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Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária

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13/09/2016 às 14:02
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O direito das comunidades quilombolas às terras que ocupam não se resume meramente a um direito patrimonial, pois representa um dos expoentes da manifestação da identidade étnica daquele povo, de modo que a sua garantia é requisito para a manutenção daquela comunidade.

"Houve um tempo em que a terra gemia

E um povo tremia de tanto apanhar

Tanta chibata no lombo que muitos morriam o mesmo lugar

Deu bandeira, dançou na primeira, dançou

Capoeira, dançou de bobeira, dançou na maior

Deu canseira, sambou na poeira, tossiu na fileira, dançou pra danar

O meu pai, minha mãe, minha avó tanta gente tristonha que veio de lá Minha avó já morreu, o meu pai lá se foi, só ficou minha mãe pra rezar

Deu bandeira...

Vez em quando me lembro dos fatos que meu avô cantava nas noites de frio

Não chorava, porém não sorria

Mentir não mentia, fingir não fingiu

Deu bandeira...

Liberdade além do horizonte, morreu tanta gente de tanto sonhar.

Foi Zumbi!

A Princesa Isabel assinou um papel

Dia 13!”

Itamar Assumpção

RESUMO:O presente trabalho teve como escopo a análise dos direitos territoriais das comunidades quilombolas como essenciais para a manutenção da identidade étnica desse povo, bem como dos impasses para a efetivação desses direitos. Inicialmente, realizou-se um estudo da identidade étnica, ressaltando a sua importância para a construção do conceito de comunidade quilombola. Em seguida, explicou-se o motivo para a territorialidade representar um dos fatores de grande relevância para a formação identitária desse povo. Foi abordado, ainda, o histórico da resistência do povo quilombola, examinando, também, as razões que levaram à escravidão do povo negro por parte dos colonizadores. A partir da análise da legislação vigente que tutela os direitos territoriais das comunidades quilombolas, bem como da ADI 3239 que requer a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003, foi abordada a problemática na efetividade dos direitos dos remanescentes de quilombo, mesmo diante de um aparato legislativo com respaldo constitucional, qual seja, o art. 68 da ADCT, buscando como possível solução a inversão no procedimento de titulação para dar maior celeridade ao processo de titulação das terras quilombolas.

Palavras-chave:Comunidades Quilombolas; Identidade Étnica; Direitos Territoriais; Impasses.

SUMÁRIO:​ 1..INTRODUÇÃO.2.IDENTIDADE ÉTNICA, COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TERRITORIALIDADE   2.1... CAMINHOS DA IDENTIDADE E A ETNICIDADE..2.2... CONCEITO DE COMUNIDADE QUILOMBOLA.. 2.3... TERRITORIALIDADE E RESISTÊNCIA QUILOMBOLA..3....... ORIGENS DA RESISTÊNCIA QUILOMBOLA NO BRASIL E MARCO LEGAL..3.1... HISTÓRICO DA RESISTÊNCIA: DE PALMARES AOS DIAS ATUAIS.3.2... MARCO LEGAL E INSTITUCIONAL. 4....... O DIREITO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS E O DIREITO VIGENTE..4.1... A PREVISÃO CONSTITUCIONAL: ART. 68, ADCT E A PREVISÃO NAS CONSTITUIÇÕES ESTADUAIS..4.2... A IMPORTÂNCIA DOS PACTOS INTERNACIONAIS NA TUTELA DOS DIREITOS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS..4.3... ESTATUTO RACIAL E A PREVISÃO DE TUTELA ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS 4.4.  A PROBLEMATICA NA DEFINIÇÃO DO ORGAO COMPETENTE PARA A TITULAÇÃO ..4.5... O DECRETO 4.887 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003: UM PASSO IMPORTANTE NA CONCESSÃO DO TÍTULO DE PROPRIEDADE ÀS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO.4.6... ANÁLISE DA ADI N 3239 EM DISCUSSÃO NO STF QUE PROPÕE A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.887/2003. 4.7   A BUSCA POR SOLUÇÕES EFETIVAS.5....... CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS.


1    INTRODUÇÃO

A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, mesmo representando uma vitória do povo negro, ainda deixou marcas de desigualdade social e descriminação na sociedade atual.

O direito à cultura, à moradia, ao reconhecimento da identidade étnica da população negra, em especial do povo quilombola, tem estreita relação com a garantia dos seus direitos territoriais. Em outras palavras, garantir o direito a terra às comunidades quilombolas significa conceder-lhes o direito ao reconhecimento da sua identidade e a manutenção da sua existência.

O art. 68 da ADCT, prevendo o direito à propriedade definitiva das terras ao povo quilombola e, posteriormente, a edição do Decreto 4.887/2003, do Estatuto da Igualdade Racial, bem como a ratificação da Convenção 169 da OIT em território brasileiro, representaram um enorme avanço para a tutela dos seus direitos. Todavia, a efetividade de tais normas ainda encontra muitos empecilhos, tanto burocráticos, quanto políticos.

No presente trabalho, pretende-se analisar a situação jurídica das comunidades “remanescentes” de quilombo no Brasil, com enfoque na questão identitária e territorial. Em outras palavras, será feita uma análise da legislação vigente que tutela os direitos territoriais das comunidades quilombolas, com enfoque na previsão do art. 68 da ADCT,analisando, também, a ADI 3239 proposta pelo PFL (atualmente DEM) que requer a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003. Deste modo, buscaremos investigar a problemática na efetividade dos direitos territoriais dos remanescentes de quilombo.

