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O militarismo nas instituições policiais e a crise da segurança pública brasileira

05/10/2016 às 08:18
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Demonstra-se a viabilidade da desmilitarização das instituições policiais por uma concepção não estritamente jurídica, todavia, filosófica e sociológica pautadas na vigilância hierárquica de Michel Foucault.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como premissa apresentar o modelo de segurança pública atual, estritamente as instituições militares. Busca-se apresentar o tratamento diferenciado que o militar possui nos mais variados instrumentos normativos brasileiros. Ainda, busca-se apresentar a solicitação da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em 2012, para que o Brasil suprimisse as policiais militares dos Estados.

Inicialmente, é importante apresentar a seguinte frase célebre de Rui Barbosa: “O militarismo é para o Exército como o fanatismo é para a religião.” A referida frase foi retomada pelo autor da obra “Militarismo: um Sistema Arcaico de Segurança Pública,” escrita pelo Soldado da Polícia Militar do Ceará (PMCE), Darlan Menezes Abrantes, que fora expulso da corporação após a publicação da referida obra.

Em 2012, o Brasil foi palco de discussão referente à desmilitarização das Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal. Constantemente, há aqueles que insurgem contra a sistema militarizado de segurança pública em nosso país. Preconiza a Constituição Federal no artigo 42, que os membros das Polícias e Corpo de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, Distrito Federal e dos Territórios.

Todavia, no que tange especialmente as Polícias Militares dos Estados, desde a edição da proposta de emenda à Constituição nº 21/2005 (já arquivada), movimenta-se o Congresso Nacional, na tentativa de desmilitarizar as forças policiais. Logo, fora editada a PEC nº 51/2013, que visa à reestruturação do modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policial existente.

Assim, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), pediu ao Brasil maiores esforços para combater a violência policial, portanto, solicitou a supressão da Polícia Militar dos Estados, fundamentando-se no grande número execuções extrajudiciais. A prática da tortura, infelizmente, ainda persiste na realidade brasileira, encontra-se no âmago das instituições militares, transmudando-se como prática delituosa rotineira, desde a época da ditadura militar brasileira. Deve ser extirpada do contexto policial brasileiro.  

Todavia, o presente artigo não tem o condão de realizar críticas arrazoadas aos militares em geral, visa demonstrar que o militar também é vítima do próprio sistema disciplinador e hierarquizado, com atos desmedidos, que, por conseguinte, afetam substancialmente à consecução dos objetivos da segurança pública.   

O militar recebe um árduo e rígido treinamento na caserna. Trata-se de um rigoroso controle interno, permeado pelos princípios da hierarquia e disciplina, com nítido viés Foucaultiano. A Constituição Federal permitiu a prisão administrativa do militar, e expressamente, a Carta Magna retirou do militar a possibilidade de impetração de habeas corpus em relação a punições disciplinares militares (art.142,§2º, CRFB/88).

Ainda, a administração militar edita rotineiramente normas infralegais (memorandos, resoluções, portarias,etc.), que se pauta pelo primado do controle de pequenas ações, tais como, não ter o militar feito corretamente a barba ou quando o coturno não fora devidamente engraxado, e, por conseguinte, a não observância destes preceitos ensejam em prisões administrativas em vários Estados da Federação ou em punições disciplinares diversas da prisão. 

O militar ainda é submetido ao rigoroso Código Penal Militar, Decreto-Lei 1.001 de 1969, com penas em muitos casos superiores ao Código Penal comum, outorgado em plena vigência do Ato Institucional nº 5, no governo do Presidente Artur da Costa e Silva. Salienta-se que o Código Penal Militar, foi objeto de poucas alterações do texto original, não acompanhou, portanto, as alterações ocorridas no Código Penal. No mencionado código militar ainda persiste a previsão dos delitos de atentado violento ao pudor (art.233) e presunção de violência nos delitos sexuais (art.236). Ainda, no art. 290 do mencionado Decreto-Lei prevê o delito de tráfico, posse ou uso de entorpecentes, com a mesma pena base (reclusão de até cinco anos), que sem dúvida afeta o principio da proporcionalidade das penas.

Curiosamente, o Supremo Tribunal Federal (STF), não se manifesta acerca da inconstitucionalidade de inumeros dispositivos do Código Penal Militar. 

Finalmente, a jurisprudência militar em muitos casos não incide a aplicação de princípios penais, tal como o princípio da insignificância e ainda se pauta em flexibilizar os direitos e garantias fundamentais dos militares, sob o infimo argumento de se tratar de justiça especializada, e por conseguinte, possuir institutos penais próprios.

O garantismo penal, bem apresentado por Luigi Ferrajoli, passa longe dos tribunais militares.  


2. A  SEGURANÇA PÚBLICA E A CASERNA: UMA VISÃO FOUCAULTIANA 

Assim, a própria natureza militar não coaduna com o modelo de segurança pública, que trata-se de um problema latente e que assola toda a sociedade brasileira. O modelo antidemocrático que permeia as instituições militares deve ser revisto, pois, o policial não está para a guerra, todavia, está inserido em uma nova ordem constitucional de um Estado Democrático de Direito, com direitos e garantias fundamentais. Infere-se que tal sistema é um mal essencial à sociedade e aos militares em todos os níveis. 

A titulo de exemplo, existe um crime militar próprio tipificado no artigo 266 do CPM, que consiste na publicação ou crítica indevida de ato de superior ou qualquer resolução do Governo. Um major da Polícia Militar do Rio de Janeiro, criticou publicamente nas redes sociais ato de governo do então governador Sergio Cabral, e fora condenado pelo delito mencionado. Assim, percebe-se que ao militar não é conferido o direito constituicional de se expressar livremente.   

