Artigo Destaque dos editores

Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária

Exibindo página 4 de 4
13/09/2016 às 14:02
Leia nesta página:

5    CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar os impasses para a efetivação dos direitos destinados às comunidades quilombolas brasileiras, com enfoque na questão fundiária, bem como ressaltar o papel que o território representa na cultura e na formação da identidade desse povo, e de que modo privá-los do direito à propriedade definitiva de suas terras influencia para a degradação da cultura, da tradição e desenvolvimento da própria comunidade quilombola.

As heranças da escravidão ainda deixaram marcas na sociedade atual, e o povo negro é a maior vítima da desigualdade social que impera no nosso país. Não bastasse isso, mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a previsão do artigo 68 da ADCT, bem como dos pactos internacionais que tratam do tema e os quais o Brasil é signatário, a edição do Decreto 4.887/03 e do Estatuto da Igualdade Racial, diplomas normativos que tem em sua essência o dever de tutela dos direitos dos remanescentes de quilombo, inúmeras comunidades do território nacional ainda são vítimas do lento processo de titulação de suas terras e ficam a mercê da demora do aparelhamento estatal e da disponibilidade de recursos públicos para que seus direitos sejam efetivados.

Os impasses para a efetivação dos direitos territoriais das comunidades quilombolas são diversos, entre eles estão os seguintes: o Estado não tem dado conta de tantas demandas étnicas; a disponibilidades de recursos para o pagamento da indenização aos antigos proprietários em razão da desapropriação é escassa ou, quando existente, há uma distribuição irregular desses recursos; o grande descontentamento dos grandes latifundiários em perder as “suas” terras para conferir às comunidades quilombolas o mínimo de dignidade; e, talvez o mais grave dos problemas, a ADI 3239 proposta pelo PFL, atualmente DEM, requerendo a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, pedra angular no reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades quilombolas, representando a maior conquista desse povo nos últimos 10 anos, com base em argumentos incongruentes.

Verificou-se, com a elaboração deste trabalho, que o processo de titulação das terras das comunidades quilombolas ainda é lento e burocrático, o que demonstra que o Estado ainda não tem dado conta da demanda.

Como alternativa para acelerar o processo de concessão da propriedade definitiva ao povo quilombola, bem como para pôr fim à discussão a respeito da constitucionalidade do Decreto 4.887/03, foi apresentada a alternativa de inversão do procedimento desapropriatório, ou seja, na fase da desapropriação das terras quilombolas ocupadas por particulares, o direito à indenização dessas pessoas deveria ser retardado para um momento posterior à entrega das terras à comunidade quilombola, impedindo que a efetividade do direito territorial desse povo fique subordinado à burocracia estatal pois, como foi visto, o principio da proporcionalidade coloca o direito das comunidades quilombolas em um patamar superior ao direito dos particulares à indenização.

Isso não quer dizer, todavia, que os particulares ficariam desassistidos, de modo que caso houvesse a demora do Estado no pagamento do valor, os particulares poderiam interpor uma ação indenizatória em face do Estado.

Isto posto, concluímos que a garantia do direito à terra às comunidades quilombolas, além de conferir um direito fundamental à esse povo, representa um avanço e um privilégio em grande escala, conferindo uma melhor qualidade de vida não só para eles mas, indiretamente, para toda a sociedade brasileira.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWIER, ElianeCantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

______. Terras de preto, terras de santo, terras de índio - uso comum e conflito. Belém: NAEA/UFPA, 1989.

ALVES, Henrique Napoleão. Prêmio Territorios Quilombolas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2012.

ANJOS, Rafael SanzioAraujo dos. A África Brasileira: geografia e territorialidade. Revista Palmares, Brasília, ano V, n. 5, p. 56-68, ago. 2009.

BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: a Grã Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos 1807-1869. Brasília: Senado Federal, 2002.

BITTENCOURT, Gilmar. Direito dos Remanescentes de Quilombolas: dimensão de um direito constitucional. Salvador: ESDEP, 2013.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil(1988). Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 10dez. 2013.

______. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho,sobre Povos Indígenas e Tribais, Decreto nº. 5.051, de 19 de abril de 2004.Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 27dez. 2013.

______. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Decreto nº. 6.581, de 08 de dezembro de 1968.Disponível em:<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/conv_int_eliminacao_disc_racial.htm>. Acesso em: 27dez. 2013.

______. Decreto nº. 3.912, de 10 de setembro de 2001.Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3912.htm>. Acesso em: 27dez. 2013.

______. Decreto nº. 4.887, de 20 de novembro de 2003.Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: 27dez. 2013.

______. Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº. 12.288, de 20 de julho d e2010.Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em: 27dez. 2013.

______.  Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Decreto nº. 592, de 06 de julho de 1992.Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 27dez. 2013.

BRITO,Antonio José Guimarães. Etnicidade, alteridade e tolerância. In: COLAÇO, Thais Luzia. Elementos de Antropologia Jurídica. São José: Conceito Editorial, 2011.

CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. 2. ed. São Paulo: Attar, 2005.

CASTRO, Edna. Território, Biodiversidade e Saberes de Populações Tradicionais. Belém: UFPA/NAEA, 1998.

CUNHA JÚNIOR, Dirleyda.Controle de constitucionalidade: teoria e prática. Salvador: JusPodivm, 2006.

CYPRIANO, André. Quilombolas: tradições e cultura da resistência. São Paulo: Aori Comunicações, 2006.

DAMAZIO, Eloise da Silveira Petter. Antropologia, Alteridade e Direito: da construção do “outro” colonizado como inferior a partir do discurso colonial à necessidade da prática alteritária. In: COLAÇO, Thais Luzia. Elementos de Antropologia Jurídica. São José: Conceito Editorial, 2011.

DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB – USP, 2001.

FREITAS, Décio. O Escravismo brasileiro. Porto Alegre: Escola Superior de teologia São Lourenço de Brindes/Editora Vozes, filial de Porto Alegre/Instituto Cultural Português, 1980.

GAMA, Alcides Moreira. O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos. 2007. Disponível em: <http://www.palma res.gov.br/wp-content/uploads/2010/11/O-direito-de-propriedade-das-terras-ocupadas-pelas.pdf>. Acesso em: 29 dez. 2013.

GELEDÉS, Instituto da Mulher Negra. Guia de Enfrentamento do Racismo Institucional. São Paulo: Ibraphel, 2013.

GENNARI, Emilio. Em Busca da Liberdade – Traços das lutas escravas no Brasil. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

TRECCANI, Domenico Girolamo. Terras de Quilombo: Caminhos e Entraves do Processo de Titulação. Belém: Secretaria Executiva de Justiça. Programa Raízes, 2006.

GOMES, Flávio.História de quilombolas mocambos e comunidade de senzala no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia de Letras, 2006.

INCRA. Instrução Normativa nº 49, de 29 de setembro de 2008. Disponível em:<http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/IN49-290908.pdf>. Acesso em: 27dez. 2013.

CORREA, Carlos Alberto Lamarão, Parecer em resposta à consulta do Presidente do Instituto de Terras do Pará – ITERPA, a respeito da utilização do instituto jurídico da desapropriação por utilidade pública, In OLIVEIRA, Leinad Ayer de, Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes, São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

WIECKO, Ella, Palestra na Mesa Jurídica. In: BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA, FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, I Encontro Nacional de Lideranças das Comunidades Remanescentes Tituladas, Brasília: Fundação Cultural Palmares- MinC, Editorial Abaré, 2002.

LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: Questões Conceituais e Normativas. Revista Etnográfica, Vol. IV, n. 2, 2000, p. 333-54. Disponível em: <http://ceas. iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_333-354.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2014.

LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Quilombos: da insurreição à propriedade constitucional, 2005a, mimeo

MOURA,Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed.São Paulo:Ática,1992.

