Introdução
Apesar do compromisso explícito firmado na campanha do atual Presidente da República [1], o Governo Federal obteve no Congresso a aprovação da Emenda Constitucional n.º 41, de 19 de dezembro de 2003, que, entre outras alterações, incluiu na Constituição Federal dispositivos que expressamente "autorizam" a instituição de uma "contribuição" incidente sobre proventos e pensões de aposentados e pensionistas do serviço público, assim:
"Art. 40 - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
(...)
§ 18. Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos".
A criação de contribuição semelhante já havia sido tentada em 1999, através da Lei n.º 9.783/99, que foi, entretanto, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em votação unânime [2]. A questão que se coloca, agora, é a de saber se a inconstitucionalidade que impedia a cobrança da contribuição, em 1999, foi afastada com o advento da EC 41/2003, ou se, ao revés, subsiste, por decorrer de dispositivos da Constituição que não podem ser contrariados nem mesmo pelo poder reformador, constituinte derivado.
Caso se conclua pela validade, em tese, da contribuição incidente sobre proventos e pensões, assume relevo ainda o aspecto de direito intertemporal, pertinente à incidência da contribuição sobre aqueles que, no momento de sua instituição, já eram aposentados, pensionistas, ou já haviam reunido as condições necessárias a serem assim considerados. Há de ser examinada, nesse caso, a existência de direito adquirido.
Foi para provocar a reflexão sobre essas duas questões, sintetizadas nos dois parágrafos antecedentes, que escrevemos o presente texto.
1. Natureza da "contribuição" dos inativos
1.1. Conceito de contribuição
Como se sabe, o nome de um tributo não lhe define a natureza jurídica. Assim como ocorre nos contratos, e em qualquer outra realidade jurídica, o nomen juris é irrelevante. É o que dispõe o art. 4.º do CTN, que apenas explicita algo que decorre da própria Teoria do Direito Tributário. A exação prevista no § 18 da EC 41/2003, portanto, poderá ser classificada como "contribuição" caso reúna determinadas características, e não simplesmente porque o legislador, ainda que constituinte derivado, assim a denominou.
Diferentemente dos impostos, as contribuições têm uma finalidade específica e constitucionalmente determinada [3]. Mas isso não basta para caracterizá-las: a finalidade deve ainda ser buscada mediante uma atuação estatal, atuação causada por um grupo de pessoas do qual o contribuinte faça parte. É exigida, portanto, uma referibilidade indireta entre o contribuinte e a atuação estatal que justifica a cobrança da contribuição [4]. Como decorrência disso, embora nem sempre sejam determinados na Constituição, os fatos imponíveis das contribuições também devem estar relacionados com a finalidade a ser alcançada com a exação e com a participação do contribuinte no grupo correspondente.
1.2. Contribuinte como parte de um "grupo" e o custeio da seguridade por toda a sociedade
Poder-se-ia dizer, em oposição ao conceito de "contribuição" resumido no item anterior, que o mesmo não se aplica às contribuições no Direito Brasileiro, na medida em que caput do art. 195 da CF/88 preconiza o custeio da seguridade social não por um grupo específico, mas "por toda a sociedade". Esse raciocínio, todavia, está equivocado.
Na verdade, a alusão a um custeio "por toda a sociedade" diz respeito apenas a algumas das contribuições previstas originalmente no próprio art. 195, e àquelas que venham a ser criadas com base na competência residual nele disciplinada, e não às contribuições como um todo, nem tampouco àquelas atinentes à previdência social dos servidores públicos. Em verdade, tal artigo da Constituição estabelece apenas uma exceção à regra de que as contribuições somente podem ser exigidas de um grupo específico, ao qual a atividade custeada guarde relação. Como toda exceção, não pode ser ampliada para abranger contribuições que não lhe digam respeito.
Aliás, e talvez por isso mesmo, essas contribuições em relação às quais a "referibilidade" é menor (v.g. COFINS, CSLL) foram, paralelamente, objeto de disciplinamento constitucional quase tão rígido quanto o dos impostos, com estabelecimento de contribuintes, bases de cálculo, fatos geradores, limites para o exercício da competência residual, etc [5]., regramento este que, a propósito, no que toca à enumeração dos contribuintes, indica as empresas, e os segurados, mas não os beneficiários (aposentados e pensionistas).
