclamação, proposta por Daniel de Souza Dutra, ex-Prefeito do Município mineiro de Ipanema, em face da decisão proferida pelo douto Juízo de Direito da mencionada Comarca, nos autos da Ação Civil Pública nº 0312.05.000.866-2. 2.  Pois bem, o reclamante sustenta que foi ajuizada, contra ele, uma ação civil pública por ato de improbidade administrativa.  Informa que o processo foi instaurado para apurar atos que configurariam, em tese, crime de responsabilidade.  Diz, ainda, que: "Tendo em vista a decisão proferida na Reclamação nº 2.138 que tramita perante o Excelso STF e até o presente momento já conta com 06 (seis) votos favoráveis da procedência da Reclamação, para declarar a incompetência absoluta do juízo de primeira instância para julgar agentes políticos por atos de improbidade, resta clara a caracterização da incompetência absoluta, in casu, eis que se trata de ex-Prefeito Municipal respondendo por ação de improbidade perante o juízo de primeira instância, por atos funcionais do exercício do mandato eletivo de Chefe do Poder Executivo Municipal" (fls. 04/05).  3. Prossigo no relato da causa para averbar que, após declinar os fundamentos jurídicos da pretensão de ver julgada procedente a reclamatória, o acionante formula o pedido, pugnando pela garantia da autoridade do ato decisório tido por desrespeitado.  Cautelarmente, pede a suspensão dos efeitos da decisão reclamada, até o julgamento de mérito desta reclamação.  4. Esse o relatório.  Passo a decidir.  Fazendo-o, anoto que a reclamatória não merece trânsito.  É que, segundo noticiou o postulante, este Supremo Tribunal Federal ainda não julgou definitivamente a Rcl 2.138, porquanto ainda não foram colhidos os votos dos Ministros Joaquim Barbosa, Marco Aurélio, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Ademais, nada obsta que algum integrante desta Corte Suprema que já tenha votado pela procedência da reclamação reconsidere o seu ponto de vista.  Logo, é precipitado afirmar que "já foram proferidos nada menos do que seis votos a favor de sua procedência, o que torna irreversível a sua procedência mesmo que os demais Ministros votem pela não procedência" (fls. 02/03).  6. Noutro giro, ainda que se diga -- apenas para argumentar – ser cabível o manejo da presente reclamatória sob o fundamento de violação do decisório tomado na Rcl 2.138, anoto que a reclamação constitucional prevista na alínea l do inciso I do artigo 102 da Carta-cidadã se revela como uma importante ferramenta processual para o fim de preservar a competência desta colenda Corte e garantir a autoridade das suas decisões.  Nesta última hipótese, contudo, sabe-se que as reclamatórias somente podem ser manejadas ante o descumprimento de decisórios proferidos, com efeito vinculante, nas ações destinadas ao controle abstrato de constitucionalidade, ou, então, nos processos de índole subjetiva (desde que, neste último caso, o eventual reclamante deles haja participado).  7. Dito isto, cumpre averbar que a decisão a ser proferida na Rcl 2.138 não possuirá efeito vinculante e eficácia erga omnes, razão pela qual o pronunciamento jurisdicional a ser exarado naquele feito apenas terá a finalidade de atar as partes nele envolvidas.  E se é assim – vale repisar, se o reclamante não está figurando em nenhum dos pólos da relação processual instaurada no seio do precitado apelo extremo, é de se inferir que, no ponto, faltaria ao acionante legitimidade ativa ad causa.  8. Nessa ampla moldura, nego seguimento ao pedido, restando prejudicada a liminar pleiteada (§ 1º do art. 21 do RI/STF).  Publique-se. Brasília, 06 de junho de 2006. Ministro CARLOS AYRES BRITTO, Relator.