OIT. Convenção sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, de 04 de junho de 1958. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/1958%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20a%20Discrimina%C3%A7%C3%A3o%20em%20Mat%C3%A9ria%20de%20Emprego%20e%20Profiss%C3%A3o%20(Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20%20%20n%20%C2%BA%20111).pdf>. Acesso em: 02 jan. 2014.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Caminhos da identidade: ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo. São Paulo: Edunesp, 2006.

ONU. Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 16 de dezembro de 1966. Disponível em: <http://www.uniceub.br/media/123120/PIDESC.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2013.

ONU, Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Paris, 20 de outubro de 2005. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/politicas5/-/asset_publisher/WORBGxCla6bB/content/convencao-sobre-a-protecao-e-promocao-da-diversidade-das-expressoes-culturais/10913>. Acesso em: 02 jan. 2014.

PAIM, Paulo Renato. In:SIMÃO NETO, Calil. Comentarios doutrinários a respeito do Estatuto da Igualdade Racial. São Paulo: J.H.Mizuno,2011.

PEREGALLI, Henrique. Escravidão no Brasil. São Paulo: Global, 2001.

POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne.Teoria da etnicidade–Seguido de grupos etnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo:Unesp, 2011.

ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira, O decreto 4887/2003 e a regulamentação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, In Territórios Quilombolas. Reconhecimento e Titulação das Terras Boletim Informativo do NUER, vol. 2, nº 2, 2005

SARMENTO, Daniel. Territórios Quilombolas e Constituição: A ADI 3.239 e aConstitucionalidade do Decreto 4.887/03. 2008. Disponível em: <http://6ccr.pgr.mpf. mp.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/Territorios_Quilombolas_e_Consti tuicao_Dr._Daniel_Sarmento.pdf>. Acesso em: 29 dez. 2013.

SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

SIMÃO NETO, Calil. Comentarios doutrinários a respeito do Estatuto da Igualdade Racial. São Paulo: J. H. Mizuno,2011.

SOUZA, Douglas Martins. In: SIMÃO NETO, Calil. Comentarios doutrinários a respeito do Estatuto da Igualdade Racial. São Paulo: J.H.Mizuno,2011.

SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes; KRETZMANN, Carolina Giordani. Antropologia, multiculturalismo e Direito: o reconhecimento da identidade das comunidades tradicionais no Brasil. In: COLAÇO, Thais Luzia. Elementos de Antropologia Jurídica. São José: Conceito Editorial, 2011.

SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO PÚBLICO, Comunidades Quilombolas. Direito à terra (art. 68 do ADCT), Brasília: Fundação Cultural Palmares/MinC/Editorial Abaré, 2002.


Notas

[1] "A tolerância não advém de um sentimento caridoso, nem da resignação diante de um acontecimento inevitável. Tolerar o ‘outro’ não significa um conformismo diante de uma convivência não desejada, mas, antes de tudo, um olhar de respeito à singularidade do ‘Outro’ [...]" (BRITO, 2011, p. 48).

[2] Segundo Gama, a expressão “remanescente” deve ser interpretada extensivamente, pois havendo uma aplicação literal do texto, não haveria como aplicá-lo pois, segundo ele, “caso haja algum remanescente do período escravocrata, ele deve estar no seu leito de morte. Então, onde se lê remanescente, entenda-se descendente que significa derivar, provir por geração" (GAMA, p. 8, 2007).

[3] Como é o caso das quebradeiras de coco babaçu (MA, PA, PI e TO) e das artesãs de arumã do Rio Negro (AM), onde a formação da sua identidade está ligada a critérios ocupacionais, no caso dos ribeirinhos, critérios relativos à localização geográfica, entre outros(ALMEIDA, 2002, p. 72).

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Amanda Ester Barreto. Identidade étnica, comunidades quilombolas e territorialidade: impasses para a regularização fundiária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4822, 13 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51997. Acesso em: 23 abr. 2024.

Mais informações

Monografia (Pós-Graduação). Faculdade Baiana de Direito, Salvador, 2016.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos