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A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor

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30/05/2004 às 00:00
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2 A TEORIA DA IMPREVISÃO

2.1 CONCEITO DA TEORIA DA IMPREVISÃO

A Teoria da Imprevisão é o que se chama de cláusula Rebus Sic Stantibus, podendo ser entendida como "estando as coisas assim" ou "enquanto as coisas estão assim". Buscando na origem, esta cláusula pronuncia-se rébus sik stántibus e deriva do trecho de uma glosa, atribuída a Nerácio: "Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur". Significando que os contratos que têm trato sucessivo ou dependência do futuro, entendem-se condicionados pela manutenção do atual estado das coisas.

A cláusula Rebus Sic Stantibus é de origem romana, do Direito Canônico, foi aceita e aplicada largamente na Idade Média, contexto no qual, praticamente, ressurgiu e se consolidou. Até a metade do século XX, entre nós, somente a doutrina a acolhia majoritariamente, embora já houvesse decisões que aceitavam tal cláusula. Tem-se por exemplo, em nosso país, a decisão pioneira de Nélson Hungria e do Supremo Tribunal Federal que, em 1938, a aceitou integramente.

O surgimento desta teoria, segundo o postulado de Julien Bonnecase, citado por Nelson Borges (2002, p. 71), é aptidão do direito natural, emanado da consciência do próprio homem que necessitava de princípios, que definissem a harmonia social na sua essência e indicasse os meios para alcança-la. Assim, nasceram as primeiras idéias sobre uma teoria que pudesse ser aplicada aos contratos e que visasse à manutenção dos mesmos dentro de certos aspectos de equilíbrio e boa-fé. Motivadas em princípios de direito já existentes como o da boa-fé, o do não-enriquecimento sem causa e o da eqüidade, aquelas idéias amadureceram e se somaram para criar a Teoria da Imprevisão como forma de manter o equilíbrio contratual e harmonizar as relações intersubjetivas.

Como é típico da Ciência jurídica, nada deve ser posto em termos tão absolutos, capazes de gerar a imutabilidade de qualquer ato. Assim, como reflexo de um fenômeno histórico-social, o Direito se coloca sujeito às variações e mutações no tempo e no espaço. Sob o prisma evolutivo a Teoria da Imprevisão se porta como exceção à cláusula pacta sunt servanda, expressão da força obrigatória dos contratos.

Face a essa tendência evolutiva do Direito, muitas vezes, a melhor solução para a inexecução contratual, por causa superveniente, não será a resolução pura e simples do pactuado. Destaca-se, desse modo, como solução a esta problemática a Teoria da Imprevisão, na qual a doutrina dominante sinaliza para a revisão contratual, como forma de manter e atingir um equilíbrio suportável entre os contratantes, conseqüentemente visando resguardar a função social do contrato.

Sob esse aspecto, o julgador se presta a um papel importante em seu postulado como agente do intervencionismo estatal e, no tocante ao espírito revisionista, deve manter o pactuado dentro da intangibilidade da livre manifestação da vontade da partes, se possível; mas sempre atendendo o equilíbrio contratual, as igualdades entre as partes e função social a que o contrato se propõe, buscando o bem comum.

Tais preceitos são postos com bastante propriedade por Cláudia Lima Marques [33]:

À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.

Conceitos tradicionais como os do negócio jurídicos e da autonomia da vontade permanecerão, mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de defesa do Consumidor. É uma nova concepção de contrato no Estado Social, em a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social. Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, como a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social.

Diante de tais considerações, faz-se necessário enfocar os estágios evolutivos percorridos pela Teoria da Imprevisão até a consolidação e a construção da atual realidade contratual, segundo os estudos de Nelson Borges [34]:

a) Para determinados estudiosos a cláusula rebus sic stantibus já nascia implícita nos contratos de execução continuada (contratos de duração sucessiva). O contrato deveria obedecer a mesma base fática ao tempo da contratação, bastando uma causa superveniente e imprevisível para ser resolvido.

b) Esta corrente, mais voltada sobre os aspectos de formação do contrato, dispunha que ninguém iria declarar sua vontade de se vincular a outrem sabendo que sofreria uma lesão.

c) Uma outra corrente, embasada no plano ético, fundamenta a Teoria da Imprevisão sob o aspecto Moral. Assim, dividiu-se em duas concepções: a primeira fundamentava-se na lesão superveniente e a segunda no abuso de direito. Deve-se mencionar que ambas convergiam para a boa-fé e o enriquecimento sem causa como fundamento para exonerar-se da obrigação contratual.

d) Esta ultima corrente, caracterizando-se como a mais aceita, dispunha que a aplicação da imprevisão estava embasada nos princípios de eqüidade. Seria um caso de exceção, onde havendo alguma causa superveniente que traga excessiva onerosidade ao contrato, capaz de desestabilizar o negócio, esse poderia ser revisto. O fundamento seria manter o equilíbrio contratual, conseqüência direta do princípio da boa-fé e do princípio ético-jurídico da eqüidade.

Diante dos diversos entendimentos dados pelos juristas da imprevisão, é de salutar importância observar que a liberdade contratual projeta-se no tempo e no espaço. Assim, caso não ocorra nenhum percalço entre o termo inicial e final de um contrato, esse deve ser cumprido fielmente, pois a regra geral que impera é a cláusula pacta sunt servanda. Ressalvando-se que, surgindo algum incidente contratual, o contrato deve ser revisto ou mesmo resolvido em nome da boa-fé e da eqüidade.

