Momentaneamente, muito se tem falado sobre FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo, também designadas como FARC-EP. Especialmente em razão da não aceitação pelo povo colombiano quanto ao acordo de PAZ entre FARC e governo, por diferença percentual mínima a favor do NÃO.
Fato é que, soberana e legitimamente, os colombianos disseram NÃO ao acordo, o que me pareceu mais um NÃO aos termos e conteúdo do acordo do que propriamente ao acordo em si, seu objetivo principal: o fim do conflito.
Alguns governos estrangeiros já lançaram “avisos” de que haverá "prejuízos" a Colômbia, o que se mostra descabido e desproporcional, sem contar que configura uma intromissão desautorizada em assuntos internos que dizem respeito ao exercício da soberania popular dos colombianos.
Nessa linha, o art. 3º da Constituição da Colômbia – que, por sinal, tem uma redação muito semelhante à nossa - preceitua que a "soberania reside exclusivamente no povo, do qual emana o poder público. O povo a exerce na forma direta ou por meio de seus representantes, nos termos que a Constituição estabelece".
Dessa forma, punir, retaliar ou atingir, ainda que indiretamente, a Colômbia unicamente em razão de uma decisão nacional configura ilícito internacional passível de sanção na seara do Direito das Gentes.
Todavia, todos nós sabemos que as características ainda reinantes no âmbito do Direito das Gentes podem configurar uma realidade diferente, em que a força política pode colocar por terra os anseios por justiça e igualdade internacionais. A falta de hierarquia e a descentralização da sociedade internacional, sem um Poder Judiciário e um Poder Executivo universais e supranacionais, permitem que nações fortes econômica e/ou politicamente façam um Direito Internacional "próprio", "só deles", o qual acaba por ser imposto ao restante do mundo.
De qualquer forma, ainda que no campo só da teoria, a decisão dos colombianos (de forma autônoma) deve ser respeitada nacional e internacionalmente (eis que todos os Estados necessitam aceitar a independência do país Colômbia).
O acordo, costurado há anos, principalmente (pasmem!), com a ajuda da família Castro de Cuba, parece-me pecar no conteúdo e nos termos, "aliviando" demasiadamente em relação aos autores, coautores e partícipes de delitos graves. Crimes estes em sua maioria de guerra, de lesa-humanidade e imprescritíveis.
Aludido acordo visa cessar nada mais nada menos que mais de cinquenta anos de conflito armado. De acordo com o governo da Colômbia, as FARC se comprometeram a entregar todas as suas armas às Nações Unidas (ONU), a não se envolver em crimes como sequestro, extorsão ou recrutamento de crianças, romper ligações com o tráfico de drogas e cessar ataques contra as forças de segurança.
O documento ainda preceitua que haverá justiça e reparação às vítimas e as FARC poderão fazer política sem usar armas. O texto assinado inclui um plano para o desenvolvimento agrícola integral, dando, inclusive, aos ex-guerrilheiros e ex-combatentes acesso à terra e a serviços.
Além de tudo, conforme o documento, será criado um sistema próprio de justiça para punir os responsáveis por crimes. Todavia, esse é um dos pontos mais criticáveis, pois as punições incluiriam apenas restrição de liberdade e, em caso de o autor não reconhecer espontaneamente o delito, poderia ser enviado para estabelecimento prisional comum por, no máximo, 20 anos.
De qualquer forma, a intenção do acordo é nobre e deve ser exaltada. Ainda mais num mundo com tantas intolerâncias e fraqueza de espírito colaborativo. Encerrar um conflito como o que ocorre na Colômbia por meio de um acordo de PAZ é fomentar outras posturas desse quilate. Merece respeito e destaque.
Mas é aí que adentra o Direito Internacional.
Tais momentos históricos nos remetem ao estudo dos sujeitos do Direito Internacional, da personalidade jurídica internacional.
As FARC podem ser sujeitos do Direito Internacional? Podem celebrar tratados? Acordos internacionais?
Entendemos que podem ser sujeitos, ainda mais para a celebração de eventual tratado de PAZ!