Não se deve esquecer que a atenuação da referibilidade, no que pertine a algumas contribuições de seguridade, foi prevista pelo constituinte originário, e não pode ser arbitrariamente alastrada pelo constituinte derivado, sob pena de destruição do sistema tributário nacional. No caso da CF/88, essa menor referibilidade diz respeito às empresas, que também devem custear a seguridade nas hipóteses previstas no art. 195, I, mas não abrange nem nunca abrangeu os segurados. Em relação a estes, a referibilidade é de tal ordem que a doutrina classifica a contribuição por eles devida como sendo sinalagmática [6], contribuição que é, e sempre foi, quantificada de modo muito estreitamente ligado – diretamente proporcional! – com o que, posteriormente, deve corresponder aos benefícios. O Supremo Tribunal Federal, a propósito, sempre consignou a total vinculação existente entre a contribuição previdenciária devida pelo servidor, exigindo a "necessária vinculação causal que deve existir entre contribuições e benefícios (RTJ 147/921)" [7].
1.3. Natureza da "contribuição" dos inativos
Diante do que até agora sintetizamos, parece-nos bastante duvidosa a pertinência do rótulo "contribuição", colocado na exação prevista no § 18 do art. 40 da CF/88. Isso porque o grupo composto pelos aposentados e pensionistas não tem mais qualquer referibilidade, nem direta nem indireta, para com a atividade estatal para a qual seus integrantes terão de continuar contribuindo.
Com efeito, antes da aposentadoria, ou da morte, o pagamento da contribuição tem por finalidade assegurar o direito ao recebimento dos proventos, devidos a partir de quando esses eventos acontecerem. Assim, depois da aposentadoria, ou da morte, o direito aos proventos ou à pensão não decorre da continuidade do pagamento de uma contribuição, mas do que foi pago durante todo o tempo em que o servidor manteve-se em atividade.
Em poucas palavras: depois de já se estar aposentado, ou de ser pensionista, a contribuição se presta para quê? O aposentado, enquanto vivo for, será contribuinte da exação, mas os valores pagos não se prestarão mais a propiciar-lhe qualquer benefício, direto ou indireto. Sobrevivendo por dois anos à data da concessão da aposentadoria, e não tendo dependentes, ou sobrevivendo por vinte anos a essa mesma data, e deixando ainda dezenas de filhos pequenos, o aposentado pagará sempre a mesma coisa, e seu direito à aposentadoria, ou à pensão para seus dependentes, não mais dependerá dessas retenções.
Há quem diga que a contribuição dos inativos seria válida, sim, porque o aposentado deve contribuir para formar reservas que custeiem uma pensão para seus dependentes, depois de sua morte. O argumento, porém, e com todo o respeito, é carente de razão. Primeiro, porque o direito à pensão não depende de tais recolhimentos, tanto que se o aposentado vier a falecer dois meses depois da concessão da aposentadoria, seus dependentes terão direito à pensão da mesma maneira. Aliás, quanto mais tempo o aposentado sobreviver – e, portanto, submeter-se à insólita contribuição – menores serão as probabilidades de restar algum dependente que, após a sua morte, faça jus a uma pensão. Quanto mais se contribuísse para a pensão, portanto, menor seria o direito a ela, absurdo que é mais que suficiente para demonstrar o desacerto da tese em exame, que, de qualquer modo, mesmo acolhida, não autorizaria a exigência da exação também de pensionistas, como está previsto no art. 40, § 18, da CF/88.
Enfim, como não existe mais qualquer atividade estatal que justifique, para os aposentados e pensionistas, o pagamento de uma contribuição, o que lhes for cobrado a esse título não estará sendo exigido para que essa atividade lhes seja prestada. Seu fundamento não será a consecução de uma finalidade referida ao contribuinte, nem mesmo ao grupo por ele integrado, que é composto de todos os servidores aposentados e por seus pensionistas. Não. O fundamento será pura e simplesmente a soberania estatal. Será um imposto, incidente especificamente sobre proventos e pensões.
