Redução da maioridade penal: origens e implicações sociais

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O presente artigo procura abordar as origens históricas da maioridade penal no Brasil, analisando o tratamento diferenciado do menor à luz da Constituição Federal, bem como a reação social frente à crescente criminalidade entre crianças e adolescentes.

1 MAIORIDADE E INTERESSE SOCIAL

A menoridade, quando analisada dentro dos princípios e regras do Direito Penal, possui especial importância, tendo em vista que esta sofre uma interpretação integrativa constitucional de grande amplitude. Segundo a Constituição Federal de 1988, a criança e o adolescente gozam de direitos e privilégios diferenciados, é o que se depreende dos art. 227 e 228, os quais, de forma indireta e direta, respectivamente, asseguram sua inimputabilidade. São assim redigidos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

 Entretanto, a Constituição brasileira pode ser considerada rígida, e isso infere que a mesma não é imutável, ou seja, é possível que sofra alterações por um processo mais solene do que o existente para a edição das demais espécies normativas. Como exemplo de alteração existe a Emenda Constitucional, prevista no art. 60[1], CF.

Diante disso, nota-se que o cidadão brasileiro vive em um Estado Democrático de Direito. A Magna Carta admite que a sociedade, por meio de seus representantes legais, modifique preceitos constitucionais de acordo com sua evolução, seja ela econômica, cultural ou social. O interesse da sociedade, de acordo com o contexto em que ela se insere, tem valor relevante. Ao discutir-se a redução da maioridade penal, o que se vê é o confronto entre o interesse social e alguns princípios fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana.

Através desses fatos é plausível questionar: como se manifesta o interesse social mediante a menoridade penal? A sociedade brasileira se divide quanto a este questionamento, porém, essa divisão pode ser considerada desigual, visto que, segundo a pesquisa do Instituto Vox Populi de 2013, 89% da população brasileira aprova a redução da maioridade penal.

Outra questão surge: por que o menor é considerado inimputável no Brasil? Quais são os argumentos para manter a inimputabilidade? Para responder a essas perguntas, deve-se remeter à análise da culpabilidade, um dos elementos do tipo penal, pois é nela que reside a dificuldade de responsabilizar crianças e adolescentes. Ademais, a análise da importância do art. 228 da CF dentro desse panorama é essencial, pois este se relaciona diretamente com a referida elementar.

 A culpabilidade possui três alicerces, a potencial consciência da ilicitude do fato, a exigibilidade de conduta diversa e a imputabilidade. Segundo o Código Penal, em seu art.27, é reconhecido que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial, que no caso é o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90). A imputabilidade é a regra, a inimputabilidade, a exceção. Sanzo Brodt ensina os componentes da imputabilidade:

A imputabilidade é constituída por dois elementos: um intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato), outro volitivo (capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento). O primeiro é a capacidade (genérica) de compreender as proibições ou determinações jurídicas. Bettiol diz que o agente deve ‘prever as repercussões que a própria ação poderá acarretar no mundo social’, deve ter, pois, a percepção do significado ético-social do próprio agir. O segundo, a ‘capacidade de dirigir a conduta de acordo com o entendimento ético-jurídico. Conforme Bettiol, é preciso que o agente tenha condições de avaliar o valor do motivo que o impele à ação e, do outro lado, o valor inibitório da ameaça penal[2]

 Segundo Flávio Monteiro de Barros{C}[3] o imputável “é o homem que, ao tempo da conduta, apresenta maturidade mental para entender o caráter criminoso do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento”. Analisados esses conceitos, é de suma relevância apontar os elevados índices de criminalidade que envolvem crianças e adolescentes no Brasil, segundo pesquisa do jornal O Globo feita em sete dos dez estados mais populosos do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará, Paraná e Santa Catarina, a autoria de crimes perpetrada por menores aumentou em 18% no ano de 2012[4]. Diante desses fatos, é interessante destacar que a figura da criança, que é considerada aquela menor de 14 anos, não sofre de tanta repercussão quando analisada a sua consciência sobre o fato criminoso e sobre suas consequências, tendo em vista que, perante a sociedade esta realmente não goza de desenvolvimento mental capaz de reconhecer a ilicitude e as consequências do delito. Já o adolescente não usufrui dessa acepção social.

O tratamento diferenciado da imputabilidade penal para crianças e adolescentes no país se deve ao fato de que o Brasil é signatário da Convenção dos Direitos da Criança, que ocorreu em 20 de novembro de 1989, esta convenção sedimentou o princípio do superior interesse da criança, servindo de base legal para a elaboração do ECA, bem como dos artigos 227 e 228 da Constituição de 1988.