Isto posto, fica claro que a teoria da imprevisão é uma exceção dentro da regra de obrigatoriedade contratual, tornando relativo o absolutismo do pacta sunt servanda, pregado pelo liberalismo do século XIX. Deste modo, ocorrendo alguma causa superveniente ao contrato, capaz de gerar mudanças em sua base econômica, aplica-se a cláusula rebus sic stantibus.

A superveniência de causa deve ser reflexo da própria imprevisão, aplicando assim, a cláusula diretamente na base negocial pura e simplesmente afetada, ou diretamente nos efeitos anormais que incidirem sobre o contrato. Há de se considerar que a superveniência de causa não pode ser atribuída a uma das partes, seja por ato comissivo seja por ato omissivo. Quando se pretende valer desta teoria, tais preceitos podem ser auferidos dos art.150 e art.883 do Código Civil. [35]

Por fim, a Teoria da Imprevisão defini-se como um remédio jurídico destinado a sanar incidentes que venham alterar a base econômica, ou seja, a base negocial do contrato. Por isso, é aplicada excepcionalmente às situações extracontratuais que o atinja. Tanto o credor quanto o devedor podem servir-se deste remédio jurídico, desde que não estejam em mora, e ainda que tenha sobrevindo causa superveniente e imprevisível. Essa causa superveniente há de ser um fato extraordinário, capaz de alterar a própria base negocial do contrato; gerando, a uma das partes ou a ambas, uma dificuldade no cumprimento das prestações pactuadas. Deste modo, se o contrato fosse cumprido acarretaria uma lesão à parte adimplente.

Essa teoria se resume, em um incidente contratual, por isso aceitável como limitadora da força obrigatória dos contratos. Além do mais, permite a alteração do contrato sem ferir a autonomia da vontade, pois só atingirá o que não estiver adstrito ao ato volitivo, mas apenas aqueles atos sujeitos a imprevisibilidade.

2.2 ORIGEM E EVOLUÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO

Traçar a origem e o desenvolvimento histórico da Teoria da Imprevisão, não é tarefa fácil, para tal proeza deve-se reportar à história antiga, mais especificamente, à história da codificação.

Por muito tempo, tinha-se a convicção de que o Código de Hamurábi seria o mais antigo Código até hoje encontrado, no entanto, atualmente, sabe-se que o mais antigo é o Código de UR-Namu. Quanto ao momento histórico, principalmente em relação ao surgimento do Código de Hamurábi, há inúmeras divergências, alguns historiadores datam-no de 2.700aC, outros de 2000 aC. Mas o certo é que, até hoje, não são pacíficas estas datações.

Hamurábi, segundo os historiadores, foi o maior rei da Antigüidade e imperador da Mesopotâmia antiga, é uma das figuras mais eminentes da história universal, sendo o consolidador do Império Babilônico. Sua importância não foi apenas pelas conquistas grandiosas, mas também por reunir seus esforços na unificação da aplicação do direito e na sistematização da administração da justiça. Com seu esforço e determinação, conseguiu reunir em um só Código seus 282 preceitos, englobando uma diversidade de assuntos como matérias criminais, patrimoniais, familiares, sucessões, obrigações, salários, entre outras disciplinas. Tudo isso, aproximadamente 2.000 aC. Há quem diga que Hamurábi foi o rei que teve as idéias mais avançadas para sua época.

Tal retrocesso histórico não é despropositado, pois a Lei 48 do Código de Hammurabi, grafado em pedra, muito antes de nossa era, já trazia as primeiras manifestações sobre a imprevisibilidade. Dispunha aquela que:

Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano.

No início, aquele dispositivo foi registrado como caso fortuito e força maior e seria qualquer acontecimento ligado à natureza ou ao homem, previsíveis ou imprevisíveis que afetassem a contratação. Este período retratou, ainda que primitivamente, o surgimento da Teoria da Imprevisão, todavia, aquelas idéias de imprevisibilidade não se propagaram ao longo dos séculos de forma a influenciar outros ordenamentos jurídicos da época.

Só mais tarde, já no império romano, Ulpiano, jurista, nascido na cidade de Tiro, na Fenícia, por volta do ano 170 da Era Cristã, empenhou-se na busca de um princípio que estruturasse e proporcionasse segurança às contratações. Tecendo suas idéias chegou a concluir que a vontade manifestada no contrato deveria ser cumprida como "lei entre as partes". Dessa concepção, surgiu a primeira regra que se projetaria para o futuro sob a expressão pacta sunt servanda. [36]

O Direito Romano, apesar de não ter sido a origem da cláusula rebus sic stantibus, contribuiu com os primeiros germes para a formação desse princípio, tendo em vista os efeitos na mudança das circunstâncias presentes na contratação e ausentes na execução do contrato. Neste sentido, extrai-se dos escritos de três juristas: Cícero, Sêneca e Polybios, as primeiras referências à essência da cláusula rebus sic stantibus, semente da moderna teoria da imprevisão [37].

No entanto, durante quase 13 séculos de existência da civilização romana, pouquíssimos foram os escritos sobre os reajustes na execução contratual em razão de acontecimentos posteriores e anormais, que mudassem a base contratual e que causassem efetiva possibilidade de lesão aos contratantes. O princípio do rebus sic stantibus embora tivesse sido aplicado no Direito Romano, aparece naquele período de forma assimétrica.

O adormecimento ou mesmo a inércia das idéias de imprevisibilidade deveu-se exclusivamente ao Direito Romano, que era extremamente formalista, individualista e absolutista. Neste aspecto, quaisquer tentativas de abrandamento do princípio do pacta sunt servanda, raramente eram bem sucedidas, pois ali reinava, de forma absoluta, a premissa de que o contrato faz lei entre as partes.