Destarte, o trabalho situar-se-á no campo da sociologia jurídica, da análise jurisprudencial e doutrinária, empregando métodos das ciências sociais, hermenêutica e interpretação da ciência jurídica, utilizando como referência bibliográfica básica as obras dos autores Alfredo Wagner, Thaís Colaço, Daniel Sarmento, Gilmar Bittencourt, Roberto Cardoso de Oliveira, entre outros.


2    IDENTIDADE ÉTNICA, COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TERRITORIALIDADE

2.1      CAMINHOS DA IDENTIDADE E A ETNICIDADE

A luta pelo direito à terra das Comunidades Quilombolas está intimamente ligada à manutenção da sua identidade étnica. Na formação do Estado Moderno tentou-se implantar a ideia da existência de apenas um povo, pregando-se a ideia de uma sociedade monista, embora na realidade ela fosse plural.

O que significa reconhecer a identidade de um povo, de uma etnia? Qual caminho deve ser trilhado para o reconhecimento dessa identidade? Esses são questionamentos que permeiam as pesquisas de muitos pensadores sobre o tema. Há, todavia, um certo consenso entre eles no que diz respeito ao aspecto relacional da etnicidade, devendo existir uma dualidade entre Nós/Eles,  pois a “etnicidade não se manifesta nas condições de isolamento, é, ao contrário, a intensificação das interações características do mundo moderno e do universo urbano que torna salientes as identidade étnicas” (POUTGNAT e STREIFF-FENART, 2011, p. 124).

Nesse sentido, Barth (apud POUTGNAT e STREIFF-FENART) explica que o conflito e a interação social são de extrema importância na formação identitária de cada grupo étnico. Para ele, não há uma fórmula pronta e pré-definida para a formação da identidade de um povo, não bastando identificar os seus traços culturais, a sua língua, o seu território e os seus costumes para que essa identidade seja formada. Em verdade, os grupos são “categorias de contraste” (BARTH apud POUTGNAT e STREIFF-FENART), ou seja, a sua identidade será formada a cada nova situação, a depender da interação daquele grupo com o outro e ou com o ambiente que ocupam.

Desta forma, quanto maior a inter-relação de um grupo com os demais, mais marcada será a sua fronteira étnica, na medida em que a cada situação vivenciada por aquele grupo, uma nova categoria étnica seria ativada, obrigando-o a adotar determinados padrões de existência, mas sempre reforçando a distinção e o dualismo entre Nós/Eles, ou seja, entre membros e não-membros.

Ora, desde então Barth verificou a importância da auto-definição para a formação identitária de um grupo étnico, pois não há como pré-definir diferenças que formarão a sua identidade, de modo que cada grupo irá definir aquelas que forem significativas para tanto em cada situação concreta (BARTH apud POUTGNAT e STREIFF-FENART).

Do mesmo modo, a cultura e as tradições daquele povo tem grande relevância para a formação da fronteira étnica entre os grupos, mas o que interessa não é o conteúdo daquela cultura, as vestimentas, os santos que cultuam, ou o modo como lidam com a terra, mas sim o “limite” (BARTH apud POUTGNAT e STREIFF-FENART) que será negociado pelo grupo a cada situação específica, a cada interação com o outro. Deste modo, importa dizer que a fronteira étnica de cada grupo pode variar, a depender da situação que será vivenciada por ele.

Essa relação de dualismo e interação é essencial para o reconhecimento do outro, mais especificamente da sua identidade étnica, de forma que é preciso considerar “os outros como doadores de sentido” como bem afirmou George Herbert Mead (apud OLIVEIRA, 2006, p. 26).

No mesmo sentido, é preciso esclarecer a diferença semântica entre “conhecer” e “reconhecer” apresentada por Alex Honneth (apud OLIVEIRA, 2006, p. 31-2). Honneth afirma que o conceito de conhecimento está ligado a uma atribuição individual, um “ato não público”, relaciona-se ao “valor social” que aquele indivíduo representa, evidenciado o caráter relacional do reconhecimento da identidade de um grupo ou indivíduo (apud OLIVEIRA, 2006, p. 31).

Todavia, é importante ressaltar que esse reconhecimento não está ligado unicamente ao campo jurídico, mas também ao campo moral. Negar o seu direito ao reconhecimento configura uma ofensa à moral daquele indivíduo ou grupo (HONNETH apud OLIVEIRA, 2006, p. 34).

Para que haja o reconhecimento de um povo, o seu auto-reconhecimento representa uma peça-chave, principalmente quando falamos nos direitos das minorias, mais especificamente dos negros e índios brasileiros. A partir do momento em que essa minorias passam a exigir respeito ao seu modo de vida, à suas tradições e cultura, recuperando a sua auto-confiança e auto-estima, o reconhecimento desse povo vem em seguida, quando o Estado passa a tutelar esses direitos, respeitando o direito à diferença, e reconhecendo o seu modo de vida como legítimo .