O tributo previsto no § 18 do art. 40 da Constituição, portanto, é verdadeiro imposto de renda devido apenas por aposentados e pensionistas do serviço público. De uma forma ou de outra, considerando que esse tributo encontra previsão constitucional, decorrente da atividade do poder constituinte "derivado", resta examinar a sua compatibilidade com as chamadas cláusulas de imodificabilidade positivadas no art. 60, § 4.º, da CF/88.
2. A "contribuição" dos inativos e as cláusulas de imodificabilidade da Constituição
2.1. Isonomia e Imposto de renda adicional devido apenas por aposentados e pensionistas
Como a "contribuição" dos inativos tem, na verdade, natureza de adicional do imposto de renda, adicional incidente apenas e exclusivamente sobre os proventos de quem é aposentado ou pensionista do serviço público, a primeira inconstitucionalidade verificável é o malferimento ao princípio da isonomia, previsto nos arts. 5.º, caput, e 150, II, da CF/88.
É sabido que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Todo o problema relativo à aplicação do princípio da isonomia, em verdade, está em saber qual medida de desigualdade deve ser tomada, em cada situação, para justificar um tratamento desigual. É o "fator de discrímen" a que alude Celso Antonio Bandeira de Mello. Nas palavras do festejado autor, "tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada" [8].
Na esfera tributária, notadamente no que pertine aos impostos, o traço desigualador por excelência é a capacidade contributiva. Ela é a medida da desigualdade entre contribuintes. No caso, porém, a "contribuição dos inativos" onera rendimentos específicos de aposentados e pensionistas, e não onera rendimentos de pessoas com igual ou maior capacidade contributiva. Há, portanto, um tratamento desigual que não toma como critério a medida pertinente da desigualdade entre os contribuintes, ou seja, a capacidade contributiva, mas sim o fato de o rendimento ser oriundo de uma aposentadoria, ou de uma pensão, dado que não é "elemento relevante" a justificar a discriminação. O absurdo é equivalente a pretender tributar de modo mais oneroso o advogado, e de modo menos oneroso o médico, ou o dentista, que ganhem exatamente o mesmo valor, pois a natureza da atividade geradora dos rendimentos, no caso, não tem nenhuma pertinência com o IRPF que a onera.
Nem se invoque, no caso, que os contribuintes da exação em estudo, por serem aposentados ou pensionistas, estão em situação diferenciada da generalidade dos contribuintes, o que supostamente justificaria o tratamento mais oneroso que lhes é dispensado. Também não se afirme que a contribuição paga por inativos é a mesma paga pelos servidores em atividade. Esses dois argumentos, em verdade, só acentuam a desigualdade de tratamento levada a cabo com a pseudocontribuição de que se cuida.
Com efeito, caso se colha como elemento de discriminação a futura aquisição do direito à aposentadoria, ou à pensão, conquistado com o pagamento da contribuição, esta não poderia jamais ser exigida de servidores aposentados, nem de pensionistas. Apenas servidores em atividade poderiam ser compelidos a recolhê-la, pois apenas estes estariam na situação diferenciada que justifica sua cobrança.
Caso, por outro lado, se colha a mera manifestação de capacidade contributiva como fator de discriminação, a exação deveria ser então exigida de todos, na forma de um acréscimo das alíquotas progressivas do IRPF para algo em torno de 26% e 38%, respectivamente, para a generalidade dos contribuintes desse imposto. Esse acréscimo seria inconstitucional por outras razões, tais como ofensa à norma que veda o confisco, mas não por violação à isonomia entre os seus contribuintes.
Examinando o problema, Sacha Calmon Navarro Coelho conclui que "tanto a justiça quanto a igualdade rejeitam que duas pessoas, com um mesmo nível de rendimentos do trabalho em atividade ou ao ingressarem na inatividade legal, tenham descontos díspares na fonte, incidindo sobre os rendimentos do trabalho, seja a título de contribuição, seja a título de imposto de renda" [9].
A exação de que se cuida, enfim, implica um pagamento sem causa, só explicável a título de imposto de renda, e que não se justifica seja exigido apenas de servidores aposentados e de pensionistas pelo simples fato de serem aposentados e pensionistas. A violação ao princípio da isonomia é clara, e não há dúvida de que tal princípio integra o rol dos direitos e garantias individuais a que alude o inciso IV do § 4.º do art. 60 da CF/88.