 O art. 228, CF, possui caráter ímpar, visto que muitos doutrinadores o consideram cláusula pétrea, enquanto outros não o revestem de tal imutabilidade, posto que não faz parte das cláusulas pétreas elencadas nos incisos I a IV, do §4º, do art. 60 da Magna Carta{C}[5]{C}. René Ariel Dotti entende diferente, de acordo com ele a inimputabilidade “constitui uma das garantias fundamentais da pessoa humana, embora topograficamente não esteja incluída no respectivo título da Constituição que regula a matéria. Trata-se de um dos direitos individuais inerentes à relação do art. 5º, caracterizando, assim, uma cláusula pétrea”{C}[6]{C}. De todo modo, esse é um dos argumentos mais utilizados para a rejeição de emendas constitucionais que preveem a redução da maioridade penal, porém, esse argumento possui grande divergência doutrinária, não sendo suficiente para respaldar a rejeição dessas emendas à Constituição.

 Para ratificar a inimputabilidade, o critério utilizado pelo Código Penal (influenciado pelo art. 228, CF) é puramente biológico, resultando em um tipo de presunção legal. E esta presunção não é suficiente, tendo de ser respaldada por estudos psicológicos do adolescente e da criança. Como já foi exposto, o conflito da redução da maioridade penal com preceitos constitucionais se refere, principalmente, à figura do adolescente, que é aquele considerado entre 12 e 18 anos.

1.1 Adolescência e influência social 

A adolescência, segundo estudos psicológicos, é uma fase comumente conhecida como transitória entre a infância e a fase adulta. Essa distinção de fases se deu durante a Revolução Industrial, com a crescente procura por mão de obra, a adolescência começou a ser tratada como uma fase de iniciação no trabalho, tornando o adolescente alvo de investimentos, pois este tinha potencialidade de se tornar capaz para atividades laborais. Portanto, o adolescente passa a ser direcionado, passando por intenso processo de disciplinarização, com a finalidade de impedir que algo fuja daquilo que a sociedade deseja. Assim, entende Regina Pedroza, professora de Psicologia da UNB:

É sob esse prisma que podemos compreender a institucionalização e obrigatoriedade do sistema de ensino, que surge como principal instrumento de controle social, entendido como uma forma de domínio sobre o adolescente. É interessante notar aqui a visão de que o adolescente é, sobretudo, um potencial a ser desenvolvido, a ser moldado. Seja para o bem – produtividade econômica – ou para o mal – delinqüência –, a adolescência passa a ser vista como um período de preparação, de transição, em que estarão sendo criadas as bases para o futuro adulto. Dentro dessa perspectiva, a comunidade adulta responsabiliza-se, portanto, por esse indivíduo, impedindo que interesses escusos atuem sobre ele, e assegurando que sejam cumpridos os objetivos supostamente legítimos da sociedade adulta, religiosa e trabalhadora.[7]

Diante dessa evolução, o adolescente passa a ser considerado um sujeito de direitos e obrigações dentro da sociedade, que passa a cobrar um tipo de idoneidade e disciplina do mesmo. O meio em que o adolescente está inserido é responsável por sua preparação para a fase adulta, ou seja, a sociedade, o poder público e a família tem esse poder, de moldar o adolescente, justamente por ele se encontrar em uma fase de transição.

A redução da maioridade penal é vista pela sociedade, bem como por cientistas políticos, como uma forma de disciplinar, de maneira eficiente, o adolescente que pratica crimes. Guilherme de Souza Nucci também compartilha desse entendimento: “Não é admissível acreditar que menores entre 16 anos ou 17 anos, não tenham condições de compreender o caráter ilícito do que praticam, tendo em vista que o desenvolvimento mental acompanha, como é natural, a evolução dos tempos.[8]{C}”.

Tendo em vista que o adolescente infrator pode ter, sim, a consciência plena dos atos que pratica, e levando-se em conta que a reincidência de adolescentes, que são submetidos a medidas socioeducativas, é grande, o procedimento a ser adotado deve ser o que está previsto para aqueles maiores de 18 anos. A redução da maioridade penal seria uma forma de defesa social, posto que a sociedade tem o poder de deliberar aquilo que traz bem-estar social, por meio da implantação de leis e políticas sociais inseridas através de seus representantes políticos.

O sistema carcerário brasileiro visa a ressocialização do preso, a pena é uma espécie de punição do Estado, que tem caráter preventivo e de reprovação do crime. Além disso, os regimes prisionais são divididos de forma que atendam à proporcionalidade do crime. O agente criminoso também é sujeito de benefícios como a progressão de regimes, o sursis processual e o livramento condicional da pena. Sustentar que o sistema prisional brasileiro é uma catástrofe, impossibilitando o acolhimento de menores infratores, não é satisfatório. As medidas protetivas e educativas tomadas pelo ECA, que não possuem duração superior a 3 anos, mostram-se ineficazes diante do problema que assola o cidadão brasileiro, o sistema prisional foi elaborado para reprovar e prevenir a prática de delitos, buscando sempre pela ressocialização. Se há catástrofe ela deve ser enfrentada e solucionada pelo poder público para que este atinja sua função social.