Mas como bem demonstrou Roberto Cardoso de Oliveira (2006, p. 46), a maior barreira que esses povos encontram para o seu auto-reconhecimento e, consequentemente, o reconhecimento pelo outro, é o preconceito, e não reconhecer o direito desses povos implica em negar-lhes a cidadania.

Para apresentar a relação entre o reconhecimento desses povos com o território que ocupam é necessário, de antemão, apresentar o conceito de etnia e, em seguida, de identidade étnica, como bem explicam as autoras Raquel Sparemberger e Carolina Kretzmann:

Expulsar as populações de seus locais de origem (como ocorre nos modelos de unidades de conservação integral, por exemplo), onde vêm desenvolvendo sua cultura e lutando pela sua sobrevivência há gerações, recolocando-os em áreas que não oferecem condições de manutenção e que não permitem a continuidade de seu modo de vida tradicional, apenas colabora para a sua marginalização e empobrecimento. (SPAREMBERGER e KRETZMANN, 2011, p.113).

O conceito de etnia, no senso comum, está relacionado unicamente ao conceito de raça, mas esse pensamento não condiz com o conceito mais apropriado, sendo o primeiro muito mais amplo que o segundo. “Etnia é a definição de um povo, marcado por traços culturais que lhe dão uma identidade própria” (BRITO, 2011, p. 46).

Antônio Brito entende que o conceito de raça é uma ideia ultrapassada, estando o conceito de etnia muito além dos “critérios físicos e reducionistas”. A cultura, sim, pode ser relacionada ao conceito de etnia, pois nós “conhecemos um povo pela forma como se veste, pela maneira que chora seus mortos, por suas preferências alimentares, por suas festas e suas crenças espirituais” (BRITO, 2011, p. 47). A partir da cultura de um povo, se constrói a sua identidade, sendo ela – a identidade – o que caracteriza a etnia.

Desta forma, verifica-se que a identidade de um povo é construída com base na diferença, no contraste derivado da inter-relação, como foi demonstrado acima com base nos ensinamentos de Barth (apud POUTGNAT e STREIFF-FENART). Em outras palavras, a identidade de um grupo étnico é formada com base no que aquele povo tem de particular, de diferente de outro povo, como disse Silva (apud BRITO, 2011, p. 48): “assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade”. Nesse sentido, as comunidades quilombolas buscam o respeito ou, a tolerância às diferenças[1].

É importante, também, apresentar o conceito de comunidades tradicionais na medida em que comunidades quilombolas são apenas uma de suas vertentes. Vejamos:

As comunidades tradicionais caracterizam-se pela dependência em relação aos recursos naturais com os quais constroem seu modo de vida; pelo conhecimento aprofundado que possuem da natureza, que é transmitido de geração a geração oralmente; pela noção de território e espaço onde o grupo se reproduz social e economicamente; pela ocupação do mesmo território por várias gerações; pela importância das atividades de subsistência, mesmo que em algumas comunidades a produção de mercadorias esteja mais ou menos desenvolvida; pela importância dos símbolos, mitos e rituais associados as suas atividades; pela utilização de tecnologias simples, com impacto limitado sobre o meio; pela auto-identificação ou pela identificação por outros de pertencer a uma cultura diferenciada, entre outras. (DIEGUES e ARRUDA apud SPARMBERGER e KRETZMANN, 2011, p. 109).

Para as comunidades tradicionais, a noção de território vai muito além do ponto de vista econômico, por ser a sua fonte de renda e subsistência, representando um dos aspectos essenciais para a formação da sua identidade. “Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é também o locus das representações e do imaginário mitológico dessas sociedades tradicionais” (DIEGUES e ARRUDA, apud SPARMBERGER e KRETZMANN, 2011, p. 110).

2.2      CONCEITO DE COMUNIDADE QUILOMBOLA

A palavra “Quilombo”, na linguagem iorubá, significa “habitação”, e em banto, “reunião de acampamentos”, “união” (LOPES, 1988, p. 140). Além da conceituação morfológica, é de tamanha importância apresentar os conceitos de quilombo construídos socialmente, desde período escravagista, até os dias atuais.

O quilombo foi a unidade básica de resistência do escravo perante a sociedade em que vivia (MOURA, 1992, p. 14). O cerne do problema para a conceituação de Quilombo é a tendência em torná-la estática, vinculada à ideia de comunidades primitivas, associadas ao passado e ainda hoje, esse conceito está rodeado de muitas dúvidas e incertezas, o que acaba por dificultar a luta dessas comunidades pelo seu reconhecimento.

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Moura (apud LEITE, 2000) ressalta o conceito de Quilombo como forma de organização e resistência, na medida em que se formaram em todos os lugares onde houve a escravidão. Somado a isso, a capacidade organizativa dos Quilombos também representa um traço característico de extrema relevância, pois mesmo tendo sido destruídos várias vezes, ressurgiam em novos lugares. Deste modo, a autosubisistência econômica desses grupos fortaleceu o seu poder de resistência (MOURA apud LEITE, 2000), pois eles conseguiam se reorganizar em novos lugares a cada novo ataque do “inimigo”.

É preciso, também, conceituar a forma de uso da terra por essas comunidades para contextualizar a problemática na conceituação de Quilombo.