A propósito, a possibilidade de reconsideração de voto já proferido por alguns dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e a conseqüente reversão no julgamento da Reclamação n.° 2138-6-DF, como prenunciada pelo Ministro Carlos Ayres Britto, não vem apenas reanimar a desencantada e desesperançosa sociedade brasileira no combate à alastrante corrupção no país, mas, sobretudo, restabelecer a independência de instâncias como princípio em que se assenta todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Com efeito, a linha de entendimento defendida pelo Ministro Nelson Jobim, no sentido de que por já estarem os agentes políticos sujeitos à responsabilização por crimes de responsabilidade contemplados na Lei n.° 1079/50 e Decreto-Lei n.° 201/67, não se submetem ipso facto à lei de improbidade administrativa, espezinha a independência de instâncias.

A Constituição Federal, em seu art. 37, § 4.°, estabelece que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

A ressalva contida no texto constitucional é evidência de que de um mesmo fato podem ser extraídas conseqüências penais e não-penais.

A Lei de Improbidade Administrativa, aplicável àquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contração ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior, em seu Capítulo III, art. 12, dispõe textualmente sobre a sujeição do agente ímprobo a sanções penais, civis e administrativas.

Em se tratando de agentes políticos, a legislação brasileira prevê sanções de natureza penal, cominadas aos crimes funcionais tipificados nos arts. 312 a 326 do Capítulo I do Título XI do Código Penal (Dos Crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral), sanções de natureza político-administrativa cominadas aos impropriamente denominados crimes de responsabilidade (estabelecidos na Lei n.° 1079/50 e Decreto-Lei 201/67), bem como reprimendas de natureza civil, relacionadas na Lei de Improbidade Administrativa.

A natureza não-penal ou civil das sanções contempladas na Lei de Improbidade Administrativa não é deduzida apenas da ressalva contida no art. 37, § 4.°, da Constitucional Federal.  Também a disciplina legal dispensada aos atos de improbidade os distanciam por completo da esfera penal.

Enquanto na legislação penal as ações definidas como típicas devem ser claras e precisas, vedada a utilização de termos ambíguos e equívocos, na Lei de Improbidade Administrativa lançou mão o legislador de inúmeros conceitos jurídicos indeterminados, inadmissíveis na descrição de tipos penais incriminadores.

Expressões como “enriquecimento ilícito”, “deveres de honestidade” e de ”lealdade às instituições”, presentes nos arts. 9.°, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, onde têm grande aplicabilidade prática, seriam absolutamente inaceitáveis na redação de infração penal.  Os conceitos jurídicos indeterminados, à luz da doutrina mais autorizada, têm na sua estrutura um núcleo fixo ou zona de certeza e um halo conceitual ou zona de dúvida.

Entretanto, como bem esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello, “todas as palavras têm um conteúdo mínimo, sem o quê a comunicação humana seria impossível. Por isso, ainda quando recobrem noções elásticas, estão de todo modo circunscrevendo um campo de realidade suscetível de ser apreendido, exatamente porque recortável no universo das possibilidades lógicas, mesmo que em suas franjas remanesça alguma imprecisão. Em suma: haverá sempre, como disse Fernando Sainz Moreno, uma “zona de certeza positiva”, ao lado da “zona de certeza negativa”, em relação aos conceitos imprecisos, por mais fluidos que sejam...”

Assenta-se, assim, a natureza civil das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa.  Com relação aos crimes de responsabilidade, de logo, cabe salientar que são, em verdade, infrações político-administrativas, sujeitas a processos de mesma natureza, conduzidos pelo Senado Federal, Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores, com penalidades essencialmente políticas – perda do cargo (impeachment) e inabilitação para o exercício de função pública.

Diferenciando as infrações político-administrativas (ou impropriamente denominados crimes de responsabilidade) dos crimes comuns, dispunha a própria exposição de motivos da Lei nº 1.079/50 que “ao conjunto de providências e medidas que o constituem, dá-se o nome de processo, porque este é o termo genérico com que se designam os atos de acusação, defesa e julgamento, mas é, em última análise, um processo sui generis, que não se confunde e se não pode confundir com o processo judiciário, porque promana de outros fundamentos e visa outros fins”.

