3. A REGULAMENTAÇÃO DA REPERCUSSÃO GERAL
A Emenda Constitucional nº 45/2004, popularmente chamada de Reforma do Judiciário, entre outras alterações que gerou no ordenamento nacional, acrescentou o parágrafo terceiro ao artigo 102 da Constituição Federal de 1988, instituindo, assim, o pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário denominado repercussão geral. Entretanto, apesar do mandamento constitucional, estabelecendo seu surgimento, era necessário regulamentar o jovem instituto. Isso foi efetuado por meio da edição da Lei nº 11.418/2006, publicada em 20 de dezembro de 2006, que acrescentou à Lei 5.869/73 - Código de Processo Civil - os artigos 543-A e 543-B.
A exigência de regulamentação da matéria originava-se expressamente do próprio texto da Emenda Constitucional nº 45/2004, inclusive com o estabelecimento de prazo, pois, em seu artigo 7º, preceituava:
Art. 7º O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.
Por força do referido artigo, foi criada no Congresso Nacional a Comissão Mista Especial do Judiciário, com a incumbência de elaborar os projetos de lei destinados à regulamentação dos dispositivos inseridos pela emenda. Como relator da Comissão Especial Mista, foi designado o Senador José Jorge, e, como Presidente, o Deputado Federal José Eduardo Cardozo. Dentre os dispositivos que deveriam ser objeto de estudo da comissão, estava o parágrafo terceiro do artigo 102 da Constituição Federal de 1988.
A comissão, durante seus trabalhos, manteve contato com os Ministros do Supremo Tribunal Federal, sobretudo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que teve um papel importante na regulamentação da repercussão geral, inclusive, chegando a redigir o anteprojeto de lei, juntamente com o Ministro Cezar Peluso.
Também foram feitas consultas ao Professor Arruda Alvim, da PUC/SP, cujas sugestões contribuíram para a prosperidade do projeto de lei na comissão. Ademais, promoveram-se eventos, como audiências públicas e seminários, para discussão da matéria, estes contaram com a participação do então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, ilustres juristas, como a Professora Tereza Arruda Alvim Wambier, Ada Pellegrini Grinover, Alexandre de Moraes, José Miguel Garcia Medina, entre outros. (Dantas 2012, p. 285)
As divergências surgidas durante as discussões, após a devida análise e ponderação pertinente ao caso, foram sintetizadas no projeto de lei apresentado pelo relator da Comissão Mista Especial do Judiciário – Senador José Jorge – como uma das conclusões do relatório final de atividades da comissão. Portanto, o Plenário da Comissão aprovou o relatório final que abordava toda a matéria tratada na Emenda Constitucional nº 45/2004, inclusive o texto do projeto de lei específico que regulamentaria o parágrafo terceiro do artigo 102 da Constituição Federal de 1988, acrescentado pela emenda. Esse projeto de lei deu origem à Lei 11.418/2006.
3.1 O Projeto Original
O texto original, apresentado pelo relator da Comissão Mista Especial do Judiciário, sofreu alterações pontuais por iniciativa do então Presidente da Comissão, o Deputado Federal Jose Eduardo Martins Cardozo, que propôs algumas supressões. Porém, de maneira geral, foi mantido seu texto.
A tramitação do projeto de lei iniciou-se pelo Senado Federal, passando a denominar-se Projeto de Lei do Senado 12/2006. Contudo, o referido projeto era fundamentalmente diferente da Lei 11.418/2006, hoje em vigor, pois deixava menos espaço para a disciplina procedimental do instituto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e era mais prolixo em relação aos detalhes de aplicação do instituto. (Dantas 2012, p. 286)
3.2 A Tramitação no Senado Federal
Como já informado, a tramitação do Projeto de Lei do Senado 12/2006 iniciou-se pelo Senado Federal, e conforme despacho do Presidente da Casa, atendendo às normas regimentais, deveria ser apreciado diretamente pelo Plenário, em dois turnos. Porém, devido a um requerimento do então Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – Senador Antônio Carlos Magalhães – a matéria foi remetida a esta comissão para exame. Para relator, foi escolhido o Senador José Jorge, que já havia relatado a matéria na Comissão Mista Especial do Judiciário e apresentado o projeto de lei.