Diante da ausência de denominação daquelas terras ocupadas por essas populações, surgiu a necessidade de uma nova categorização, qual seja, “ocupações especiais”. Ao se verificar que haviam situações onde a utilização de recursos naturais não se dava de forma individualizada, foi necessário criar uma nova categoria para abarcá-las pois, embora legítimas, ainda não haviam sido reconhecidas. Elas equivalem às “terras de uso comum”, que se caracterizam por utilizar diferentes formas de uso e apropriação da terra, relacionadas com “fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-organizativos e econômicos, consoante práticas e representações próprias” (ALMEIDA, 2002, p. 45). Em outras palavras, a designação oficial das “ocupações especiais” abarcava as chamadas “terra de preto, terra de santo e terra de índio”.

A Constituição Federal de 1988, que trouxe no art. 68 da ADCT a expressão “remanescente das comunidades dos quilombos”, embora tenha representado um avanço na luta das comunidades quilombolas pelo seu reconhecimento, causou muita discussão e discordâncias do conceito de quilombo que estava sendo construído. Vejamos: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

Todavia, a denominação “remanescente de comunidades de quilombos”, presente no citado artigo, pareceu estar mais voltada para o passado do que para o presente. Os movimentos sociais tiveram grande importância nesse momento, ao questionar o conceito restritivo de quilombo que estava posto na ordem constitucional, na medida em que o art. 68 da ADCT só estaria contemplando o direito sobre a terra por parte de ex-escravos e seus descendentes. Passou a se questionar qual seria o verdadeiro conceito de “quilombo” abarcado pela ordem jurídica brasileira.

Ficou comprovado que esse conceito ainda estava associado ao conceito do período escravagista, estando engessado até os dias atuais, tendo sido elaborado como uma resposta do rei de Portugal, em 1740. Nesse sentido, o conceito de quilombo era, segundo o Conselho Ultramarino de 1740,“toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranhos levantados e nem se achem pilões nele” (ALMEIDA, 2002, p. 47). Como se verifica, essa definição possui cinco elementos-chave.

Primeiramente, a fuga, ou seja, para a configuração de um quilombo era necessário que lá estivessem abrigados escravos fugidos. O segundo requisito é a quantidade mínima de cinco escravos em cada quilombo. Em terceiro lugar, o isolamento geográfico, ou seja, os quilombos deviam estar situados longe da “civilização”, da Casa Grande. Em quarto lugar, era o “rancho”, que configurava a necessidade de uma moradia habitual. Por fim, ressaltava-se a necessidade da existência do “pilão”, instrumento utilizado para transformar arroz cozido em alimento, ou seja, era necessário que aqueles escravos fugidos que ali se alojassem tivessem uma forma de autosubsistência e de reprodução.

Ressalte-se, ainda, que embora a ideia de quilombo estivesse associada à de “agrupamento de vadios que negavam o trabalho” (ALMEIDA, 2002, p. 49), ficou comprovada a produtividade desses quilombos, ainda no séc. XIX, durante algumas campanhas bélicas, onde eles – os quilombos – foram abrigos para famílias de imigrantes cearenses fugidos da seca. Os quilombos não eram destruídos, mas apenas os quilombolas eram expulsos das suas terras para dar lugar aos imigrantes, que passavam a utilizar as mesmas ferramentas, e forma de cultivo dos quilombolas.

Durante vários anos esses cinco elementos apresentados que compõem o conceito de quilombo não sofreram mudanças reais, até o momento em que ocorreu a abolição da escravatura e se imaginou que não mais seria necessário um conceito de quilombo, pois eles iriam desaparecer, juntamente com o regime escravocrata, o que não ocorreu. Somente 100 anos após a abolição da escravatura, na Constituição de 1988, foi elaborado o art. 68 da ADCT, fazendo surgir o quilombo como “remanescente”. Passou-se a reconhecer o que restou do passado, não o que existe no presente.

Embora existam autores que não enxerguem um conflito semântico com o uso da palavra “remanescente” para se referir às comunidades quilombolas atuais – como é o caso de Alcides Moreira Gama[2] (2007) –, Alfredo Wagner Almeida entende, sim, que há uma problemática em tal designação, pois não se deve “discutir o que foi, e sim o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente” (ALMEIDA, 2002, p. 53). Não se pode mais trabalhar com aquela conceituação de 1740. Para que haja esse rompimento é necessário, também, o abandono da ideia de “dualismo geográfico” que é atribuído ao quilombo, pregando que essas comunidades são situadas fora dos limites físicos da “casa grande”.

A situação de acamponesamento que se originou a partir da falência dos grandes proprietários não foi reconhecida pela lei de terras de 1850. Baseando-se no conceito dualista de quilombo (“trabalho”versus“vadiagem”), os quilombolas sofreram fortes repressões, sendo obrigados a retornarem à Casa Grande para ter a força de trabalho explorada e, por isso, muitos quilombos foram destruídos. O objetivo era transferir a força de trabalho que estava dentro dos quilombos para as grandes plantações sob a alegação de fazê-los retornarem ao trabalho e voltarem a ter “disciplina”, como se a disciplina e o trabalho não fossem as palavras-chave dos quilombos. (ALMEIDA, 2002).

Todavia, com a queda dos preços dos produtos, e com a perda do poder econômico dos grandes proprietários, a coerção não mais poderia ser exercida em face dos quilombolas. O quilombo mudou-se de lugar, agora ele estava dentro das grandes propriedades. Iniciou-se um processo de formação de uma camada de pequenos produtores familiares nessas áreas. A luta dos grandes proprietários havia invertido: antes, quilombo era aquilo que estava fora das grandes propriedades, e devia vir para dentro.