Somente na Idade Média encontrar-se-ão as primeiras construções teóricas sobre a imprevisão. Impulsionados pelo fenômeno da "Recepção do Direito Romano", ocorrido no fim do século XI e princípios do XII, os glosadores, por determinação de Justiniano, estudaram o direito romano, culminando na identificação do Direito Canônico com Direito Romano determinantes da obra justiniana do "Corpus Iuris Civilis".

Apesar do direito comum, na Idade Média, ter sofrido influência do Direito Romano, se constituía pelo Direito Canônico e pelo Direito Feudal. Por força do cristianismo e o poder que a Igreja Católica exercia na época, o Direito Canônico ganhou sua importância principalmente a partir dos decretos de Gregório. Seus decretos não se limitaram a normas de natureza religiosa propriamente ou mesmo naquelas de condutas gerais, indo mais além e influenciando, por exemplo, a noção de boa-fé e da obrigação da palavra dada.

Assim, sob a autoridade moral exercida pelo Direito Canônico, dá-se o nascimento e a estruturação da cláusula rebus sic stantibus em meados do século XIII, tendo como protagonistas os filósofos católicos e os juristas canônicos que, através das decisões dos tribunais eclesiásticos, endossaram tal idéia. Segundo os canonistas, foi no Digesto do Corpus Iuruis que Neratius teria cunhado a celebre frase: "Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur" (Os contratos que têm trato sucessivo ou dependência do futuro entendem-se condicionados pela manutenção do atual estado das coisas). Sua essência e denominação clássica foram reduzidas na expressão: rebus sic stantibus.

Neste contexto histórico, observa-se que o auge da cláusula rebus sic stantibus se impõe no direito entres os séculos XIV e XVI, onde se verificam as ebulições doutrinárias sobre o tema. Até a metade do século XVIII, ainda havia constatações de suas influências e algumas aplicações a casos concretos, mesmo que esparsas. Entretanto, já no final do século XVIII e início do século XIX, a cláusula passa a sofrer franco declínio devido às conjunturas históricas e a política emergente, principalmente em virtude do controle político obtido pela burguesia em 1789, com a Revolução Francesa.

Conseqüência direta desse momento histórico foi a criação do Código de Napoleão de 1804, consagrando o princípio do pacta sunt servanda como forma de dar segurança às relações jurídicas contratuais. Baseado no liberalismo, este código foi implantado como resposta ao absolutismo estatal da Idade Média e as limitações impostas pela igreja católica. Traço marcante desse período, o liberalismo atingiu sua culminância no século XIX, fundado no espírito individualista, que criou a concepção tradicional do contrato, instituído na igualdade, na liberdade individual e no dogma da autonomia da vontade. Diante dessa rigidez contratual, conseqüência desse liberalismo exacerbado, aquele período foi palco de enormes injustiças, face às diferenças sociais e econômicas daquela sociedade.

Somente a partir dos fins do século XIX, é que a cláusula rebus sic stantibus vai apresentar sua real importância no campo jurídico e os tratadistas modernos a transformarão na atual Teoria da Imprevisão.

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O mundo que antes era estável, passa a sofrer brutais transformações sociais, econômicas e monetárias em virtude das grandes guerras e das inflações galopantes. A moeda que era estável já não gozava de tal prerrogativa. Essa conjuntura exigiu dos legisladores e julgadores mecanismos, que mantivessem os contratos e ao mesmo tempo não prejudicassem os interesses individuais e sociais.

Assim, passaram a existir nas diversas legislações, inclusive na legislação brasileira, mecanismos que possibilitassem o reajuste por vontade das partes ou por ato judicial, o equilíbrio contratual e a manutenção de sua função social. Sob este aspecto é introduzida a Teoria da Imprevisão em nossa legislação.

2.3 HARMONIA ENTRE OS PRINCÍPIOS "PACTA SUNT SERVANDA E REBUS SIC STANTIBUS"

Analisando o princípio pacta sunt servanda e a cláusula rebus sic stantibus, pode-se dizer que, até bem pouco tempo, traçaram caminhos antagônicos no decorrer da história. Reportando a esses registros históricos; constata-se que, do início da Era Cristã até meados do século XIII, predominava a imutabilidade do contrato, uma vez que naquele período feudal o simbolismo e o formalismo imperavam.

Posteriormente, já no final do século XIII e início do século XIX, a cláusula rebus sic stantibus passa a exercer um papel relevante e, então, começam as ebulições doutrinárias ao seu redor, direcionando a matéria para se tornar um verdadeiro princípio científico. Todavia, em pleno século XIX a cláusula entre em flagrante declínio, principalmente em decorrência do Código de Napoleão, característica da ascensão burguesa, que consagrou o princípio pacta sunt servanda.

Como se vê, até então, os dois princípios sempre percorreram caminhos opostos. Mas é no início do século XX, em decorrência das grandes transformações, tanto no campo econômico quanto no social, que levaram os dois princípios a um mesmo destino, objetivando o mesmo fim.

Assim, em face dessas turbulências econômicas e sociais, agravado pelo absolutismo da obrigatoriedade contratual, é que o rebus sic stantibus ressurge, sofrendo as influências externas da sociedade: a religião, a ética e o sentimento de justiça social. Tudo isso, sustentado na moral, na boa-fé, na eqüidade e no equilíbrio das prestações.

Prosseguindo a análise, o que se queria era uma postura mais ativa do Estado, visando assegurar um equilíbrio nas relações interpessoais e à solução dos problemas sociais. No campo do contratualismo, o que antes se pregava como igualdade e liberdade contratual, transformava-se em instrumento de vinculação, dominação e opressão. Dai o anseio social e a missão para o Direito mudar o estado das coisas e passar a intervir e disciplinar a liberdade contratual.