Superada a problemática anterior, será apresentada à viabilidade da desmilitarização das instituições policiais em geral, a partir de uma análise não estritamente jurídica, todavia, filosófica e sociológica. Busca-se apresentar a inferência das instituições militares na segurança pública, pois, há uma contradição dual latente, ou seja, instituições militares antidemocráticas com instrumentos normativos arcaicos e abusivos para com os militares, que servem uma sociedade democrática que aspira à consolidação dos direitos humanos, pós Constituição de 1988.

Nesta senda, percebe-se que durante o curso de formação policial, o novo integrante da instituição militar passa-se por uma formação “moral”, quando efetivamente começa a sua vida na caserna. Durante este período, são retirados destes o tão aspirado e ainda não inteiramente concebido direitos humanos. Teleologicamente, se busca com esta supressão, recrudescer a “pessoa civil” daquele indivíduo para torná-lo um ser essencialmente militar, em cenário abstrato de guerra.

O mencionado treinamento beira à inconsequência humana, pautados por torturas psicológicas, situações de estresse físico com lesões, humilhações das mais variadas, utilização de termos vexatórios e humilhantes a condição física do indivíduo militar e outras torpezas, que segundo os mentores do curso, possui a finalidade de preparar o militar para a sua “nova vida”, e, por conseguinte, “servir” a sociedade na consecução de ideais de direitos humanos, conforme preleciona um Estado Democrático de Direito.

Diante do exposto, percebe-se a denominada vigilância hierárquica de Michel Focault, que se encontra presente e viva nas instituições militares na atualidade. Segundo o renomado autor, a vigilância hierárquica se realiza a partir da explicitação do olhar sobre aqueles que são observados e das pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos.  A vigilância, em todas as estruturas institucionais, seja de forma explícita ou implícita, viabiliza a disseminação do poder disciplinar, no qual Foucault denomina a microfísica do poder.

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Na sua importante obra “Vigiar e Punir”, Focault menciona que o “poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar.” Mais adiante, acrescenta que a “disciplina fabrica indivíduos; ela é técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.”

Logo, o filósofo francês apresenta os chamados acampamentos militares, que demonstram nitidamente como ocorre à vigilância hierárquica por intermédio do poder e da coerção tocante ao exercício da disciplina. “As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento.”

Assim, vislumbra-se que o poder estatal encontra-se por detrás do controle das instituições militares, na figura do soberano, no modelo policial atual brasileiro trata-se dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal. Os interesses escusos do Estado são utilizados, para pisotear o cidadão utilizando as instituições militares como objeto e suprimindo da sociedade direitos e garantias constitucionais consagrados pela Constituição Federal.

Portanto, quando os militares deparam com cidadãos em contingência, ou quando estes utilizam dos direitos constitucionais, tais como à liberdade de expressão, direito de greve, passeatas, protestos contra o próprio Estado, etc., qual o resultado prático esperado e efetivo? Violência, diálogo ou tolerância das instituições policiais? 

O protesto alheio será logicamente reprimido pela força policial em defesa do Estado. Os militares devem obedecer à hierarquia e disciplina, e o próprio Estado invalida as ações da polícia com base na Lei e contra a própria polícia, que é responsável por fazê-la cumprir. Paradoxo este cotidianamente criticado pelos policiais militares.

Assim, podemos inferir que a farda representa uma simbologia paradoxal de caráter singular, ou seja, é um misto de controle e autocontrole, o militar é controlado em pequenas ações (em alguns momentos ultrapassam o senso de racionalidade) e tem que controlar atos sociais complexos.  

Pode-se concluir que o militarismo amordaça o militar e retira deste a sua condição de pessoa humana e por vezes, o trancafia atrás das grades como um delinquente, pautado em um Direito Penal do Inimigo. O militar preso retorna a caserna, todavia, para cumprir sua pena pelo delito praticado. O militar tem dois fardos a carregar, a hierarquia e a disciplina, que são concebidas erroneamente pelas instituições militares, com forma de submissão e exercício arbitário do poder. 


3. CONCLUSÃO 

Assim, para melhores resultados práticos é importante desmilitarizar as forças policiais. Em contrapartida a sociedade que é vítima de abusos policiais, em decorrência de uma má formação destes, com base em preceitos militares de guerra, supressão de direitos constitucionais, tratamentos vexatórios e humilhantes diversos. Este mesmo policial militar após a sua formação dita “moral” e policial vai às ruas, assim, com este treinamento de guerra faz crescer o número de autos de resistência feitos pela polícia e o também alto número policiais mortos em confronto, pois, o cenário é “declaradamente de guerra.” Assim, o militarismo faz com que o policial enxergue a sociedade como seu inimigo de guerra.

Diante do exposto, a PEC nº 51/2013, ao reestruturar do modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policial, idealiza melhores condições na prestação do serviço de segurança pública à sociedade. A essencialidade de ser militar, como demonstrado, é parâmetro para a aplicação da pena mais gravosa, a supressão de direitos fundamentais, não aplicação de princípios penais também contra o militar. Ao passo que o Estado utiliza da vigilância hierárquica e do poder disciplinar, para a consecução de fins com clara concepção política partidária em detrimento de uma sociedade que carrega todo o fardo. Ainda, o Estado se omite quanto aos altos índices de crimes violentos que assolam o Brasil em detrimento de fatores reais de poder com viés Lassaliano, como demonstrado. 


REFERÊNCIAS

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: 27ª Ed. Vozes, 1999.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Ribeiro Gomes

Possui pós-graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Paulo Henrique Ribeiro. O militarismo nas instituições policiais e a crise da segurança pública brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4844, 5 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52518. Acesso em: 8 nov. 2024.

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