12.SIMULAÇÃO DA LICITUDE DOS ATOS DE CORRUPÇÃO.
Não raro, a normatização de regência das relações intersubjetivas é utilizada como mecanismo de legitimação da vantagem indevida obtida com os atos de corrupção. Tal simulação pode revestirse de inúmeras facetas. À guisa de ilustração, mencionaremos as seguintes: a) simulação de contratos de compra e venda, com objeto fictício ou com a fixação de preço superior ao valor real do bem, o que termina por conferir ares de legitimidade ao numerário que exceder o valor real; b) transferência de recursos para paraísos fiscais, nos quais a abertura das contas é realizada por meios eletrônicos, inexistindo prova contundente de que o agente é o seu titular; c) utilização de títulos ao portador ou de pessoas jurídicas normalmente controladas por outras pessoas jurídicas sediadas no exterior e cujo acionista controlador é desconhecido; d) estabelecimento de relações fictícias entre pessoas jurídicas nacionais e estrangeiras, possibilitando a lavagem de dinheiro e a indevida remessa de divisas para o exterior; e) instrumentos procuratórios que propiciam a manipulação dos denominados "laranjas" ou "testas de ferro", em regra pessoas humildes e com reduzida capacidade intelectiva que assumem, formalmente, a titularidade dos bens do corrupto; f) utilização de pessoas jurídicas, normalmente sem fins lucrativos (associações e fundações) para gerir os recursos captados com a corrupção, transmitindo a falsa impressão de que sua origem é lícita e de que se destinam à satisfação do interesse social.
A tendência é que tais mecanismos venham a se proliferar, tornando cada vez mais complexa a sua compreensão e conseqüente repressão. A contenção desse estado de coisas exige que aos agentes públicos seja dispensado um tratamento jurídico diferenciado em relação aos particulares, o mesmo devendo ser feito quanto aos particulares que pretendem contratar com o Poder Público. Em casos tais, as perspectivas de efetividade das posturas preventiva e repressiva dissentem entre si em grande intensidade, sendo esta nitidamente inferior àquela.
13.O REDIMENSIONAMENTO DE PRÁTICAS PRIVADAS COMO MECANISMO DE CONTENÇÃO DA CORRUPÇÃO.
O agente público, na medida em que exerce uma função de igual natureza, deve ter uma conduta absolutamente transparente, daí a necessidade de serem amenizadas as regras que reduzem a publicidade de sua evolução patrimonial, em especial as concernentes aos sigilos bancário e fiscal. [21] Devem ser instituídos órgãos responsáveis pelo efetivo monitoramento da evolução patrimonial do agente, sempre buscando analisar a compatibilidade entre o que fora informado e a realidade fenomênica. Com isto, evitarseão situações que em muito contribuem para o enfraquecimento das instituições, como na hipótese de o agente receber parca remuneração e usufruir de bens de consumo de alto custo, sem que nenhum órgão afira a desproporção entre esses dois vetores.
Determinadas operações deveriam ser necessariamente transparentes, ainda que oriundas de profissionais liberais, como os advogados, ou de instituições financeiras (v.g.: necessidade de comunicar a existência de depósitos superiores a valores que suportem o padrão médio, proscrição dos títulos ao portador e dos depósitos não identificados etc.). Como forma de proteção à intimidade, que em um Estado Democrático não pode ser concebida como um direito absoluto, o que legitima a sua ponderação com outros valores relevantes à sociedade, o acesso às informações poderia ser restrito a um órgão governamental, que seria responsável pelo cadastramento e batimento das informações coletadas.
O combate à corrupção, assim, longe de estar unicamente atrelado à existência de severas normas sancionadoras, em muito depende do redimensionamento de institutos regidos pelo direito privado, os quais, acaso utilizados com abuso de poder, inviabilizam a sua identificação e conseqüente coibição. Enfraquecidos os subterfúgios utilizados para simular a licitude do numerário obtido com a prática da corrupção, melhores perspectivas surgirão na atividade investigatória, já que sensivelmente reduzidos os meandros a serem percorridos na identificação do ilícito.
14.CORRUPÇÃO E GLOBALIZAÇÃO.
Apesar de a corrupção estar presente em praticamente todas as fases do desenvolvimento humano, o aumento das transações comerciais internacionais e o constante fluxo de capitais entre os países em muito contribui para a sua proliferação.
Por estarem alheias aos prejuízos sociais que as práticas corruptas podem acarretar, as multinacionais delas se utilizam com freqüência, buscando obter informações privilegiadas, licenças de operação, facilidades no escoamento da produção etc.