2.2. Federação e partilha do imposto de renda
Não bastasse a inconstitucionalidade acima apontada, o fato de a "contribuição" dos inativos não ser uma autêntica contribuição, mas sim um adicional do imposto de renda, revela ainda violação ao art. 159, I, da CF/88, segundo o qual a União entregará aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios 47% do produto da arrecadação do imposto de renda e do imposto sobre produtos industrializados. Tal artigo, não é demais lembrar, consagra determinação que tem por finalidade propiciar a redução das desigualdades regionais, e especialmente manter a autonomia dos demais integrantes da federação em relação ao poder central.
Inexiste federação sem autonomia dos entes periféricos, e não há autonomia sem os recursos financeiros necessários à realização daquilo que, por vontade própria, planeja-se realizar. É por essa razão que, na maior parte das federações existentes no planeta, notadamente naquelas que forças centrípetas tendem constantemente ao unitarismo, a divisão de rendas tributárias é feita na própria Lei Maior. É o que anota, com inteira propriedade, Amílcar de Araújo Falcão:
"A razão de ser da importância da discriminação de renda, na federação, é evidente e se consubstancia na circunstância mesma de constituir uma exaltação, um grau superlativo das autonomias, sobretudo as periféricas, cujo convívio equilibrado com a unidade central se quer assegurar.
Por isso mesmo é que a discriminação de rendas, nas federações, costuma ser fixada no próprio texto constitucional. Só por exceção assim não acontece. Na Áustria, por exemplo, a partilha tributária foi confiada ao legislador federal; não obstante, o ato legislativo terá discussão e votação sob o regime especial do art. 44 da Constituição austríaca, referente às chamadas leis ou disposições constitucionais e será designado como lei constitucional de finanças ( Finanzverfassungsgsetz )
Em uma palavra, discriminação de rendas e autonomia local – ou, para usar a expressão de preferência dos autores de língua inglesa, autonomia de governos locais – são problemas que se integram num só contexto." [10]
Ao criar adicionais ao imposto de renda, mas batizando-os de "contribuição" para dar aos seus recursos outra destinação que não a partilha com Estados e Municípios, a União Federal burla a referida repartição de receitas tributárias, em prejuízo para o pacto federativo [11], o que o art. 60, § 4.º, I, da CF não admite nem mesmo à Emenda Constitucional.
2.3. Confisco e direito de propriedade
Registre-se, ainda, que a falsa "contribuição" de que se cuida e o imposto de renda incidem exatamente sobre a mesma base de cálculo: os proventos oriundos da aposentadoria, ou da pensão. A alíquota do imposto de renda chega a 27,5%, e a da contribuição, 11%, o que representa um ônus próximo a 38% dos proventos auferidos. Como consignou o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade da "contribuição dos inativos" criada pela Lei n.º 9.783/99, "a identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte" [12].
Antes da aposentadoria, ou da pensão, essa incidência pode justificar-se como forma de assegurar o direito a esses benefícios. Não se considera apenas a capacidade contributiva, mas também o proveito que o contribuinte experimentará no futuro em razão do que está sendo chamado a contribuir. Depois da concessão do benefício, porém, o ônus passa a não mais possuir qualquer relação com uma futura aposentadoria, representando pura e simplesmente uma diminuição impositiva dos proventos. Essa diminuição, precisamente por não encontrar causa em uma futura aposentadoria, assume natureza de imposto de renda, afigurando-se, enquanto tal, excessivamente gravosa, esbarrando na vedação ao confisco positivada no art. 150, IV, da CF, e mostrando-se, ainda, superior à capacidade contributiva dos respectivos aposentados e pensionistas.
A vedação ao confisco, a propósito, nada mais é que proteção ao direito de propriedade, e está inegavelmente abrangida pela referência feita ao art. 60, § 4.º, IV, da CF/88 como matéria cuja violação é vedada às emendas constitucionais. O mesmo se pode dizer do princípio da capacidade contributiva em relação ao princípio da isonomia, também direito individual protegido da ação do poder reformador.