No entanto, o quilombo havia de ser posto para fora das grandes propriedades. Essa inversão acabou quebrando aquela dualidade outrora existente, pois restou claro que o quilombo tinha a sua autonomia, dentro, ou fora da grande propriedade. De acordo com os ensinamentos de Alfredo Wagner Almeida, “Isto muda um pouco aquele parâmetro histórico, arqueológico, de ficar imaginando que o quilombo consiste naquela escavação arqueológica onde há indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação” (ALMEIDA, 2002, p. 60).

Quilombo é sinônimo de autonomia. Até mesmo durante o período colonial, restou comprovada a sua capacidade de autosubsistência, mas é preciso entender que os tempos são outros, que o seu conceito não deve mais ser associado àquele que fora construído no período escravagista, de modo que algumas provas documentais e arquivísticas podem e devem ser relativizadas.

A tradição popular brasileira concedeu ao Quilombo uma diversidade de significados (LOPES, SIQUEIRA e NASCIMENTO apud LEITE, 2000), “ora associado a um lugar, ora a um povo que vive neste lugar, ou a manifestações populares, ou ao local de uma prática condenada pela sociedade, ou a um conflito, ou a uma relação social, ou ainda a um sistema econômico”. Desta forma, o Quilombo tem o poder de representar diversas experiências e situações que dizem respeito à história das Américas pois, como bem assinalou Guilhermo Giucci (apud LEITE, 2000), a história das Américas produziu uma diversidade de histórias, estando o Quilombo presente na formação de várias delas, pois o povo negro estava inserido no movimento colonial “descobrindo, resgatando, povoando e governando – só que como povos dominados” (GIUCCI apud LEITE, p. 337).

A restrição imposta pelo art. 68 da ADCT, ao atribuir o direito à terra ao “remanescente” de quilombo é inapropriada, pois o conceito de “remanescente” está ligado à ideia de “fugido”, mas nem todos os escravos fugiram. Tiveram alguns que permaneceram, que ajudaram outros a fugir, mas isso não tira o seu direito de ter a posse da terra, pois embora não tenha chegado, de fato, à um quilombo, não tenha sido um escravo fugido, ter permanecido na casa grande, ou ajudado outros à saírem foi um papel importante para a resistência ao sistema então vigente (ALMEIDA, 2002).

Sendo ultrapassado esse conceito restrito de quilombo, inúmeras situações irão ser abarcadas pela nova definição: casos de terras compradas pelos próprios escravos alforriados, áreas adquiridas por herança e até mesmo recebidas por doação dos grandes proprietários falidos em razão da baixa dos preços dos produtos, ou até mesmo na questão das hipotecas, onde os escravos ajudavam a pagar a hipoteca, com a promessa de que a terra seria sua, o que jamais acontecia. Muitos conflitos ainda existem nos casos de terras herdadas, pois a documentação é precária. Por esse motivo, muitas vezes os documentos são relativizados e é dada uma maior importância a fontes secundárias, que são as narrativas dos agentes entrevistados.

Retomando as várias posições aventadas, pode-se asseverar que "quilombo" abrangeria hoje todas elas. Os fatores objetivos e a representação do real constituem, portanto, a realidade de referência. É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica "stricto sensu" e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo. (ALMEIDA, 2002, p. 62).

Embora os legisladores coloniais tenham considerado o conceito de quilombo juridicamente diferente de “banditismo”, muitas vezes essa aproximação foi acentuada, como aconteceu no final do século XIX, quando houve a abolição da escravatura e, em tese, deixaria de existir a figura do quilombo, e os quilombolas passaram à categoria de “bandidos rurais” em razão de estudos de craniometria realizados por Nina Rodrigues e da marginalização que foram vítimas com a abolição da escravatura e a ausência de meios para se manter na sociedade. Apesar de ter discordado da teoria lombrosiana mais tarde, Nina Rodrigues continuou pregando a questão de “bando” e de seus “indícios étnicos”, o que ratificou a divisão de raças que já existia, reforçando a ideia de raça inferior e raça superior, pregando a ideia de “sobrevivência” dos quilombos, como se fossem uma forma bárbara, em contraposição à raça superior (ALMEIDA, 2002).

Para que haja uma ruptura com essa antiga definição de quilombo é necessário que os próprios grupos sociais, os “remanescentes” se autodefinam, como explicou Wagner Almeida (2002), ou seja, o que importa aqui não é como eles são definidos pelos outros, mas sim, quais são os critérios que formam a sua identidade, pois só eles conhecem os seus próprios conflitos, anseios e necessidades, e veremos que esse é um dos critérios de reconhecimento de uma comunidade quilombola previsto no Decreto 4.887/2003, que será abordado mais adiante. Eles têm a sua forma de utilizar a terra, de caçar, pescar e extrair recursos naturais, por exemplo. Algumas atividades são exercidas de forma coletiva, outras de forma individual, o que forma a identidade de cada grupo social. É preciso que cada grupo seja analisado da sua maneira, com os seus próprios olhos, ou a formação da sua identidade estará comprometida. Vejamos a explicação de Alfredo Wagner Almeida: “A incorporação da identidade coletiva para mobilizações e lutas, por uma diversidade de agentes sociais, pode ser mais ampla do que a abrangência de um critério morfológico ou racial” (ALMEIDA, 2002, p. 69).