Há poucos anos, era comum que países desenvolvidos, buscando aumentar a competitividade de suas empresas, autorizassem o pagamento de "comissões" a agentes públicos de países importadores, admitindo, inclusive, que tais valores fossem deduzidos dos tributos devidos ao fisco. Regra geral, o único elemento limitador dessa prática era o de que os atos de corrupção deveriam ser praticados fora do território nacional. [22]
Em relação ao comércio internacional, é extremamente delicada a situação das alfândegas, seara em que a corrupção, não raras vezes, é o mecanismo utilizado para encobrir inúmeras "práticas comerciais", verbi gratia: a) a triangulação comercial, utilizada para fraudar o país de origem da mercadoria com o objetivo de submeter o produto a tratamento tributário mais favorável; b) o subfaturamento ou a aquisição de produtos novos como se usados fossem, influindo na base de cálculo do tributo; c) a aquisição de produtos proibidos (contrabando); d) a aquisição de produtos permitidos sem o correspondente recolhimento do tributo (descaminho); e e) a obtenção de isenções sem o cumprimento dos requisitos essenciais do drawback.
A globalização também se apresenta como elemento estimulador da corrupção na medida em que realça e aproxima as desigualdades de ordem econômica, social, cultural e jurídica, o que permite a coexistência de realidades que em muito destoam entre si. Com isto, temse um campo propício ao oferecimento e à conseqüente aceitação de vantagens indevidas, em especial quando os envolvidos ocupam pólos opostos em relação aos mencionados indicadores.
15.O COMBATE À CORRUPÇÃO NO PLANO INTERNACIONAL.
A corrupção, quer seja estudada sob o prisma sociológico ou jurídico, há muito deixou de ser concebida como um fenômeno setorial, que surge e se desenvolve de forma superposta aos lindes territoriais de determinada estrutura organizacional. Na medida em que a corrupção rompe fronteiras, expandindose de forma desenfreada, tornase imperativa a existência de ações integradas e de mecanismos de cooperação entre os diferentes Estados.
Neste tópico, realizaremos uma breve referência a alguns acordos de cooperação que bem refletem a preocupação da comunidade internacional com esse deletério fenômeno. A enumeração, por evidente, não é exaustiva, e a abordagem é eminentemente ilustrativa. De qualquer modo, nos pareceu relevante a referência. Nos itens subsequentes, analisaremos, de modo um pouco mais amplo, a Convenção da Organização dos Estados Americanos contra a corrupção e os instrumentos de combate à corrupção existentes na França.
Em 13 de novembro de 1989, foi editada, pelo Conselho das Comunidades Européias, a Diretiva sobre coordenação das normas relativas às operações com informação privilegiada, que alcança tanto o setor público como o privado.
O Conselho das Comunidades Européias editou, em 10 de junho de 1991, a Diretiva nº 91/308, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para a lavagem de dinheiro. Essa diretiva, em linhas gerais, buscou combater tal prática assegurando o acesso a informações que permitissem identificar a realização de operações ilícitas com a intermediação de instituições financeiras. [23]
A Declaração de Arusha sobre Cooperação e Integridade Aduanera, celebrada na Tanzânia, em 7 de julho de 1993, sob a coordenação da Organização Mundial do Comércio, buscou adotar medidas de combate à corrupção na área aduaneira. Essa Declaração, observada por mais de 150 (cento e cinqüenta) países, estatuiu, dentre outras medidas, a necessária rotatividade entre os funcionários das alfândegas, a existência de critérios rígidos e objetivos de seleção, a redução da esfera de discricionariedade de tais agentes, o pagamento de remuneração compatível com a importância do cargo e a existência de mecanismos efetivos de controle, em especial na órbita disciplinar.
O Convênio relativo à proteção dos interesses financeiros das comunidades européias, de 26 de julho de 1995, coíbe a participação de agentes públicos em fraudes fiscais, falsificações, desvios ou retenções indevidas de fundos, prática que evitaria a redução do ingresso de receitas tributárias, em especial aquelas originárias dos impostos aduaneiros. [24] Esse Convênio, firmado com base no artigo K3 do Tratado da União Européia, foi integrado pelo Protocolo Adicional de 21 de setembro de 1996, direcionado ao combate à corrupção dos agentes públicos.
A Organização Mundial do Comércio difundiu critérios de ordem objetiva a serem observados pelo Poder Público na contratação de obras e serviços a nível internacional, todos direcionados à transparência do procedimento licitatório. Tais diretrizes foram veiculadas no Acordo plurilateral sobre contratação pública, celebrado em Marrakech, no ano de 1996.
Em 26 de maio de 1997, foi firmado, no âmbito da União Européia, com base na alínea c da cláusula 2 do artigo K3 do Tratado da União Européia, o Convênio de luta contra atos de corrupção nos quais estejam envolvidos funcionários das Comunidades Européias ou de Estados membros da União Européia. [25] Esse convênio já foi ratificado por inúmeros países, como França, Alemanha, Espanha, Suécia, Finlândia e Suécia.