Analisando o encontro daqueles dois princípios, antagônicos – de um lado, a exigência de respeito absoluto aos pactos regularmente celebrados e, do outro, a atenuação do rigor excessivo da obrigação contratual, e valendo-se, para tanto, da boa-fé, da eqüidade, da moral e de outros fundamentos, René Savatier explicou que o quadro apresentava duas forças poderosas, originárias da mesma fonte. Uma tentava se firmar, economicamente, em espaço do mundo fático, no campo obrigacional; e a outra buscava seu lugar, em nome da justiça, apenas como regra de exceção quando impossível a conformação à regra geral de respeito à palavra empenhada. Enquanto a primeira se ligava indissoluvelmente à idéia de segurança jurídica, a segunda, conservando e revigorando a mesma idéia, procurava se manter no contexto social baseada na eqüidade, entre outros suportes (Borges, Nelson, 2002, p. 134).

Tanto é assim que, apesar do princípio da força obrigatória procurar resguardar a autonomia da vontade, da liberdade de contratar e a segurança jurídica nos contratos, o rebus sic stantibus vem proteger o bem comum, o equilíbrio contratual, a igualdade fática entre as partes e principalmente ter a certeza de que os interesses particulares não irão prevalecer sobre o social. De certo modo, a obrigatoriedade contratual nunca foi e nem pode ser entendida em termos tão absolutos como já foi posto, afinal o contrato sempre esteve adstrito à legalidade para que pudesse existir e surtir efeitos no mundo jurídico. Nesse aspecto, coexistem em nosso ordenamento jurídico, tanto o princípio da obrigatoriedade quanto o da boa-fé, da eqüidade, da igualdade e, principalmente, o da legalidade, os quais se integram aos Princípios Gerais do Direito para formar um sistema harmônico.

Ao contrario do que pregavam os anti-revisionistas, adeptos do absolutismo do pacta sunt servanda, os dois institutos, sobre a égide da moderna Teoria da Imprevisão, passam a coexistir e se completar num todo harmônico em busca de um mesmo fim, que é o equilíbrio e a manutenção dos contratos. Certamente os não-revisionistas estavam totalmente desprovidos de bom senso, pois ainda detinham uma concepção de que essa teoria seria aplicada em caráter geral, prejudicando totalmente a segurança contratual e favorecendo a inadimplência nos contratos. Tal concepção não é pertinente, pois a Teoria da Imprevisão é uma incidental nos contratos, só sendo aplicada em caráter de exceção — naqueles casos em que haja mudança na base negocial do contrato, imprevisível ao tempo da contratação.

O que se quis com a Teoria da Imprevisão, não foi o rompimento com a obrigatoriedade contratual, mas sim dar uma nova remodelagem a esse princípio, em que o contrato é condicionado ao estado fático ao tempo da contratação. De modo que, ocorrendo um evento imprevisível, não se poderá exigir o cumprimento do contrato puro e simplesmente, pois houve uma modificação na situação fática em que se deu a vinculação das partes.

Sobre essa situação fática do contrato não se pode omitir a brilhante exposição do jurista platino Carlos Cossio, citado por Nelson Borges (2002, p.143), referindo-se ao pacta sunt servanda e a Teoria da Imprevisão:

Aquelas cláusulas como significadoras da linguagem cada uma nega a outra, dando a impressão de que se anulam ao conjugar-se, de maneira que se complementam e se compenetram porque nenhuma pode existir sem a outra, enquanto que todo contrato esta ontologicamente sempre em uma situação. Somente o fato impossível de existência de um contrato fora de toda situação permitiria dissociar aquelas cláusulas. Porém a estrutura da vida humana é situacional e por isso todo contrato está necessariamente sempre em uma situação. Por isso ambas as cláusulas são forçosamente paralelas e inseparáveis, uma como referencial ao contrato em situação e a outra como referência à situação do contrato.

Assim sendo, pode-se concluir que, estando o contrato em uma situação, (dentro do mesmo estado fático da contratação) este deve ser respeitado e cumprido, obedecendo a regra geral do pacta sunt servanda. Mas, se a situação do contrato tiver sido alterada por acontecimento imprevisível (situação fática ao tempo da execução do contrato) aplicasse a exceção da cláusula rebus sic stantibus.

2.4 O CASO FORTUITO /FORÇA MAIOR E A IMPREVISÃO

No campo do contratualismo, apesar de prevalecer a regra geral da obrigatoriedade do cumprimento das prestações pactuadas, há exceções: como o caso fortuito/força maior e a imprevisibilidade (Teoria da Imprevisão). Estabelecer uma correlação entre os dois institutos, não é mera pretensão, mas uma necessidade que se impõe à matéria discutida, eis que ambos têm campos distintos de aplicação.

O caso fortuito e a força maior, por sua vez, são evidenciados por acontecimentos que ultrapassam as forças humanas, onde não se torna possível evitar ou mesmo impedir a ocorrência do fato danoso. Nosso ordenamento jurídico, no entanto, não se preocupou em distinguir o caso fortuito e a força maior, tão pouco se preocupou em conceituá-los uma vez que suas conseqüências na esfera jurídica são as mesmas, como dispõe o art.393 do Código Civil. [38].

Sob esse aspecto, coube à doutrina, o trabalho árduo de defini-los, chegando alguns autores a afirmar que são expressões sinônimas e outros a defender que há distinção, surgindo assim duas correntes: a subjetiva e a objetiva, a fim de diferenciá-los. Não obstante à divergência, de forma simples e objetiva, Washington de Barros [39] define a força maior como sendo os eventos físicos ou naturais, de índole ininteligente, citando como exemplos a chuva de granizo, os raios e as inundações. Já o caso fortuito seria aqueles acontecimentos causados por eventos alheios à vontade do devedor, gerador de obstáculo insuperável em diligência comum, por exemplo, greves, motim e guerras.