1.2 Redução da maioridade penal e solução legislativa

Posto isso, na Câmara dos Deputados há uma clara reflexão do tema, no ano de 2011 foi criada a Frente Parlamentar da Redução da Maioridade Penal, que atualmente conta com 213 deputados. Os membros dessa bancada agem em função da efetivação desse interesse comum, que tem por fruto várias propostas de Emendas à Constituição que estabelecem um novo limite para a redução da maioridade penal, qual seja o de 16 anos.

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Como um exemplo e marco desse ideário tem-se a PEC 33/2012, tendo por autor o Deputado Aloysio Nunes. Este Projeto, conforme já exposto neste trabalho, tem por ementa a alteração do art. 129 da Constituição Federal para dispor que são funções institucionais do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública e o incidente de desconsideração de inimputabilidade penal de menores de dezoito e maiores de dezesseis anos. Altera o art. 228 da Constituição Federal para dispor que Lei Complementar estabelecerá os casos em que o Ministério Público poderá propor, nos procedimentos para a apuração de ato infracional praticado por menor de dezoito e maior de dezesseis anos, incidente de desconsideração da sua inimputabilidade. Além disso, o adolescente deverá passar por uma espécie de teste de compreensão, promovido pelas promotorias especializadas da infância e da juventude, sobre os atos praticados, se este for positivo, o menor será processado como adulto.

O supracitado Projeto tem caráter peculiar e importante, pois assegura um tipo de exceção que se consubstancia no incidente de desconsideração da inimputabilidade penal, isto é, o adolescente só será processado pela Justiça comum se for comprovada a sua capacidade de entender o fato delituoso. Percebe-se que não se trata de uma emenda que desconsidera fatores objetivos e subjetivos do agente, o que é interessante, pois a afirmação por um especialista de que o menor tem plenitude de conhecimento sobre seus atos afastaria a posição de que essa é uma presunção natural.

Outro ponto interessante do Projeto é a preponderância do critério psicológico sobre o biológico, que é atualmente adotado pelo Código Penal Brasileiro quando referente a menores de 18 anos, todavia, o legislador decidiu optar pelo critério biopsicológico para aferir a culpabilidade de doentes mentais à época do crime. Assim, vê-se que o critério biopsicológico, que hoje é utilizado no trato de doentes mentais, com a aprovação do projeto de emenda, poderia ser aplicado ao menor infrator. Rogério Greco assinala o surgimento do critério biopsicológico no ordenamento brasileiro:

O critério biológico, portanto, reside na aferição da doença mental ou no desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Contudo, mesmo que comprovado, ainda não será suficiente a fim de conduzir à situação de inimputabilidade. Será preciso verificar se o agente era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério psicológico).[9]

Diante dos recursos que dispõe a sociedade brasileira para assegurar seus interesses, visto que está inserida em um Estado Democrático de Direito, é possível a discussão e aplicação de medidas que implantem a redução da maioridade penal. Os altos índices de criminalidade entre crianças e adolescentes, bem como a ineficácia de medidas protetivas estabelecidas pelo ECA são problemas sociais de grande valor, dessa forma, o cidadão tem o direito de promover e assegurar sua defesa mediante as mutações do meio em que vive, desse modo, os projetos de emenda à Constituição são instrumentos que podem ser usados para proteger esses interesses.


Notas

[1] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante a proposta: I- de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II- do Presidente da República; III- de mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

[2] SANZO BRODT, Luís Augusto. Da consciência da ilicitude no direito penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 46.

[3]          BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito penal: parte geral.3ª.ed.São Paulo:Saraiva, 2003. 1v. p. 359.

[4]   URIBE, Gustavo. Cresce participação de crianças e adolescentes em crimes. O Globo, Rio de Janeiro, 28 abr. 2013. Disponível em: <http://www.oglobo.com.br>. Acesso em: 14 dez. 2014.

[5]{C}   Art. 60 § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

[6]   DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal-Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pag. 412-413.

[7]PEDROSA, Regina,et al. Adolescência e maioridade penal: Reflexões a partir da Psicologia e do Direito. Psicologia Política, v. 9, nº 17, pg. 67-83. Jan-Jun. 2009.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 3 ed.. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2007, pag. 294.

[9] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal-Parte Geral. Niterói: Impetus, 2013, pag. 389.

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Sobre a autora
Ana Dulce Fonseca Oliveira Araújo

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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