2.4. Proporcionalidade e eqüidade no custeio da seguridade social
A mais grave inconstitucionalidade prevista na EC 41/2003, porém, está relacionada ao princípio da proporcionalidade.
Como se sabe, o princípio em comento é invocado sempre que se pretende fazer o controle da constitucionalidade de meios empregados na consecução de finalidades em princípio legítimas. Perquire-se se o meio realmente conduz à finalidade buscada (aptidão); se não existe outro meio tão ou mais eficaz para tanto, e que seja também menos gravoso (necessidade); e se tal meio não implica demasiadas restrições a outras finalidades, ou a outros valores, que deveriam ser igualmente prestigiados (vedação do excesso). No presente caso, a contribuição dos inativos tem sido anunciada como destinada a combater o déficit que seria causado pelo fato de os servidores públicos receberem aposentadorias elevadas, equivalentes ou próximas aos vencimentos recebidos por servidores em atividade, diversamente do que ocorre com os trabalhadores do setor privado.
Não nos parece, entretanto, que as premissas lançadas para justificar a cobrança da contribuição sejam corretas, pois não é possível fazer uma comparação pura e simples entre a situação dos servidores públicos e a situação dos trabalhadores da iniciativa privada. Quem faz essa comparação, e culpa indistintamente as aposentadorias do setor público por um alegado déficit, esquece que os servidores públicos, pelo menos no âmbito do regime anterior à EC 41/2003, submetiam-se à contribuição previdenciária tomando como base de cálculo a integralidade de seus vencimentos, enquanto trabalhadores do setor privado, por mais elevadas que sejam suas remunerações, contribuíam no máximo pelo teto legalmente fixado. Essa distinção é essencial, e nem sempre recebe a devida atenção.
Assim, considerado o regime anterior ao da atual reforma (que seria o "responsável" pelo déficit), e utilizando números aproximados para facilitar o cálculo meramente exemplificativo, imagine-se um empregado que exercesse importante função em uma grande empresa, recebendo salário mensal de R$ 15.000,00 (quinze mil reais). Sua contribuição ao INSS não seria calculada sobre todo esse montante, mas apenas sobre o valor do "teto", pouco superior a R$ 1.000,00. Aplicando-se a alíquota de 11%, esse segurado contribuía, por mês, pela quantia de aproximadamente R$ 110,00 [13]. Por sua vez, um servidor público que eventualmente ganhasse a mesma quantia – R$ 15.000,00 – submeter-se-ia à contribuição de 11% incidente sobre a integralidade de seus vencimentos, vendo descontados, a cada mês, aproximadamente R$ 1.650,00. Justifica-se, portanto, mesmo do ponto de vista atuarial, que o servidor que reuniu condições para aposentar-se sob a vigência do regime anterior aposente-se com proventos próximos ou equivalentes aos vencimentos que recebia quando em atividade, não sendo isso um "privilégio" ou uma "desigualdade" em face do trabalhador da iniciativa privada, sendo descabido atribuir-se ao servidor aposentado a responsabilidade pelo déficit na Seguridade Social.
Mas não é só. É importante registrar ainda que deve haver, além da contribuição do servidor, também a contribuição do seu "empregador", que é o ente público correspondente. Esse dado é freqüentemente esquecido nos cálculos "atuariais", não sendo raro que a União Federal considere essa sua parcela de responsabilidade como sendo um "rombo" a ser coberto. Não se pode discutir o déficit da previdência dos servidores públicos ignorando o dever do Poder Público de haver contribuído no passado, e de continuar contribuindo atualmente, também integralmente, sobre a sua "folha de salários". Administrativistas de renome, aliás, consideram que o servidor público tem direito à aposentadoria independentemente de haver contribuído, pois se trata de um direito decorrente do trabalho que desempenhou, configurando o provento verdadeiro vencimento diferido [14].
Com inteira propriedade, Sacha Calmon Navarro Coelho observa que, conquanto pugnem pelo custeio da seguridade social "por toda a sociedade", "as pessoas políticas – em nada solidárias – não apenas jamais contribuíram para a mantença do sistema, como passaram a desviar os seus recursos para outros fins. Fatos notórios independem de prova" [15].