Nesse sentido, Arnoldo Medeiros da Fonseca [40], concluiu citando os ensaios de Demolombe, que "a força maior exprimiria a idéia de um acidente da natureza", enquanto que "o caso fortuito indicaria a idéia de um fato do homem". Ainda, considerou que o sentido das expressões era precisamente o oposto: força maior refere-se à ação de forças ininteligentes; ao passo que a caso fortuito designaria o fato de terceiros, citando respectivamente como exemplos as guerras, as violências etc; e as inundações, os raios etc.

Como a regra nos contratos é o cumprimento, há casos resultantes de fatos que impossibilitam a execução dos mesmos. Essa inexecução, por sua vez, como acrescenta Orlando Gomes [41], pode ser voluntária ou involuntária. A inexecução voluntária refere-se ao não cumprimento do contrato por vontade imputável à própria parte a quem caberia a prestação. Por ser ato faltoso, contrário à fé jurada e ao princípio da confiança, a culpa é atribuída ao devedor, que se responsabiliza civilmente pelas perdas e danos causados a parte contrária [42].

Por sua vez, a inexecução involuntária, não tem caráter volitivo. O devedor mesmo que queira cumprir o contrato, estará impossibilitado. Nesse caso a parte estará excluída de qualquer responsabilidade e a contrato se resolve automaticamente. Essa inexecução decorre de uma impossibilidade superveniente à contratação, em decorrência de acontecimento extraordinário proveniente do caso fortuito e da força maior, cujos efeitos não se podia resistir ou mesmo evitar.

Ressalta-se, no entanto, que essa impossibilidade deve ser conhecida de forma objetiva e que necessariamente decorra do caso fortuito e força maior. Por exemplo, uma pessoa que tem um determinado compromisso em determinado horário em outra cidade e o avião atrasou, impossibilitando a realização do negócio, não poderá utilizar dessa justificativa. Nesse caso, não haveria caso fortuito e força maior, pois a pessoa tinha a alternativa de pegar outro avião mais cedo e chegar no horário. Desse modo, a impossibilidade objetiva aqui se refere à não concorrência do devedor para tornar a prestação impossível. E ainda, essa impossibilidade deve ser definitiva e total, pois se temporária, em se tratando de prestação continuada, as partes podem interessar na continuidade da contratação depois de determinado lapso temporal, ou mesmo dar continuidade ao contrato no estado em que se encontre.

Outras características dessa inexecução seriam a superveniência, a inevitabilidade e a irresistibilidade do fato danoso. A superveniência se caracteriza pela ocorrência de evento precedente à execução do contrato, gerando causa impeditiva de seu cumprimento. Por fim, o evento deve ser inevitável e irresistível, no sentido de se tornar impossível sua obstaculação, seja ele natural seja ele humano e ao mesmo tempo imponível por qualquer empenho ou diligência comum.

Diante do exposto, verifica-se que um dos fatores determinantes da resolução do contrato e sua conseqüente inexecução seria a impossibilidade superveniente, objetiva, total e definitiva, decorrente de evento inevitável e irresistível. Assim, torna-se pacífica a regra de exclusão da responsabilidade do devedor pelos prejuízos resultantes do caso fortuito e da força maior. Ressalta-se ainda que tal preceito não se aplica ao devedor em mora, como determina a inteligência do art.395 do Código Civil. O efeito da resolução do contrato, por conseguinte, é retroativo à data da contratação.

Sob esta ótica, ensina o Prof. Orlando Gomes [43] que:

A resolução do contrato pela extinção da obrigação por força maior, ou caso fortuito, tem conseqüências que não podem ser ignoradas. Se o contrato é unilateral, quem suporta o risco é o credor-res perit creditori. Uma vez que a prestação não pode ser satisfeita, a parte que deveria recebê-la se vê privada do proveito que esperava do contrato. Mas, se o contrato é bilateral, a interdependência das obrigações complica o problema. A regra dominante é a de que a exoneração de uma parte acarreta a da outra. Extingue-se a prestação de quem deixou de cumprir, mas fica impossibilitado de exigir a contraprestação, já que a obrigação perde a sua causa, rompendo-se, em verdade, o vínculo de conexão entre as obrigações. Se a prestação da outra parte já foi cumprida, a parte liberada é obrigada a restituir o que recebeu, pois, do contrário, haveria enriquecimento sem causa. O pagamento seria indébito, pelo que a lei autoriza a repetição. Resolvido, pois, o contrato, as partes voltam à situação anterior à sua celebração.

Outro caso de exceção ao princípio da obrigatoriedade contratual seria a imprevisibilidade. Neste sentido, a Teoria da Imprevisão se impõe como remédio jurídico destinado a sanar as anomalias decorrentes de eventos imprevisíveis e extraordinários, que venham atingir a base negocial do contrato.

A questão da imprevisão está ligada a superveniência de acontecimentos inesperados, não passível de previsão, que, na esfera contratual, podem acarretar uma onerosidade excessiva da prestação prometida. Neste sentido, uma inovação do nosso Código Civil (lei nº10.406/2002), foi a regulamentação deste instituto no art.478. A inteligência deste dispositivo é bastante objetiva ao prever como causa de resolução dos contratos de execução diferida, continuada ou periódica, a excessiva onerosidade que, em virtude de acontecimento extraordinário e imprevisível, sobrevenha dificuldade extrema ao cumprimento da obrigação por um dos contratantes. Neste caso, operar-se-á a revisão ou mesmo a resolução contratual, em decorrência da excessiva onerosidade, conseqüência direta de "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis".

