A presunção de inocência e a importância da fundamentação no recebimento da denúncia

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Se há no Brasil a presunção de inocência, é necessário identificar quando cessa, mas sabemos quando ela se inicia?

A instigante obra de Jean Rodrigues SALLES, “Eles não sabem o que fazem: uma anamnese do sublime ato de julgar”[1] tomando por base um velho ditado popular “cada cabeça uma sentença”, questiona o que seria o ato de julgar. O estudo proposto por Salles, obviamente vai muito além daquilo que tratamos aqui, mas chama atenção a citação de Fernando Vieira Luiz:

“Sou juiz, minha mãe é juíza, meus amigos juízes e promotores com os quais convivo são todos honestos, probos e justos. Interessante é que, quando nos reunimos para falar sobre os casos que decidimos, chegamos à conclusão de que, embora nossa honestidade, probidade e sentimento de justiça, damos sentenças tão diferentes umas das outras, em casos, por vezes, muito, muito similares. Por isso, cheguei à conclusão de que havia algo errado. Não basta ser honesto, probo e ter sentimento do justo. Todos, eu, minha mãe, meus amigos, decidimos conforme nossas consciências. Só que as decisões são tão discrepantes...”

Interessante notar que dentre a tríade de adjetivos – honesto, probo e justo – que formam este grupo de pessoas autorizadas a decidir os casos, não se encontra o adjetivo estudioso – estudioso do Direito, para ser mais específico.

Claro que não estamos aqui insinuando que naquele caso específico os envolvidos não sejam estudiosos do Direito, pois, se não o fossem, não seriam juízes e promotores e não se reuniriam para falar sobre os casos que passam pelos seus gabinetes. Queremos apenas chamar atenção para o que hoje vem ocorrendo fora do meio jurídico, ou o que podemos denominar de periferia jurídica (sem qualquer conotação geográfica).

As palavras de Fernando Vieira Luiz, isoladas do seu contexto e interpretadas na periferia jurídica autorizariam que os cidadãos que detivessem estes adjetivos virtuosos de honestidade, probidade e senso de justiça pudessem também se achar no direito de serem julgadores, não só julgadores dos atos do cotidiano, mas decisores de fatos e atos jurídicos, e claro, críticos e comentaristas de Justiça e Direito, como se falassem de futebol.

Neste mesmo sentido, Thiago MINAGÉ alerta que a utilização do direito destacada da realidade social possui um caráter destrutivo e irracional pela falta de conhecimento jurídico “podendo ainda ser totalmente destrutivo pela selvageria irracional apaixonante de clamores inflados e desprovidos de legitimação, com os espancamentos midiáticos no que se refere àquele que está na mira da ira”.[2]

Não desprezamos este avanço que está aí acerca do interesse da população pelas decisões judiciais, pelos debates nos tribunais e pelas investigações que têm feito um Brasil melhor. É salutar e sintoma de amadurecimento da democracia que toda a sociedade debata e forme sua opinião sobre os acontecimentos do ponto de vista jurídico, mesmo que superficial.

Nos referimos, todavia, aos extremos. Aos julgamentos feitos por aqueles que não estudam o Direito; aos julgamentos vindos da periferia jurídica (fora do meio jurídico), que se julgam no direito de sentenciar os seus iguais exclusivamente conforme sua lógica, seu entendimento e sua ideologia, sem nenhum fundamento jurídico.

Eis a semente do “fundamentalismo”, que nas palavras de Leonardo BOFF, não possui apenas uma face religiosa, mas se faz presente em todos os sistemas, sejam culturais, científicos, políticos, econômico e até artísticos. Todos “se apresentam como portadores exclusivos da verdade e de solução única para os problemas”.[3]

Não raras vezes, estes fundamentalistas que fazem seus julgamentos pessoais e individuais são condenadores vorazes. Geralmente aqueles cidadãos com tendência a justiceiros e adeptos da teoria do “bandido bom é bandido morto” é que se arvoram deste ilegítimo direito de julgar, usurpando uma função que não lhes cabe. Que assim seja para todo o sempre! Que a estes jamais seja permitida a nobre função de julgar.

BOFF insiste que vivemos sob o império feroz de vários fundamentalismos uma vez que eles representam a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista:

“Sendo assim, imediatamente surge grave consequência: quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o desprezo do outro, e o desprezo, a agressividade, e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem conflitos [...] com incontáveis vítimas”[4]

Por sorte, estes atos de julgamento periférico exagerados, que culminam na execração pública de um sujeito, ainda são claramente reconhecidos e prontamente rejeitados pela maioria da população.

Entretanto, os problemas crescem na medida em que são mais velados, mais dissimulados e mais ocultos; e aí é que se apresenta a real necessidade de se garantir a presunção da inocência.

A discussão teórica que está sacudindo o Poder Judiciário, mais exatamente o Supremo Tribunal Federal, pode causar, com o mais profundo respeito à Corte Suprema e aos seus Ministros, um estrago de proporções incalculáveis.

Todos nós cidadãos somos julgadores, posto que honestos, probos e justos, cada qual aos seus próprios olhos. Todos emitimos nossas opiniões sobre os fatos da vida, alguns as expõem, outros as guardam só para consumo próprio, mas todos julgamos. Na seara do Direito Penal também é assim.