Assim, se o valor dos proventos não é, em si, a "causa" do suposto déficit que se pretende combater, devem ser combatidas as verdadeiras causas desse déficit, e não onerados aqueles que por ele não são responsáveis. Isso mostra que a "contribuição dos inativos" não é sequer um meio apto, ou adequado, para alcançar a finalidade com ela almejada, fracassando logo no primeiro teste destinado a aferir sua proporcionalidade.
2.4.1. Desnecessidade
Em oposição ao que foi dito no item anterior, poder-se-ia afirmar a aptidão da contribuição dos inativos, pois algumas pessoas trabalham durante décadas no setor privado, contribuindo com valores reduzidos no âmbito do chamado "Regime Geral" da Previdência, e nos últimos anos de sua vida profissionalmente ativa ingressam no serviço público; e, assim, conquanto contribuam por pouco tempo sobre a integralidade dos vencimentos, aposentam-se com proventos elevados, geralmente integrais. Poder-se-ia dizer, ainda, que de uma forma ou de outra a contribuição gera recursos, sendo apta por isso à correção do déficit.
Mesmo admitindo, apenas para argumentar, essa aptidão, o tributo em exame continuaria, inegavelmente, meio desnecessário para se chegar a essa finalidade, fracassando no segundo teste destinado a aferir sua proporcionalidade. Isso porque existem outras maneiras de corrigir o problema, tão ou igualmente aptas, e bem menos gravosas aos direitos fundamentais envolvidos. Talvez algumas delas tenham sido introduzidas na própria reforma previdenciária levada a cabo pela EC 41/2003, sendo o caso apenas de se esperar que surtam os seus efeitos (que, por razões óbvias, não serão imediatos), e não o de tentar abreviá-los massacrando que não tem responsabilidade pelo déficit.
O fato de alguns trabalhadores contribuírem durante anos como segurados do INSS e só no final da carreira ingressarem no serviço público deve ser corrigido, se for o caso, com mudança nas regras de aposentadoria, especialmente dos critérios para determinação do valor dos proventos a serem recebidos. O que não é possível é equiparar esse servidor àquele que durante toda a vida, até os 70 anos de idade, pagou contribuição calculada pela integralidade de seus vencimentos, gerando saldo que lhe garantiria aposentadoria integral por lapso de tempo muitíssimo superior àquele que ainda lhe resta de vida. Essa equiparação, feita pelo tributo em comento, mostra que o mesmo, ainda que seja realmente apto a sanar o déficit da seguridade, não é "necessário", pois existem outros meios igualmente aptos (alteração nos critérios de aposentadoria) e muito menos gravosos.
Quanto à circunstância de que um tributo, qualquer que seja, supre o déficit da seguridade, e que por isso seria "adequado" para essa finalidade, isso também não demonstra que a cobrança do tributo seja proporcional. Extinguir todas as aposentadorias, ou reduzi-las à metade, também supriria o déficit, e não seria proporcional. O tributo, para mostrar-se proporcional, deve ser o meio mais adequado e menos gravoso para se chegar a essa redução do déficit, o que seguramente não é o caso da exação em exame. Primeiro porque, como se viu, os servidores públicos não são os responsáveis por ele, pelo menos não de uma maneira generalizada. Segundo porque, de qualquer sorte, não se pode nivelar, com a exigência da contribuição, servidores que já pagaram até mais do que o necessário para assegurar suas aposentadorias com aqueles que, eventualmente, não contribuíram por período a tanto suficiente. Seria o caso, como dito, de corrigir os critérios de aquisição do direito à aposentadoria, e à determinação do valor dos proventos, exigindo maior tempo de contribuição, ou prorrogando a idade limite para aposentadoria compulsória, por exemplo.
2.4.3. Desproporcionalidade em sentido estrito (vedação do excesso)
Ainda que não se considere a exação de inativos inapta, nem desnecessária, o que aqui apenas para argumentar se admite, a contribuição em questão é, de qualquer modo, seguramente desproporcional em sentido estrito, ou excessiva, para se chegar à finalidade que com ela é supostamente almejada. As diminuições e as violações de direitos fundamentais que causa são superiores, e muito, às vantagens e ao prestígio que traz aos direitos fundamentais que pretende (?) concretizar, senão vejamos.