A onerosidade excessiva da prestação cria um obstáculo ao cumprimento da obrigação por extrema dificuldade a uma das partes. Não se tratando, naturalmente, de uma inexecução por impossibilidade, mas apenas por uma onerosidade excessiva. Vale salientar que é necessário que seja excessiva a diferença do valor do objeto da prestação entre o momento de sua contratação e de sua execução, o que a torna apta a causar a uma das partes uma extrema dificuldade ao cumprimento da obrigação. Essa dificuldade não deve atingir apenas o devedor, mas toda e qualquer pessoa que vier a figurar no pólo passivo da obrigação. Como se vê, a prestação da obrigação contratual torna-se notadamente mais gravosa ao tempo da execução do que na contratação.

Outro aspecto que se refere à imprevisão ou Teoria da Imprevisão é que a onerosidade excessiva decorra de evento extraordinário e imprevisível, capaz de alterar radicalmente a base negocial do contrato. Essa base negocial nada mais é do que as condições econômicas sob as quais foi celebrado o contrato. De modo que o acontecimento deve ser extraordinário, ou seja, anormal e imprevisível ao tempo da contratação.

A imprevisibilidade, vale mencionar, refere-se à impossibilidade das partes, no momento da celebração do contrato, de prever a ocorrência de eventos anormais (extraordinários), que poderiam atingir a base negocial do contrato. Do contrário, se o evento fosse previsível, dentro de condições razoáveis da imaginação e da inteligência humana, não se resolveria o contrato pelo instituto da imprevisão.

Por outro lado, verificando-se os requisitos da excessiva onerosidade, do acontecimento imprevisível e extraordinário, só se aplica a rescisão contratual aos contratos comutativos de execução continuada ou periódica.

Finalmente, pode-se afirmar que a onerosidade excessiva é causa de resolução ou mesmo de revisão contratual, determinante de uma inexecução involuntária relativa ou absoluta. Se a inexecução for absoluta aplicar-se-á a resolução do contrato; do contrário, sendo relativa e nesse caso havendo possibilidade de dar continuidade ao contrato, dentro de certas limitações, operar-se-á a revisão contratual. No entanto, deverá ser pleiteada a resolução ou a revisão contratual, antes mesmo do prazo estipulado para o cumprimento da obrigação, pois se o devedor não a fizer, essa se constituirá em mora.

A resolução ou mesmo a revisão contratual, neste caso, só se dará por intervenção judicial, pois somente o juiz é quem decide se há onerosidade excessiva, bem como o nexo causal entre o acontecimento extraordinário e imprevisível e a excessiva onerosidade. O próprio art.478 do Código Civil, evidencia na ultima parte, a necessidade de uma sentença. Assim, a sentença judicial que resolver o contrato tem efeito retroativo à data da citação válida e não há ensejo de perdas e danos, pois o devedor se exonerou da obrigação por se tornar "excessivamente oneroso" o seu cumprimento.

2.5 NATUREZA JURÍDICA DA TEORIA DA IMPREVISÃO

Criada pelos canonistas e pós-glosadores, a Teoria da Imprevisão se impõe no direito entre os séculos XIV e XIII, propagando-se até o final do século XVIII. Nesse período se constatam as principais criações doutrinárias sobre o assunto, passando essa teoria a ser aplicada pelos tribunais eclesiásticos e aceita pelo direito comum. Entretanto, como foi salientado neste trabalho, esta teoria entra em franco declínio já no final do século XVIII e início do século XIX.

Prosseguindo a análise, frente à necessidade de autorizar a intervenção judicial nos contratos cuja contraprestação fora alterada por eventos externos, alheios à vontade das partes e de proporcionar um equilíbrio contratual, trouxe à baila diversas doutrinas que pretendiam justificar a Teoria da Imprevisão. Dentre essas diversidades encontram-se diferentes fundamentos àquela teoria, mas deve-se ressaltar que todos eles têm como fator basilar princípios éticos e ético-jurídicos no tocante à vontade contratual.

Um dos primeiros expoentes neste campo foi Bártolo que, apoiado na vontade das partes, em meados do século XIII, considerou que qualquer pacto que tivesse dependência do futuro, a teoria da imprevisão estaria inserida tacitamente na vontade contratual manifestada. De modo que todos as vezes que ocorressem eventos imprevisíveis os quais gerassem uma excessiva onerosidade à prestação obrigacional, o contrato estaria resolvido. Argumentava ainda que se as partes contratantes tivessem conhecimento prévio das alterações contratuais ao tempo da contratação, não teria fechado o negócio. No entanto, essa doutrina não apresentou um processo técno-jurídico capaz de justificar, de forma satisfativa e adequada, a revisão contratual.

Outra justificativa para imprevisão é a teoria da pressuposição de Windischeid, expressão da Escola dos Pandectistas. Segundo essa teoria o contratante, ao manifestar sua vontade, pressupõe determinada condição e, se tal condição não ocorrer, o efeito jurídico não corresponderia à vontade, portanto o contrato seria anulável. Estas concepções influenciaram bastante a formação moderna da teoria da imprevisão, mas foi bastante criticada sob o argumento de que afetaria a segurança jurídica das contratações.

Assim, fazendo referência à doutrina de Bártolo, considerou-se que na ocorrência de fatores anormais e imprevisíveis incidentes ao contrato, capazes de torná-lo excessivamente oneroso, este poderia ser revisto ou mesmo resolvido. Quem manifesta sua vontade sob determinada situação ou circunstâncias deseja que o efeito jurídico decorrente daquela relação venha a existir e a permanecer, à semelhança de quem emite uma vontade condicionada. A vontade estaria condicionada às circunstâncias e às situações em que foram emitidas as vontades dos contratantes ao tempo da celebração do contrato. Esta teoria em termos gerais é muito mais abrangente do que a teoria da imprevisão, pois, para Windscheid, a vontade estaria condicionada a qualquer ato jurídico, não apenas ao contrato.

Merece destaque ainda, a teoria da vontade marginal de Giuseppe Osti, segundo o qual, as manifestações de vontade nos contratos estavam divididas em dois tempos. O primeiro tempo seria a vontade contratual, a vontade no ato da celebração e o segundo seria a vontade marginal, ocorrida ao tempo da execução do contrato. Assim, caso ocorresse uma modificação na situação do contrato sob a qual foi emitida a primeira vontade, esse estaria suspenso por força da vontade marginal. A vontade marginal seria aquela estranha à vontade emitida na celebração do contrato.

Uma nova concepção foi posta por Paul Oertmann, tendo como fundamento a base do negócio jurídico. Segundo ele, a base do negócio seria a base sobre a qual os contratantes emitiram suas vontades. De modo que, qualquer modificação nesta base negocial poderia ensejar na resolução contratual. O fundamento desta teoria estaria no equilíbrio das prestações pactuadas entre os contratantes.

Várias foram as doutrinas, que tentavam fundamentar a teoria da imprevisão, pode-se citar além dessas, outras como a teoria do erro de Giovene, a teoria da boa-fé de Naquet, entre tantas que, de alguma forma, deixaram suas contribuições.

Prosseguindo a fundamentação jurídica da Teoria da Imprevisão, esta não pode ser encontrada em uma única teoria, ou mesmo ser justificada apenas através do positivismo jurídico. Como se pôde observar ao longo deste trabalho a teoria da imprevisão é fruto de um fenômeno histórico-cultural surgido do anseio social por um mecanismo, que proporcionasse dentro de determinadas condições o equilíbrio e a boa-fé nas relações contratuais. Com efeito, coube ao Direito disciplinar tal idéia e criar os meios de aplicação ao caso concreto.

Dessa forma, a teoria da imprevisão tem natureza incidental nas relações contratuais, fundamentada no equilíbrio das prestações, na manutenção da base negocial sobre a qual foi emitida a vontade de contratar. Independente desta fundamentação, ainda estão presentes os requisitos de eqüidade, boa-fé, moralidade, confiança e do não-enriquecimento sem causa de uma parte em detrimento da outra. Tais requisitos são fatores basilares e indispensáveis a qualquer estrutura jurídica que se insere no campo do Direito.

No tocante à natureza incidental, a teria da imprevisão é pressuposto da revisão contratual. De modo que, uma vez exercida a liberdade de contratar e emitida a vontade sobre determinada base negocial, as partes se vinculam a esta situação contratual. Porém, se porventura ocorre algum acontecimento imprevisível, capaz de tornar a prestação excessivamente onerosa, afetando a base negocial sobre a qual se deu a contratação, este contrato poderá ser revisto ou mesmo resolvido.

2.6 CAMPO DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO

Quanto ao campo de aplicação da teoria da imprevisão, em regra geral, esta é aplicável a todos os contratos que tenham execução diferida, ou seja, futura. Assim, para melhor entendimento, faz-se necessário uma análise de alguns tipos de contratos, tais como os contratos unilaterais, os bilaterais e os aleatórios.

2.6.1 Os contratos unilaterais

Os contratos unilaterais "são aqueles em que só uma das partes se obriga em face da outra; mercê deles, um dos contratantes é exclusivamente credor, enquanto o outro é exclusivamente devedor". [44] A principal característica deste tipo de contrato é que o dever jurídico somente recai sobre uma das partes. Exemplos típicos de contratos unilaterais são: depósito, mútuo, mandato, comodato e doação.

Voltando à teoria da imprevisão, segundo alguns doutrinadores, só poderia ser aplicada aos contratos bilaterais. Vistos que um evento imprevisível afetaria a comutatividade das prestações das partes e, assim, possibilitando a revisão contratual. Por não existir, nos contratos unilaterais, essa comutatividade, esses estariam de fora.

No entanto, sondando a essência da imprevisão, mais especificamente na célebre frase de Neratius: "Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur" (Os contratos que têm trato sucessivo ou dependência do futuro entendem-se condicionados pela manutenção do atual estado das coisas), percebe-se que não foi feita nenhuma distinção entre os contratos unilaterais ou bilaterais. Apenas definiu-se como campo de aplicação os "contratos de trato sucessivo ou de dependência do futuro".

Assim, é perfeitamente possível a aplicação da teoria da imprevisão nos contratos unilaterais. Indo mais além, nesse tipo de contrato, a teoria da imprevisão poderia ser argüida tanto pelo credor quanto pelo devedor. A utilização desta prerrogativa pelo devedor é fácil de se compreender, já que o mesmo figura no pólo passivo da obrigação e suporta os encargos da prestação. Sob este aspecto qualquer mudança da base negocial do contrato, decorrente de fato imprevisível, seria capaz de tornar a prestação ainda mais onerosa ao devedor.