Dessa forma, imaginava-se que o projeto seria aprovado pela comissão como se encontrava, porém, surpreendentemente, o relator decidiu substituir integralmente o projeto por ele apresentando anteriormente, por um substitutivo, elaborado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso e Gilmar Ferreira Mendes. (Dantas 2012, p. 287)
Aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o novo projeto foi encaminhado para apreciação do Plenário do Senado Federal, onde o Senador Demóstenes Torres ofereceu oito emendas.
Diante das emendas, o projeto voltou à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que acolheu apenas uma delas integralmente. Esta previa que o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário fosse realizado pelo tribunal prolator da decisão da qual se pretendia recorrer – tribunal a quo. O projeto, juntamente com a referida emenda, foi, então, aprovado pelo Plenário do Senado Federal e remetido para apreciação na Câmara dos Deputados.
3.3 A Tramitação na Câmara dos Deputados
Na Câmara dos Deputados, o projeto recebeu o nº 6.648/2006, sendo sua distribuição inicial endereçada à Comissão de Constituição e Justiça, sob a relatoria do Deputado Federal Odair Cunha. Apesar da edição de quatro emendas, essa comissão emitiu parecer pela aprovação do projeto num prazo relativamente curto e encaminhando-o para votação em Plenário, que, após sua aprovação, ocorrida em 30 de novembro de 2006, seguiu para a sanção presidencial.
As emendas apostas pelo relator – Deputado Federal Odair Cunha – em seu parecer tratavam meramente da redação do projeto de lei, com o objetivo de melhorar a técnica legislativa empregada pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal em sua elaboração, já que, no Senado Federal, não havia sofrido nenhuma alteração nesse sentido.
Segundo Dantas (2012, p. 289), “O parecer realçou fundamentalmente a necessidade de se implementarem, no projeto, mudanças meramente de redação, a lhe atribuírem a adequada técnica legislativa”.
Pode se confirmar a preocupação do relator com a redação empregada no projeto de lei, observando-se o fragmento de seu parecer, abaixo transcrito:
Em relação à técnica legislativa, vislumbra-se a necessidade de algumas alterações de natureza redacional, como: falta-lhe um artigo inaugural e o §2.º do art. 543-B do projeto contém vários comandos diferentes e deve ser desmembrado, a fim de obedecer ao disposto no art. 11, I, “b”, II, “a” e III, “c”, da Lei Complementar 95/98. Essas modificações são implementadas nas emendas de redação que ora se apresenta.
Por fim, após as discussões e votações pertinentes, o projeto, com as referidas emendas, foi aprovado na Câmara dos Deputados, em 30 de novembro de 2006, e sancionado pelo então Presidente da República – Luiz Inácio Lula da Silva – em 19 de dezembro de 2006, transformando-se na Lei nº 11.418/2006, publicada no Diário Oficial da União em 20 de dezembro de 2006.
3.4 Alteração do Código de Processo Civil versus Lei Esparsa
No projeto de lei original, elaborado pela Comissão Mista Especial do Judiciário, a regulamentação da repercussão geral ocorreria por meio de lei esparsa, e não mediante inclusão de artigos no Código de Processo Civil (Lei 5.869/73), como acabou sendo feito.
Portanto, indaga-se se a opção do legislador ao incluir o instituto na legislação processual civilista foi a mais adequada. Dantas (2012, p. 290) explana o seguinte apontamento:
É evidente que não há prejuízo de natureza prática na decisão de se modificar a ordem codificada, pois as regras de hermenêutica são suficientes para corrigir a distorção causada. Contudo, não temos dúvida, alguns danos de ordem conceitual e teórica decorrem da opção feita, pois não se pode conceber que o legislador propositadamente tencionou deixar lacunas em matéria de tão simples solução.
Todavia, o instituto da repercussão geral, por ser de natureza constitucional, não é aplicável ao direito processual civil, mas também em questões penais, trabalhistas, eleitorais e militares.
Logo, fica manifesto que o instituto foi inadequadamente acomodado, ao adicioná-lo ao Código de Processo Civil. Mais sensato seria que a introdução tivesse ocorrido por meio de uma lei esparsa, pois, dessa forma, a falsa impressão de que a seara de excelência da repercussão geral é o contencioso civil ficaria eliminada.
3.5 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
A Lei 11.418/2006, publicada em 20 de dezembro de 2006, em várias oportunidades, menciona que caberá ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal dispor sobre questões não exauridas na própria lei. Estas menções são encontradas nos artigos 543-A e 543-B, incluídos Código de Processo Civil pela Lei 11.418/2006, porém, a mais expressiva encontra-se em seu artigo terceiro, que estabelece: “Art. 3º Caberá ao Supremo Tribunal Federal, em seu Regimento Interno, estabelecer as normas necessárias à execução desta Lei”.
Portanto, em atendimento ao mandamento legislativo, o Supremo Tribunal Federal editou a Emenda Regimental nº 21/2007, em que fixou parâmetros gerais acerca do novo instituto jurídico e acrescentou competência ao Presidente da Corte e ao Relator do Recurso Extraordinário. A Emenda Regimental nº 21/2007, alterou o artigo 13 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que passou a ter a seguinte redação:
Art. 13. São atribuições do Presidente:
(...)
V – despachar:
(...)
c) como Relator(a), nos termos dos arts. 544, § 3º, e 557 do Código de Processo Civil, até eventual distribuição, os agravos de instrumento e petições ineptos ou doutro modo manifestamente inadmissíveis, bem como os recursos que não apresentem preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, ou cuja matéria seja destituída de repercussão geral, conforme jurisprudência do Tribunal. (grifo nosso)
(...)
Dessa forma, foram delegados ao Presidente poderes para fazer um juízo prévio de admissibilidade do recurso remetido à Corte. Neste sentido, Dantas (2012, p. 295) elucida:
O Presidente da Corte, portanto, foi investido de competência para despachar como relator não apenas em busca da regularidade formal da petição do RE – que deverá conter preliminar fundamentada demostrando a repercussão geral – ou do efetivo cotejo entre o caso concreto e outros precedentes da Corte nos quais o Plenário tenha reconhecido a ausência do pressuposto, mas também para realizar, antes da distribuição ao relator, o juízo de admissibilidade relacionado a outros pressupostos e requisitos, como v.g., prequestionamento.
Caso não haja nenhuma irregularidade explícita no recurso, que seja prontamente captada pelo Presidente, o recurso será distribuído para a relatoria, que analisará o atendimento aos requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade e a existência da repercussão geral, que deverá estar preliminarmente fundamentada. O relator poderá indeferir o recurso extraordinário liminarmente, por falta de algum dos requisitos de admissibilidade, entretanto, por ausência de repercussão geral, só poderá fazer se a Corte já houver apreciado casos idênticos, e afastada a presença da repercussão geral por dois terços dos membros.
Essa decisão monocrática deverá ser comunicada pelo Relator à Presidência do Tribunal, nos termos do artigo 326 do Regimento Interno, que preceitua: “Art. 326. Toda decisão de inexistência de repercussão geral é irrecorrível e, valendo para todos os recursos sobre questão idêntica, deve ser comunicada, pelo(a) Relator(a), à Presidência do Tribunal, para os fins do artigo subsequente e do art. 329”.
Moraes (2014, p. 611) destaca “que não há expressa previsão de manifestação do Procurador-Geral da República sobre a questão da repercussão geral, estabelecendo o art. 325 do RiSTF que o mesmo somente se manifestará sobre o recurso extraordinário, uma vez decidida a questão sobre a repercussão geral”. Ou seja, o Procurador-Geral da República não poderá influenciar na decisão do Supremo Tribunal Federal, quanto ao reconhecimento ou não da repercussão geral.
Quanto à irrecorribilidade da decisão manifestada acima, esta deverá ser interpretada de maneira sistêmica e em harmonia com demais disposições expressas no Código de Processo Civil e no próprio Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, pois, embora haja menção textual de que a decisão é irrecorrível, só seriam realmente irrecorríveis as decisões colegiadas emanadas pela Corte.
Dessa forma, assevera Dantas (2012, p. 295): “Nesse sentido, parece-nos que irrecorrível é apenas a decisão do Plenário que, por dois terços de seus membros, reconhece a ausência de repercussão geral de uma dada questão constitucional, não assim quando esse juízo é realizado pelo relator”. Corroborando o mesmo entendimento, Fux; Freire e Dantas (2014, p. 543):
Nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, a decisão sobre a repercussão geral é irrecorrível. Mas é importante esclarecer que irrecorrível é a decisão originaria sobre repercussão geral. A decisão que, eventualmente, aplicar mal um precedente sobre repercussão geral, se monocrática, pode ser objeto de agravo, nos termos do próprio Regimento Interno. (grifo nosso)
Assim, fica evidenciada a relatividade do caráter irrecorrível das decisões que afastam a presença da repercussão geral nos recursos remetidos à apreciação do Supremo Tribunal Federal.
3.6 O Emprego de Meio Eletrônico para Discutir a Repercussão Geral
A Emenda Regimental nº 21/2007 inovou ao possibilitar a utilização de via eletrônica para que os Ministros ponderem quanto à existência ou não de repercussão geral nos recursos extraordinários. Não há dúvida de que a atitude de implementar o uso de recursos tecnológicos nos trabalhos do Judiciário é elogiável, sobretudo por atender aos princípios da celeridade e da economia processual. O comando constitucional estabelece que a repercussão geral só poderá ser afastada por decisão de dois terços dos membros do Tribunal, logo, isso exigiria uma sessão plenária para as deliberações. Todavia, para evitar a necessidade de reiteradas sessões para análise do instituto e também otimizar os trabalhos da Corte, foi implementado o sistema eletrônico.
Desta forma, o relator, após analisar do recurso, encaminha, por meio eletrônico, cópia de sua manifestação aos demais Ministros, que, nos termos do artigo 324 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, disporão de um prazo comum de vinte dias para emitirem seus votos e encaminhá-los de volta ao relator, também por meio eletrônico. Nessa direção, Masson e Montans (2014, p. 172) doutrinam: “O relator submete aos demais ministros, por via eletrônica, sua manifestação sobre a repercussão geral. Os ministros encaminham sua manifestação por meio eletrônico no prazo de 20 dias e presume-se a existência da repercussão geral se não houver decisão em contrário”. Entretanto, à parte da funcionalidade do meio empregado, debate a doutrina quanto à violação ou não do basilar princípio da publicidade que este sistema pode gerar. Em relação a isso, Dantas (2012, p. 298) expõe o seguinte:
Em tempos de evolução tecnológica frenética, os operadores do direito devem estar atentos às modernas formas de violação das garantias constitucionais do processo. Há um aspecto fundamental que merece ser levado em consideração quando se fala em deliberação por meio eletrônico: o princípio constitucional da publicidade é corolário de um outro mais genérico, que é o da participação social no controle das decisões judiciais. Este, por sua vez, nada mais é do que aplicação do princípio democrático ao processo.
Isso evidencia que não basta a mera publicação das decisões para atender ao princípio da publicidade. Os litigantes, o Ministério Público, terceiros interessados, assim como toda a sociedade, têm o direito de acompanhar toda a construção da decisão judicial, inclusive os debates entre os julgadores. Veja-se que, em regra, a Constituição veda sessões de julgamentos secretas. (Dantas 2012, p. 299)
No caso da repercussão geral, isso ganha aspectos ainda mais relevante, pois preceitua o parágrafo único do artigo 322 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal que: “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões que, relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassem os interesses subjetivos das partes”. Ou seja, exige-se transcendência constitucional na admissão de recurso, transformando em interessado na lide todo grupo social relevante. Dessa forma, diante do impasse entre a razoável duração do processo e a plenitude do contraditório, propõe-se que deve prevalecer a proporcionalidade. Neste mesmo sentido explana Dantas (2012, p. 300):
Se, por um lado, há restrição ao direito das partes de utilizarem, na plenitude, a ampla defesa, por outro lado há o ganho de celeridade acarretado pela fuga da “abarrotada” pauta de julgamentos do STF. A questão, segundo nos parece, será bem equacionada se aplicada em estrita observância ao princípio da proporcionalidade.
A ideal aplicação da proporcionalidade é a adequação dos meios utilizados para os fins desejados, contudo, sem exceder o estritamente necessário para consecução dos objetivos, ou seja, deve haver sensatez nos critérios utilizados. Dantas (2012, p. 300) faz o seguinte apontamento:
Nesse terreno, segundo pensamos, a proporcionalidade estará atendida se aos atos processuais praticados for conferida ampla publicidade. Merece aplausos, portanto, ante o interesse da sociedade nas matérias revestidas de repercussão geral, a disposição contida no RISTF que fixa o dever da Presidência da Corte criar e manter banco de dados eletrônicos contendo tais informações.
Conclui-se, portanto, não haver violação do princípio da publicidade no fato de o Supremo Tribunal Federal utilizar meios eletrônicos para sopesar quanto à existência ou não de repercussão geral nos recursos extraordinários, desde que seja dada total publicidade aos atos praticados pelos membros da Corte.
3.7 A Presunção de Repercussão Geral
A Lei 11.418/2006 previu, mediante a inclusão no Código de Processo Civil do artigo 543-A, parágrafo terceiro que, “Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal”. O objetivo do legislador, ao expressar esse mandamento infraconstitucional, foi ressaltar a função uniformizadora do Supremo Tribunal Federal, pois, como a Corte está no topo da pirâmide na hierarquia judicante, tem a atribuição fundamental de superar as divergências de instâncias inferiores, estabelecendo uma padronização do entendimento judicial, consequentemente, gerando segurança jurídica aos jurisdicionado.
Dessa forma, foi sensato o legislador, ao consentir o direito de reanálise às causas decididas pelas instâncias inferiores de forma contrária ao entendimento já consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, é importante ressaltar que não necessariamente a decisão inferior estará sempre errada, pois um novo cenário social, político, econômico etc. pode suscitar mudança na compreensão da situação concreta. Corroborando esse posicionamento, Dantas (2012, p. 301) informa:
Vale dizer, segundo o entendimento do legislador infraconstitucional estampado no dispositivo em analise, a mera divergência entre a decisão recorrida e a jurisprudência predominante é suficiente para causar impacto em toda a sociedade brasileira, pois: i) ou a decisão recorrida está equivocada, e precisa ser ajustada ao entendimento prevalecente no STF; ou ii) houve substancial modificação no quadro fático e jurídico, ou mesmo alteração na compreensão e no convencimento dos ministros sobre o assunto, e é a jurisprudência do STF que merece ser alterada, para se ajustar ao novo cenário.
Vale ressaltar que, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 543-A do Código de Processo Civil, “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”. Portanto, uma exemplificação clássica de ponto de vista jurídico é questão constitucional decidida contrariamente à súmula ou jurisprudência dominando do Tribunal. Importante destacar, ainda, que não importa se a matéria constitucional recorrida tem ou não grande destaque midiático ou impacto social expressivo, basta apenas que esteja em colisão com a jurisprudência ou súmula do Supremo Tribunal Federal, que necessariamente terá repercussão geral reconhecida presumidamente, por relevância jurídica.