Com o suposto propósito de reduzir o déficit da seguridade, estão sendo amesquinhados os valores isonomia, federação, capacidade contributiva e não confisco, o que gera um custeio iníquo da seguridade social. Isso, em outras palavras, significa que os ônus à integridade da ordem jurídica são muito maiores que os bônus alcançados com a exação.
Essa desproporcionalidade em sentido estrito se torna ainda mais eloqüente quando são constatadas as verdadeiras causas do déficit da seguridade, e o que o Governo Federal vem fazendo a respeito dessas mesmas causas. Para cumprir as elevadas metas de superávit primário, e possibilitar o pleno e integral pagamento dos cada vez mais elevados juros da dívida pública, as despesas públicas estão sendo substancialmente cortadas. A contribuição dos inativos, nesse contexto, nada mais é que um outro nome para ocultar uma pura e simples redução no valor de proventos, e de pensões, a fim de que haja saldo a ser aplicado na formação do dito superávit.
Paralelamente a isso, contribuições que deveriam custear a seguridade social, notadamente a seguridade social destinada ao setor privado de uma maneira geral, como é o caso da COFINS, e da CSSL, são arrecadadas pelo Tesouro Nacional e repassadas à seguridade apenas e na medida em que estritamente necessário, para cobrir os seus alegados déficits, como se os recursos não fossem constitucionalmente destinados à seguridade e lhes estivessem sendo repassados como um favor. Para dar maior legitimidade ao desvio, chegou-se inclusive ao cúmulo de aprovar, e prorrogar continuamente, uma "desvinculação de receitas da União – DRU", em face da qual parte do que é arrecadado com ditas contribuições passa a ser definitiva e confessadamente aplicado em outras finalidades. E tais finalidades são, mais uma vez, a formação de superávit primário. A mesma "lógica" que orienta o funcionamento do regime geral da previdência social guia, também, a previdência dos servidores públicos.
A finalidade a ser atingida com a contribuição dos inativos, portanto, não é corrigir distorções na seguridade social, nem cobrir déficits, nem muito menos propiciar uma aposentadoria mais "justa" para quem quer que seja. A verdadeira finalidade, alcançada à custa da violação a todos os princípios elencados nos itens acima, é pura e simplesmente o pagamento inaudito de juros. Parece-nos evidente, em face dos valores consagrados em nossa Constituição, que essa finalidade não pode ser levada assim tão longe.
2.5. Razoabilidade
Por fim, a "contribuição" prevista no § 18 do art. 40 da CF/88 é inconstitucional, ainda, por violação ao princípio da razoabilidade. Esse princípio tem zona de interseção bastante grande com o princípio da proporcionalidade, e por isso mesmo é com ele confundido, ou equiparado, por muitos doutrinadores de respeito.
Pode-se dizer que o meio razoável equipara-se ao meio proporcional por ser, igualmente, adequado e necessário à finalidade à qual se destina. A diferença entre ambos torna-se mais evidente quando se perquire a respeito do razoável, e do proporcional, tomados em seu sentido estrito. Nesse ponto, o princípio da razoabilidade distingue-se do princípio da proporcionalidade porque o primeiro busca a aprovação pela razão humana, pela prudência e pelo senso comum, enquanto o segundo busca a conciliação ponderada dos princípios envolvidos no problema, notadamente daqueles que têm estrutura de um mandamento de otimização.
Não sendo meio adequado, nem necessário, à suposta finalidade a que se destina, como se viu nos itens anteriores, a contribuição dos inativos não é, também, razoável. Caso se considere a razoabilidade em sentido estrito, precisamente aquele ponto no qual o princípio da razoabilidade se distingue do princípio da proporcionalidade, essa irrazoabilidade torna-se ainda mais flagrante, pois custa aceitar como racional que um aposentado, e, pior, um pensionista, tenham de contribuir para uma aposentadoria, ou para uma pensão, da qual já são beneficiários. Essa irrazoabilidade, aliás, foi registrada pelo Supremo Tribunal Federal, já quando do julgamento da "contribuição" dos inativos criada pela Lei n.º 9.783/99, nos seguintes termos:
"O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade" [16].