A ideia da miscigenação seria o reflexo de uma sociedade não plural, onde cada um seria “posto em seu lugar devido”. A teoria democracia racial, apresentada por Gilberto Freyre (apud CARVALHO, 2005) demonstra o massacre da raça negra que ocorre com a aceitação da miscigenação.

Freyre insistia que nenhuma raça era inferior a outra por isso a nossa mestiçagem não era um problema e sim uma vantagem. Com esse argumento, ele conseguiu desviar inteiramente o debate da denúncia contra racismo social imperante, que incidia concretamente sobre a dificuldade de ascensão dos negros, feita, entre outros, pela Frente Negra Brasileira. Ao invés disso, enfatizou uma discussão de tipo humanista que colocava, de um lado, os vilões do século 19 que sustentava, a superioridade da raça ariana (Gobineau, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha); e de outro, os iluminados pela Antropolodia de Franz Boas, como o próprio Freyre, que enfatizavam a inexistência da desigualdade entre as raças. (CARVALHO, 2005, p. 19-20).

O quilombo dos Palmares, por exemplo, era formado por um conjunto de agentes sociais diversos: índios, “escravos fugidos”, “desertores”, “facinorosos do sertão”, que viviam juntos e havia, deste modo, uma sobreposição de formas no uso dos recursos naturais (ALMEIDA, 2002, p. 70). Neste sentido, as “terras de preto” não surgiram sozinhas, mas foram resultado de uma forte interação entre etnias. Deste modo, restringir a conceituação de um território quilombola a critérios arqueológicos seria contraditório, de modo que cada território quilombola tem a sua particularidade: aquele pode ter surgido em correspondência a um imóvel rural, aquele outro pode incluir imóveis rurais e, ainda, abranger terras públicas e privadas. Alfredo Wagner Almeida (2002) traz o conceito de novas etnias para explicar as novas categorias de formação e identidades coletivas[3].

Diante de tantas transformações sociais, generalizar as situações seria bastante perigoso, devendo ser feitas análises em cada caso concreto para não correr o risco de serem menosprezadas as especificidades de cada situação e, pregando uma igualdade que, na vera, não se concretizará.

A ruptura conceitual que derivou do surgimento das “novas etnias”, conceito trazido por Alfredo Wagner, tornou claro que a fronteira étnica deixou de coincidir com critérios raciais, culturais e linguísticos e passou a ser definida por um critério político-organizativo, ou seja, os grupos passaram a se formar com o intuito de obter condições para a sua reprodução econômica e cultural. O critério político-organizativo passou a ser um aglutinador. Abandonou-se a ideia de aceitar que o “outro” diga a qual grupo esse, ou aquele, ator social pertence, e quem passou a definir o seu caminho, a sua identidade. Cada um passou a ter a autoridade para tanto.

A forma como esses grupos lidam com a natureza traduz de forma bem precisa como é formada a sua identidade, como eles se autodefinem.

Nas áreas de comunidades quilombolas as fontes de água não secaram, diferentemente de muitos outros lugares que foram objeto de projetos agropecuários do Governo. A natureza ainda vive nesses lugares, e por que ainda insistem em se referir a tais comunidades como algo do passado, como “remanescente”?

Com o intuito de tentar solucionar a problemática da ideia “remanescente” de quilombo prevista no art. 68 da ADCT, o a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi convocada pelo Ministério Público para dar o seu parecer e tentar desfazer equívocos referentes à condição das comunidades quilombolas atuais. Em reunião realizada em outubro de 1994 com o Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, tentou-se desmistificar a associação feita entre quilombo e resíduos arqueológicos ou isolamento, tendo sido evidenciado o caráter organizacional, relacional e dinâmico (LEITE, 2000, p. 342) dos quilombos na atualidade, devendo ser visto como um direito a ser reconhecido na atualidade, não apenas como um passado a ser rememorado (LEITE, 2000).

2.3      TERRITORIALIDADE E RESISTÊNCIA QUILOMBOLA

O cerne dos conflitos que as comunidades quilombolas vivenciam dizem respeito à territorialidade, no seu direito à terra e, deste modo, na problemática da regularização fundiária. O princípio desse conflito está na forma como o homem lidou com a natureza nos primórdios da humanidade, ao instituir a necessidade de privatização de um bem, que até então era patrimônio de todos.

A relação dessas comunidades com os territórios que ocupam é de total dependência. “Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é também o locus das representações e do imaginário mitológico dessas sociedades tradicionais” (DIEGUES, 2001, p. 50). O território pode ser entendido como “um espaço ao qual um certo grupo garante as seus membros direitos estáveis de acesso, de uso e de controle dos recursos e sua disponibilidade de tempo” (CASTRO, 1998, p. 174). Todavia, o conceito de território não se restringe apenas ao ponto de vista econômico e é no âmbito das comunidades tradicionais que tal conceito apresenta-se da forma mais ampla possível, refletindo na cultura, na religião e no modo de vida dessas comunidades.

Nas comunidades tradicionais, o conceito de território, bem como a organização para as atividades de trabalho, está intimamente relacionado às festividades, aos rituais e a outras manifestações de sociabilidade que configuram a interação entre os membros de tais comunidades.

A territorialidade para esses povos funciona como um fator identitário, como já dito anteriormente, inclusive para a promoção da defesa daquele grupo (ALMEIDA, 1989). Nesses casos, o acesso à terra não se resume à atividades produtivas de famílias, ou grupos de parentes, mas também por grupos que são formados em situações de adversidade.

Tais formas de uso da terra, também chamadas de “terra de uso comum” ainda são marginalizadas pelo nosso sistema legal, apesar da sua existência já ter sido evidenciada, não tendo sido, inclusive, objeto de qualquer inventariamento. Insiste-se em tratar essa modalidade de uso comum da terra como um anacronismo social, folclore, algo que não existe de fato, fruto das mentes "férteis" dos etnógrafos que recriam antigos “mitos” (ALMEIDA, 1989). Todavia, a existência desse sistema já é facilmente detectável, por pesquisadores, cientistas, técnicos de órgãos do governo que realizam vistorias nos imóveis rurais.

O censo agropecuário da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística tratou do tema de forma superficial, rebaixando a propriedade e a posse de tais terras à categoria censitária “estabelecimento”, sem qualquer atenção às particularidades que o usufruto comum da terra necessita para ser classificado e entendido sob o argumento de que tais formas de uso da terra tendem o desaparecimento (ALMEIDA, 1989).

Dizem, ainda, que o uso comum da terra e tais comunidades que delas fazem uso configuram-se por “instituições anacrônicas” que tornam aquelas terras impróprias para o mercado pois, segundo eles, tais sistemas de uso comum imobilizam a terra, na medida em que a endogamia, o casamento preferencial, as regras de sucessão e fatores étnicos criam mecanismos para a indivisibilidade daquele patrimônio, obstacularizando o repasse e, consequentemente, a inclusão daquela terra no mercado (ALMEIDA, 1989).

Deste modo, consideram que a expansão capitalista no campo “resolveria” tal situação, “liberando” aquelas terras para que fossem apropriadas individualmente, sem dar qualquer importância às particularidades que emanam daqueles territórios.

Para que se proceda o reconhecimento dos direitos daqueles que trabalham no campo, é necessário entender a forma como eles se apropriam dos recursos básicos. A luta camponesa para o reconhecimento de suas terras se concretizou no ano de 1985, quando foi lançado pelo INCRA a Proposta ao I Plano de Reforma Agrária da Nova República, diante das pressões sociais que ocorreram naquele ano (ALMEIDA, 1989). Estabeleceu-se o reconhecimento e a demarcação de tais terras de forma que não fosse destruída a organização e o sistema de apossamento que já era inerente àquela localidade. Impunha-se, também, medidas que assegurassem a permanência daqueles trabalhadores em suas terras.

Dessa luta derivou o Laudo Fundiário (LF) elaborado pela INCRA, que objetivava “levantar informações sobre os imóveis rurais e seus detentores a qualquer titulo, parceiros e arrendatários” (ALMEIDA, 1989, p. 138).

Neste documento, as terras de uso comum receberam a denominação genérica de “ocupações especiais”, abrangendo dentre outras, as chamadas “terras de santo”, “terras dos indios” (que não devem ser confundidas com as terras indígenas), “terras de negro”, “fundos de pasto” e “pastos comuns”, também cognominados “terras abertas”, “terras soltas” e “campos”. (ALMEIDA, 1989, p. 138).

Com a Nova República e a proposta de reforma agrária daquele tempo, as apreensões no sentido da não efetividade dos Laudos Fundiários aumentaram ainda mais.

Os sistemas de uso comum surgem como resultado de uma crise nas plantations, como foi explicado no tópico anterior, onde as grandes propriedades de monocultura deram lugar às terras de uso comum, diante do abandono, doação e entrega das suas terras pelos grandes proprietários aos camponeses.

A distribuição de funções de grupo não se dava necessariamente com fulcro no principio da igualdade, ou seja, nem todos possuíam a mesma quantidade de terra. Eles criaram seus próprios critérios para repartir a terra, as funções a serem desempenhadas. O critério para a distribuição era por interesses de cada grupo, que muitas vezes não coincidiam. Foi a partir daí que a terra de uso comum passou a se relacionar intimamente com a identidade desses grupos, que se definiam enquanto seres pertencentes àquela terra.

Alfredo Wagner Almeida (1989) explica que as formas de apropriação diferenciaram-se por meio de denominações específicas, cada uma com suas particularidades, quais sejam: “terras de preto”, “terras de santo”, “terras de Irmandade”, “terrasde parentes”, “terras de ausente”, “terras de herança” (e/ou “terras de herdeiros”) e “patrimônio”.

Embora atualmente já seja bastante debatida a ideia do desenvolvimento sustentável e da importância das comunidades tradicionais, a nossa sociedade permanece negando os saberes produzidos no âmbito de tais comunidades, em razão de preconceitos historicamente herdados, e que se perpetuaram, considerando que os saberes aí produzidos desembocam em um trabalho improdutivo (CASTRO, 1998).