Já adiantamos e sabemos que o debate é acalorado, sendo passível de críticas ferrenhas. Ademais, não se quer propor uma solução inarredável e muito menos forçar um enquadramento teórico das FARC, apenas buscamos expor um caminho que o Direito Internacional pode proporcionar para o encerramento do conflito interno na Colômbia; interno, sim, mas com indiscutíveis reflexos internacionais!
No caso concreto do pacto com o governo da Colômbia, rejeitado pela população, há um acordo feito internamente, mas com a participação de atores internacionais e com reflexo transfronteiriço.
Acordo esse que pode abrir caminho para o reconhecimento da condição de sujeito internacional às FARC.
Eu, pessoalmente, alinhado a uma corrente moderna eclética (hetero-personalista), acredito que o rol de sujeitos do Direito Internacional é vasto e tende a aumentar. Há coletividades não-estatais que emergem dia a dia como atores relevantes no cenário internacional e que conquistam direitos e assumem obrigações compatíveis com quaisquer outros sujeitos, dotados de personalidade (pré-habilitação) e capacidade (exercício de direitos e assunção de obrigações).
O reconhecimento como sujeitos, ainda que com capacidades limitadas, permite a celebração de acordos de PAZ, os quais viabilizam o encerramento de conflitos bélicos.
Essa classificação fomenta muito debate. Alguns alocam as FARC como uma organização guerrilheira de inspiração comunista. De fato, conforme seus atos constitutivos, autoproclamam-se uma guerrilha revolucionária marxista-leninista, que se utiliza de táticas de guerrilha e lutam pela implantação do socialismo.
As FARC são consideradas uma organização criminosa e terrorista pelo governo da Colômbia, pelo governo dos Estados Unidos, pelo Canadá e pela União Europeia. Já os governos de Equador, Bolívia, Brasil, Argentina e Venezuela, até o momento, não aceitaram essa classificação. Tanto isso procede que o então presidente Hugo Chávez (com fortes laços guerrilheiros) rejeitou publicamente tal postura adotada pelos Estados Unidos e seus aliados.
Há, também, quem, já reconhecendo contornos de personalidade internacional, tipifique as FARC como beligerantes, insurgentes ou movimento de libertação nacional.
Pois bem, os beligerantes, os insurgentes e os movimentos de libertação nacional são coletividades não estatais que precisam passar por uma análise individualizada, ainda que sucinta.
Os beligerantes (ou estado de beligerância) podem gozar do estatuto de sujeito do Direito Internacional, com relevo, por exemplo, do ponto de vista de sua subordinação ao jus in bello, sua capacidade para celebrar tratados e sua admissão em organizações internacionais.
O estado de beligerância é representado por movimento de revolta ou insurreição dentro do território de um Estado, materializado pela guerra civil, revolução de grande envergadura.
Corriqueiramente, recorre-se às Convenções de Genebra, que não define precisamente os beligerantes, mas, ao menos, descreve os critérios de qualificação dos atos tidos como “conflito armado que não de caráter internacional", in casu a guerra civil (que é interno).
Como se percebe, o objetivo principal dos beligerantes é a formação de outro ente soberano na sociedade internacional ou a modificação do sistema político atual. O ato de seu reconhecimento consiste em medida unilateral e discricionária por parte dos países. Ocorre que, caso os reconheçam como sujeitos, passam a assim atuar, mesmo que de forma transitória, sendo possível, inclusive, a celebração de convenções de paz.
Não são poucos os professores que defendem as FARC como movimentos beligerantes.
É preciso reconhecer, didaticamente, que o exposto acima sobre beligerantes serve de norte para a explicação sobre os insurgentes.
Assemelha-se o estado de beligerância ao estado de insurgência, por serem coletividades que não se enquadram nos perfis de Estado e de organizações internacionais (ex.: ONU). Todavia, é equivocado considerá-los sinônimos.
De acordo com Alfred Verdross, os insurgentes são uma espécie de beligerantes com direitos limitados, estando essa limitação relacionada à própria proporção da conturbação interna em ação, pois se mostra como de pequena envergadura, não se igualando a uma guerra civil.