Também o faz a própria Constituição Federal (art. 52, paragrafo único) ao tratar da competência do Senado para processar e julgar crimes de responsabilidade:

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Art. 52...

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.

Aliás, espancando qualquer dúvida quanto à separação entre as sanções de natureza penal, civil, e político-administrativa, a Lei n.° 1.079/50 e o Decreto-Lei 201/67 estabelecem:

Art. 3.° da Lei 1.079/50:

A imposição da pena referida no artigo anterior não exclui o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal.  Grifou-se.

Art. 1.° do Decreto-Lei 201/67:

São crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

(...)

§ 1.°. Os crimes definidos neste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e os demais, com a pena de detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

§ 2.º. A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de 5 (cinco) anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.  Grifou-se.

Art. 4.°. do Decreto-Lei 201/67:

São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais, sujeitas a julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato: (...)  Grifou-se.

Assim, não são conflitantes nem excludentes as esferas de responsabilização penal, política e civil do agente político.  A primeira decorre da prática de crimes comuns ou funcionais, em sua maioria tipificados no Código Penal Brasileiro, perante órgão do Poder Judiciário (juiz singular ou tribunal, nos casos de foro privilegiado).  A responsabilização política, por sua vez, se sucede à prática de infração político-administrativa prevista, para o Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado, na Lei n.° 1.079/50 e, para Prefeitos e Vereadores, no Decreto-Lei n.° 201/67, tocando o julgamento, nas respectivas esferas do governo, ao Senado Federal, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais.

Por fim, na seara civil, responde o agente político perante o juiz singular pela prática de ato de improbidade administrativa, sendo processado segundo o rito especial previsto na Lei n.° 8.429/92.  Inadmissível, portanto, falar-se em conflito entre as diversas esferas de responsabilização (penal, político-administrativa e civil), já que para cada uma são diferentes os fundamentos, o processo e julgamento, o órgão processante, e as sanções, embora possa haver entre estas últimas alguma comunicabilidade.

Como leciona Emerson Garcia, no que concerne às sanções passíveis de aplicação ao ímprobo, a independência entre as instâncias se apresenta absoluta, mas é tão-somente relativa quanto à possibilidade de interpenetração dos feitos da decisão proferida em uma seara nas demais”. E exemplifica: “o ressarcimento integral do dano, elencado entre as sanções do art. 12 da Lei n.° 8.429/92, somente será passível de determinação até a recomposição do status quo. Atingido este limite em uma instância, não haverá que se falar em novo ressarcimento. No que concerne à sanção de perda da função, restando imutável a decisão que a aplicou, ela não poderá ser aplicada em outra instância, já que não se pode determinar a perda do que o ímprobo não mais possui.

Da mesma forma que o agente político está sujeito a uma esfera a mais de responsabilização em relação aos demais agentes públicos – esfera essa política, regida pela Lei nº 1.079/50 ou pelo Decreto-Lei n. 201/67 – também o simples servidor público, verbi gratia, está sujeito a uma esfera a mais do que o cidadão comum – a esfera administrativa, regulada pelo respectivo Estatuto do Servidor Público.  Não há, aqui, qualquer conflito.

Admitir que agentes políticos não podem ser julgados na esfera cível, em virtude de haver eventual correlação de objeto com a esfera política, implicaria dizer que o servidor público também não pode ser punido administrativa, civil e penalmente por um mesmo ato.  Ou, ainda, que o cidadão comum não estaria sujeito a responsabilização civil e penal por suas ações.

Por todo o exposto, sujeita-se os agentes políticos à Lei de Improbidade Administrativa, em obséquio ao princípio da presunção de constitucionalidade das leis, seja desacolhida o argumento da inaplicabilidade da Lei n. 8.429/92 a agentes políticos.

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Sobre o autor
José Clecio Santos Varjão

Profissional da Ciência Jurídica na busca pela aplicação da Justiça na sociedade

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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