Ademais, é importante salientar que o fato da Constituição Federal de 1988 ter rompido com a visão etnocêntrica e monolítica da sociedade brasileira, consagrando o respeito à plurietnia e o multiculturalismo, foi determinante para o reconhecimento e a regularização fundiária das comunidades quilombolas, pois nestas propriedades visualiza-se uma forma diferente de apossamento, denominada ‘’propriedade coletiva”(GIROLAMO, p. 13).

A partir dessa nova forma de entender a propriedade, desta vez associando o território a um processo identitário, não somente de delimitação territorial propriamente dita. Ainda assim, tal processo identitário nunca foi fácil, pois só depois de sete anos de vigência da atual Carta Magna o primeiro titulo de reconhecimento de domínio para os ‘’remanescentes das comunidades de quilombos”, em 20 de novembro de 1995, no município de Oriximiná, no Pará.

A vida nas comunidades tradicionais gira em torno do território. Os seus saberes, o seu vocabulário, suas vestimentas refletem a relação dos membros de tais comunidades com os territórios que ocupam. Percebe-se que o território é o lugar onde aqueles sujeitos reverenciam a sua existência, pois o trabalho, as redes de sociabilidade, só tem relevância se produzidos na terra que ocupam.

Embora tais comunidades não saibam explicar alguns fenômenos naturais que ocorrem, os saberes práticos produzidos por tais comunidades são muitos, conhecimentos estes produzidos e acumulados por gerações, o que, inclusive, interferem na formação da sua identidade e da sua cultura (CASTRO, 1998).

Para dimensionar a importância dos ecossistemas na vida dessas comunidades tradicionais, as formas de comunicação delas (comunidades) derivam do território onde vivem, quer dizer, o seu vocabulário é baseado na natureza, de onde tiram o seu sustendo e o seu modo de vida. Tais populações recebem suas denominações de acordo com a atividade exercida na natureza, como é o caso dos seringueiros, pescadores, coletores e caçadores, garimpeiros, quebradeiras de coco, entre outros (CASTRO, 1998).

Nesse sentido, tal luta está intimamente ligada à validação do conhecimento produzido pelas comunidades tradicionais, que jamais deve reduzido somente ao valor econômico. A origem desse conhecimento está vinculada à sobrevivência das comunidades pois, como foi dito anteriormente, o território é a fonte da formação identitária dessas populações e, não havendo identidade, não há comunidade tradicional.

A grande questão enfrentada pelas comunidades tradicionais na atualidade diz respeito à luta travada entre os saberes produzidos na natureza e os saberes tecnocientíficos. Após a inclusão na Convenção sobre Biodiversidade (1993) do princípio que estabelece o respeito aos direitos dos povos tradicionais, houve uma institucionalização desse modo de relação, não apenas como um respeito à natureza mas, também, com o olhar voltado para os saberes produzidos pelas comunidades tradicionais, que está intimamente relacionado com a formação da cultura destes povos (CASTRO, 1998).

Passou-se a perceber que a produção desses saberes, embora fossem locais e derivassem, também, de gerações passadas, projetam-se mundialmente, e para o futuro, na medida em que a preservação da natureza beneficia não apenas tais populações, mas sim a humanidade por completo (CASTRO, 1998). Todavia, o reconhecimento de tais saberes esbarra nos interesses do sistema capitalista, que enxergam na natureza a oportunidade de produção de riqueza desenfreada, sem qualquer respeito à biodiversidade.

Nos quilombos a unidade familiar é a base do sistema produtivo. Esse sistema é baseado em uma forma de cooperação simples entre inúmeras famílias, configurando uma divisão própria de trabalho, que se caracteriza pela produção para o próprio consumo e, também, para o mercado, mas não baseados na lógica do consumo do sistema capitalista.

A questão atual de enorme importância é proteger o direito das comunidades tradicionais, que se encontra ameaçado pelo avanço tecnológico, buscando não reduzir os seus sistemas de conhecimento ao sistema tecnocientífico. A proteção dos direitos das comunidades tradicionais reflete beneficamente para toda a humanidade, na medida em que ao mesmo tempo em que retiram da natureza o seu sustento, colaboram na preservação da mesma. Vejamos o que disseram sobre o assunto as autoras Raquel Sparemberger e Carolina Kretzmann (2011, p. 93-4):

A valorização e o respeito aos indígenas,quilombolas, caiçaras, babaçueiros e os demais povos detentores de saberes tradicionais e que dependem diretamente da natureza para viver, pode partir também do reconhecimento às formas de manejo que desenvolvem. Essas formas respeitam o ritmo da natureza, como, o fato de exercerem a pesca na época adequada e, quando há cheias ou piracema, buscarem outra forma de subsistência, como a pequena agricultura e o extrativismo vegetal.

O que está em pauta é a luta pelo "direito de continuar mantendo uma conexão vital entre a produção de alimentos e a terra. Impossível proteger a diversidade biológica sem proteger, concomitantemente, a sociodiverdidade que a produz e a conserva" (CASTRO, 1998, p. 176). A proteção ao direito das populações tradicionais de permanecer no seu território, produzir, cultivar, plantar é a proteção à própria vida dessas comunidades, pois não existe comunidade tradicional dissociada do seu território.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Amanda Ester Barreto. Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4822, 13 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51997. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Monografia (Pós-Graduação). Faculdade Baiana de Direito, Salvador, 2016.

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