Ao ser furtado seu dinheiro dentro da sua casa, você não presume a inocência de seu filho de dois meses, ao contrário, você julga (imediatamente) que ele é inocente, pela obviedade de ser impossível que ele seja o autor do crime. Você pode julgar também que não foi seu filho mais velho, pois, está há uma semana viajando de férias na casa dos avós. Nestes casos não existe presunção, existe julgamento que você fez com base naquilo que você conhecia naquele momento da história e que decorre de certeza baseada em prova sobre a qual você não tem nenhuma dúvida.

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Por outro lado, você presume a inocência do seu filho do meio com base nos princípios de educação que lhe deu. Você presume que não foi o jardineiro porque o conhece há vários anos. Você presume a inocência do piscineiro porque ele não teve acesso à parte interna da sua casa. Sobrou para o mordomo. Mas nenhuma decisão pode ser tomada sem prova, então, você não condenará nenhum deles.

A inocência de alguém “sujeito de direitos” só se presume por intermédio de um julgamento, mas não necessariamente um julgamento formal ou processual, mas sim um íntimo julgamento feito com base na sua lógica, seu entendimento e sua ideologia. No cotidiano do cidadão comum, o ato de julgar – o verbo na sua mais ampla concepção – é quase imediato.

Do mesmo modo que os condenadores vorazes acima criticados formam suas sentenças, qualquer cidadão também as forma, mas alguns não partem para a execração pública, mantendo no seu íntimo sua percepção de inocência ou não do outro e esperando o desenrolar dos fatos. Esperando o direito de defesa e a produção das provas.

O furto do seu dinheiro não deve causar uma comoção social, o que diminui a possibilidade de agir sob o efeito da opinião de massa. Não aparecerá estampado no jornal da sua cidade que o mordomo “virou réu”. O Fantástico não baterá à sua porta nem o Boris Casoy dirá que “isto é uma vergonha”.

Contudo, fica no ar a pergunta: Onde inicia e até onde vai a presunção de inocência de um indivíduo? Antes garantia-se que o réu era inocente até o trânsito em julgado. Involuímos para derrubar a inocência a partir de uma decisão colegiada. Hoje, para que a sociedade faça seu julgamento nos tribunais fundamentalistas da periferia jurídica, basta que surja uma notícia sobre alguém tenha “virado réu” em determinada ação judicial. Lá se foi a presunção de inocência, se é que algum dia ela existiu fora do mundo jurídico.

Um delator torturado preso citou o nome de alguém? Não interessa a credibilidade deste delator; citou alguém, este alguém está condenado! Busca e apreensão na casa de Fulano, condução coercitiva de Ciclano, denúncia de Beltrano pelo Ministério Público... Tudo isso faz parte do que Augusto Jobim do AMARAL ensina ao criticar a dinâmica das megaoperações policialescas e seus megaprocessos, vertidos sob o slogan do “combate à corrupção” que “constroem algo como que um arcabouço narrativo de arranque sobre o qual irá se debruçar toda e qualquer hipótese no processo penal”[5]

Todos estes atos derrubam a inocência do sujeito alvo nos tribunais periféricos fundamentalistas – a opinião pública. A presunção de inocência, portanto, morre no exato momento em que uma notícia vem a público.

Quando uma notícia que um órgão acusador apresentou uma Denúncia formal contra qualquer cidadão toma proporções tais a ponto de ser transmitida ao vivo pela imprensa, esta Denúncia ganha status de julgamento e o próximo ato processual, qual seja, o Recebimento da Denúncia é mais uma formalidade do que propriamente um ato processual importante.

É inegável que posturas deste tipo ferem de morte o princípio da presunção de inocência que, pela lição de Carlos Valder do NASCIMENTO, foi erigido à categoria de direito constitucional para colocar-se como uma resposta eficaz aos excessos e abusos perpetrados contra a cidadania[6]:

“O princípio da presunção de inocência, ademais, não se limita apenas ao âmbito do processo penal, mas, sobretudo, sugere uma abordagem pela perspectiva constitucional. Isto porque o referido postulado, erigido à categoria de direito fundamental, constitui uma garantia, seja na seara administrativa, seja na jurisdicional.”[7]

Neste contexto, mostra-se importante a retomada da discussão acerca da necessidade de fundamentação adequada para o recebimento da Denúncia, afinal, como afirma AMARAL o que ocorre hoje é um roteiro, bem conhecido por todos, de uma “criminologia midiática dinamizada por um autoritarismo cool”[8] e o recebimento processual de uma Denúncia deve estar devidamente fundamentado como forma de garantir a presunção de inocência, não somente até o trânsito em julgado, mas sobretudo DESDE a formação do processo.


Notas

[1] 1ª. ed – Florianópolis, Empório do Direito Academia, 2016, 80 p.

[2] MINAGÉ, Thiago. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição. 3ª. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 27

[3] BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro : Sextante, 2002, p. 38.

[4] Ibidem. p 25.

[5] AMARAL, Augusto Jobim do. Em busca das garantias perdidas. Organizadores: Aline Gostinski, Deivid Willian dos Prazeres. Capítulo 4. Um ensaio sobre a dramaturgia da delação nos sistemas punitivos contemporâneos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 45/46.

[6] NASCIMENTO, Carlos Valder do. Abuso do exercício do direito : responsabilidade pessoal. 2ª ed – São Paulo : Saraiva, 2015, p. 27

[7] Idem. p. 25

[8] AMARAL, Augusto Jobim do. Ibidem.

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