Normalmente, o conceito é aplicado de forma subsidiária: quando um levante não é encaixado como estado de beligerância, resta por ser inserido na moldura de insurgência (de menor envergadura).
Quanto à condição de sujeitos dos insurgentes, há posicionamentos dissonantes. Há ainda mais resistência quanto a essa condição. Entretanto, ainda que transitoriamente, pode sim haver o reconhecimento da sua personalidade jurídica. Esta seria uma condição sine qua non para o gozo de certas prerrogativas, como a própria celebração de tratados (ainda mais os que cessam conflitos).
Finaliza-se com a compreensão acerca dos movimentos de libertação nacional.
Os movimentos de libertação nacional surgiram em meados do século XX e, na prática, vem se reconhecendo sua personalidade, em especial, quanto ao trato de assuntos atinentes ao Direito Humanitário e aos Direitos dos Tratados.
De acordo com Kalki Zumbo, os movimento de libertação estão relacionados a uma causa de cunho nacionalista, vislumbrando a libertação de alguma forma de tirania ou dominação, seja de natureza colonial, econômica, étnica ou política.
A configuração de um movimento como de libertação nacional difere dos beligerantes e dos insurgentes, já que ele passa por um processo específico de aprovação pela ONU. Primeiramente, necessitará de um reconhecimento prévio por parte de qualquer organização internacional, devendo, posteriormente, ser aprovado e confirmado como tal, o que ocorrerá pela manifestação positiva dos Estados-membros reunidos na Assembleia-Geral da ONU.
A luta pela independência da Argélia é citada como um exemplo de movimento de libertação nacional, bem como a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Todavia, apenas a título informativo, é preciso lembrar que a Palestina hoje já é reconhecida como Estado pelo Brasil.
Quando se faz um esforço para encaixar as FARC como sujeito (ainda que com capacidade limitada), costuma-se inserir na moldura de beligerantes ou, como segunda opção, no contorno de insurgentes.
Com todas as vênias quanto aos entendimentos contrários, e levando em conta a maior segurança jurídica propiciada (com participação da ONU) e as próprias características das FARC, nossa posição é pela sua tipificação como movimento de libertação nacional, MLN.
Mesmo que o seu enquadramento como sujeitos seja objeto de resistência política, midiática e até acadêmica, essa possibilidade não pode ser descartada como um caminho viável e importante para celebração de eventual acordo pacífico.
E, independentemente de qual a posição como sujeitos (se beligerantes, se insurgentes ou se movimentos de libertação nacional), o reconhecimento de uma personalidade jurídica internacional (ainda que limitada) deve ganhar terreno, especialmente porque a sociedade internacional, ao menos em sua maioria, tem interesse em ver o conflito cessado. Reconheça-se que uma das 8 tendências evolutivas do Direito Internacional é o humanismo; dessa feita, os principais líderes e as potenciais mundiais devem envidar esforços para que os direitos humanos sejam assegurados.
E, como o acordo com o governo colombiano foi rejeitado pela população, é possível a propositura de outro pacto com diferentes termos. Ou, melhor ainda, a nosso entender, emerge como de extrema utilidade um acordo internacional, que pode ser costurado, envolvendo outras nações, garantindo-se, assim, maior segurança jurídica, legitimidade e exequibilidade interna e internacional ao documento de PAZ.
FONTES:
DEL´OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Público. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 62.
GUEVARA, Kalki Zumbo Coronel. As Forças Armadas Revolucionárias Da Colômbia (FARC) e Sua Atuação no Cenário Internacional. Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 6, 2010, p. 223. Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume6/
MACHADO, Diego Pereira. Direito Internacional e Comunitário para concurso de Juiz do Trabalho. 2 ed. São Paulo, Edipro, 2012, p. 48.
PIETROPAOLI, Stefano. Jus ad bellum e jus in bello. La vicenda teorica di una grande dicotomia del Diritto Internazionale. In: Quaderni Fiorentini - per la storia del peniero giuridico moderno. Giuffré Editore. T. II, 38, 2009, pp. 1169-1213.
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