As sucessivas medidas adotadas pela União Européia com o fim de depurar as relações mantidas entre os Estados membros, em especial aquelas estritamente relacionadas aos agentes públicos, ensejou a elaboração do Corpus juris 2000 de disposições penais para a proteção dos interesses financeiros da União Européia, sendo encontrados no texto oito tipos penais. Tratase de uma proposta legislativa que busca unificar, no âmbito da União Européia, princípios comuns de direito penal dos Estados membros, com vistas a estatuir uma estrutura judicial comum. À guisa de ilustração, merece referência o art. 5.2 do Corpus Juris, que tipifica os atos de corrupção ativa ou passiva que possam ocasionar prejuízos a interesses financeiros dos Estados membros. [26]
Em relação às tendências verificadas no âmbito da União Européia, já são múltiplas as vozes que sustentam a necessidade de se criar um "Fiscal Europeu Anticorrupção", que exerceria funções inerentes ao Ministério Público, em especial as de ombudsman e de investigação de infrações penais. Com isto, serão robustecidos os instrumentos atualmente existentes, como a "Oficina de Luta Antifraude", que seria supervisionada pelo referido agente.
Em 5 de maio de 1998, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa editou a Resolução nº 7, que autorizou a criação do "Grupo de Estados contra a Corrupção" ("GRECO Group of States against Corruption"). O Conselho da Europa adotou, em 22 de dezembro de 1998, a ação comum "sobre a corrupção no setor privado". [27] Em 27 janeiro de 1999, foi firmado, pelos países integrantes do Conselho da Europa, o Convênio de Direito Penal contra a corrupção. [28] Posteriormente, em 4 de novembro de 1999, o Conselho da Europa editou o Convênio de Direito Civil sobre corrupção, segundo o qual os Estados partes deveriam adotar medidas legislativas em prol daqueles que tenham sofrido danos como resultado de atos de corrupção, permitindo a defesa de seus direitos, incluindo a possibilidade de compensação pelos danos sofridos. [29] Esses convênios, como é fácil perceber, buscavam estabelecer medidas preventivas e repressivas à corrupção em suas múltiplas vertentes, alcançando, inclusive, o setor privado, em regra o principal beneficiário de tal prática.
Trinta e três Estados integrantes da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico subscreveram, em 17 de dezembro de 1997, na Cidade de Paris, a "Convenção de Luta Contra a Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais de Caráter Internacional", que considera infração penal o suborno de tais agentes. [30] Anteriormente, a OCDE já havia recomendado que não deveriam ser permitidas quaisquer deduções, em matéria tributária, das importâncias pagas a título de suborno. [31]
O Fundo Monetário Internacional, em 26 setembro de 1999, aglutinou inúmeras medidas de combate à corrupção, em matéria financeira, no "Código sobre Boas Práticas de Transparência em Políticas Monetárias e Financeiras". Esse Código busca tornar acessíveis ao cidadão comum, de forma simples e objetiva, as medidas econômicas, monetárias e financeiras adotadas pelos governantes. [32]
A Organização das Nações Unidas editou as Resoluções nº 50/106, de 20 de dezembro de 1995, 51/191, de 16 de dezembro de 1996, e 53/176, de janeiro de 1999, que veiculam medidas de combate à corrupção nas transações internacionais.
A Assembléia Geral das Nações Unidas, por intermédio da Resolução nº 51/59, de janeiro de 1997, veiculou um "Código de Conduta para Funcionários Públicos", que, dentre outras medidas, estabeleceu inúmeras incompatibilidades incidentes sobre aqueles que tivessem acesso a informações privilegiadas no exercício da função. Em 21 de fevereiro de 1997, emitiu a "Declaração sobre a Corrupção e os Subornos nas Transações Comerciais Internacionais", a qual, além de outras providências, dispôs que os Estados examinariam a possibilidade de considerar o enriquecimento ilícito de agentes públicos, incluindo os eleitos, como uma prática ilícita. [33]
A Organização dos Estados Americanos, em agosto de 1998, editou um Modelo de Legislação sobre enriquecimento ilícito e suborno transnacional, que, dentre outras sanções, previa a impossibilidade de obtenção de benefícios fiscais ou subvenções de origem pública.
Na senda das medidas anticorrupção adotadas no plano internacional, inúmeros países têm redimensionado seus sistemas de combate à corrupção. No Brasil, foi editada a Lei de Improbidade Administrativa, de 2 de junho de 1992, diploma singular e sem paralelo no mundo. Na Itália, o Código de comportamento dos empregados das Administrações Públicas, de 1993. Na França, a Lei sobre a prevenção da corrupção e a transparência da vida econômica e dos procedimentos públicos, de 29 de janeiro de 1993. Na Espanha, a Lei nº 10, de 1995, criou a Fiscalía Especial, também conhecida como Fiscalía Anticorrupción, órgão integrante do Ministério Público incumbido da repressão aos crimes econômicos relacionados à corrupção. Na Alemanha, a lei de combate à corrupção, de 20 de agosto de 1997.