No tocante ao credor, não é pacifico entre alguns doutrinadores, a possibilidade do mesmo se valer da teoria da imprevisão. Nos contratos unilaterais pode haver casos de depreciação do valor da prestação devida ao credor, advindo de eventos imprevisíveis, causando a este uma diminuição no seu patrimônio e uma vantagem ao devedor, que terá esforço reduzido no cumprimento da obrigação. Vale ressaltar o disposto por Nelson Borges [45] sobre o assunto:

Quando o beneficiado é o devedor todos os autores admitem o uso da imprevisibilidade, assentados na excessiva onerosidade da prestação. Ora, admiti-la em contratos unilaterais somente em benefício do devedor é postura que se reveste de odiosa discriminação, sem qualquer juridicidade. Aceitar que o beneficiário receba a prestação aviltada ou que deva "contentar-se com ela diminuída (...) uma vez que nada paga", ou, ainda, "não receber tudo aquilo que se esperava receber (...) porque (...) isto parece melhor do que nada", como raciocinaram os juristas lusitanos (Vaz Serra e Rocha de Gouveia), é usar dois pesos e duas medidas para aferir o mesmo valor – o que para o Direito é inadmissível.

Diante do exposto, pode-se afirmar que é aplicável a teoria da imprevisão nos contratos unilaterais. Podendo ser argüida tanto pelo devedor, quanto pelo credor, desde que amparados pelos pressupostos do acontecimento imprevisível e na mudança na base negocial do contrato, bem como na possibilidade de lesão às partes em caso de cumprimento da obrigação, para a revisão ou mesmo a resolução contratual.

2.6.2 Os contratos bilaterais

Os contratos bilaterais são aqueles que "criam deveres jurídicos para ambos os contratantes". [46] Esse tipo de contrato também é chamado de sinalagmático por existir uma reciprocidade entre as obrigações contratadas. Assim, os contratos bilaterais são campos férteis para a aplicação da teoria da imprevisão, haja vista que dentro dessa reciprocidade de obrigações, existe uma certa comutatividade de prestações. Exemplo são os contratos de locação, compra e venda etc.

A teoria da imprevisão deve adequar-se a esse tipo de contrato, justamente pela existência de obrigações recíprocas das interdependentes. Desse modo, ocorrendo algum acontecimento imprevisível capaz de alterar a base econômica sob a qual o pacto foi celebrado e ainda sobrevindo a possibilidade de lesão (lesão virtual) a uma das partes, o contrato poderá ser revisto ou resolvido, invocando a teoria da imprevisão.

Como se vê, a possibilidade de aplicação do instituto da imprevisão nos contratos bilaterais é mais evidente do que nos contratos unilaterais, pois aqui, a potencialidade de lesão é perceptível quando há um desequilíbrio entre a reciprocidade das prestações pactuadas. Até mesmo, por ser a finalidade da teoria da imprevisão tentar restabelecer o equilíbrio contratual e a comutatividade de prestações. A aplicação dessa teoria se torna evidente nos contratos bilaterais.

2.6.3 Os contratos aleatórios

Para melhor compreensão do que seja os contratos aleatórios, deve-se buscar na melhor doutrina a sua definição, assim, segundo Washington de Barros Monteiro: [47]

É aleatório o contrato em que as prestações de uma ou de ambas as partes são incertas, porque sua qualidade ou extensão está na dependência de um fato futuro e imprevisível (alea) e pode redundar numa perda, em vez de lucro. Exemplos, o contrato de seguro, a constituição de renda, a emptio apei, a emptio rei aperatae, o jogo e a aposta.

A característica desse tipo de contrato é já nascer fadado pela incerteza e pela indeterminação de receber as prestações pactuadas ao tempo do vencimento. No entanto, deve ser ressaltado que todo contrato, de certa forma, possui uma aleatoriedade normal, ou seja, os contratos estão sujeitos a acontecimentos estranhos à contratação, ao longo de sua duração. Contudo, tais acontecimentos são considerados normais, passiveis de previsão e que não afetariam a base negocial do contrato.

Por outro lado, existem os contratos aleatórios propriamente ditos, ou seja, estão sujeitos à dependência de fatores incertos, favoráveis ou não a um determinado evento. Esses fatores identificam-se como extraordinários e imprevisíveis, que podem atingir a base do negócio jurídico. Neste tipo de contrato, onde se pode identificar previsão da aleatoriedade, melhor dizendo, a possibilidade da ocorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis, não há que se falar na não-aplicação da teoria da imprevisão.

A teoria da imprevisão só tem cabimento nos contratos onde, por fatores imprevisíveis e extraordinários, venha alterar a base contratual em relação ao tempo da contratação. Já nos contratos aleatórios, até mesmo por sua característica de incerteza, não se aplica a teoria da imprevisão, pois sua base negocial já nasce impregnada de dúvida, eventualidade e incerteza quanto às prestações contratuais. Os contratantes, por sua vez, têm a consciência da possibilidade da ocorrência de fatos imprevisíveis e extraordinários ao tempo da contratação.

Dando prosseguimento à análise, há contratos que possuem uma aleatoriedade relativa, como menciona Arnoldo Wald [48] uma parcela das prestações depende de condição. Continua o referido autor, dispondo que "tais contratos se regulam pelos princípios gerais dos contratos comutativos quando o princípio básico do negócio é a equivalência das prestações". Assim, de modo peculiar, se admite a esses contratos aleatórios a teoria da imprevisão.

Sobre tal admissibilidade da teoria da imprevisão nos contratos relativamente aleatórios, determina Nelson Borges, com bastante propriedade:

A teoria da imprevisão sempre será aplicável aos pactos aleatórios desde que o evento alterador da base contratual não se relacione com sua álea específica de incertezas Se àquela álea estiver ligado, seu emprego estará afastado (Nelson Borges, 2002, p. 716).

Como se vê, somente se aplica a teoria da imprevisão nas prestações onde esta afastada a aleatoriedade quanto à ocorrência dos fatos previstos na contratação.

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Sobre o autor
Francisco Serrano Martins

pós-graduando em Direito Civil pela PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Francisco Serrano. A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 327, 30 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5240. Acesso em: 28 mar. 2024.

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