Corroboram com este apontamento as lições de Dantas (2012, p. 301-302):
Ocorre que, ao trazer tal exemplificação de forma expressa, o legislador indicou que, ainda que a matéria de fundo seja absolutamente desprovida de impacto social, o só fato de a decisão recorrida ser contraria a jurisprudência ou sumula do STF assegura-lhe a vestimenta da repercussão geral.
Com essa atitude, o legislador buscou garantir a segurança jurídica, a legalidade e a igualdade perante a lei, pois impede que o Supremo Tribunal Federal se abstenha de apreciar determinado recurso extraordinário, com decisão recorrida contrária à sua própria jurisprudência, sob a alegação de ausência de repercussão geral por falta de impacto direto sobre um largo segmento social. (Dantas, 2012, p. 302)
Todavia, embora seja presumida a presença da repercussão geral - quando a decisão recorrida estiver em contrassenso com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal -, ainda assim, ela não será reconhecida de forma automatizada. Pelo contrário, sujeitar-se-á a um procedimento específico, aprovado pelo Plenário da Corte, que consiste na análise, pelo Presidente, que, verificando a contradição da decisão recorrida com súmula ou jurisprudência dominante, suscita questão de ordem e leva a matéria para exame do Plenário antes mesmo da distribuição.
O Plenário poderá confirmar seu entendimento jurisprudencial, ou demonstrar a possibilidade de alterar sua própria jurisprudência. No caso de confirmação, dar-se-á imediato provimento ao recurso. Em caso de dúvida quanto à manutenção do entendimento, distribui-se o recurso, que tramitará normalmente e retornará ao Plenário para julgamento definitivo pelas vias ordinárias.
Interessante destacar que, dessa forma, há sempre a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal rever seu posicionamento, pois, mesmo presumidamente presente a repercussão geral, a Corte poderá atualizar seu entendimento e não reconhecer mais o que no passado reconhecia.
Neste diapasão, Dantas (2012, p. 304/305) explana o seguinte:
Daí a correta conclusão da questão de ordem, de que, sempre que a decisão recorrida alegadamente contrariar súmula ou jurisprudência dominante do STF, abrir-se-á uma janela de oportunidade para que o Plenário da Corte reafirme ou rediscuta o seu entendimento. No primeiro caso – o de reafirmação -, estaria evidenciado o dissídio pretoriano e incidiria a presunção legal de repercussão geral, seguida de apreciação pelo Presidente do STF hábil a restabelecer a uniformidade jurisprudencial fragilizada pela decisão do tribunal a quo; no segundo caso – de rediscussão de orientação do STF -, a par do reconhecimento expresso da repercussão geral, o recurso seguiria para regular distribuição para posterior exame do mérito pelo Plenário, com a clara sinalização de que existe grande possibilidade de o STF modificar sua jurisprudência e aderir ao entendimento da instância inferior.
Esse procedimento peculiar de verificação da repercussão geral presumida foi idealizado no julgamento da questão de ordem no recurso extraordinário nº 579.431, mas consolidou-se perante a Corte, levando à modificação do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que, mediante a edição da Emenda Regimental nº 42/2010, alterou o artigo 323 e acrescentou o artigo 323-A ao texto regimental.
Contudo, é válido destacar que a presunção só pode ser utilizada para reconhecer a existência da repercussão geral, nunca para afastá-la. Portanto, não basta que a decisão recorrida esteja em consonância com a jurisprudência dominante ou súmula do Supremo Tribunal Federal para que a repercussão seja afastada por presunção. Nessa direção, Dantas (2012, p. 306) leciona “que presunções legais podem ser concebidas em favor da existência de repercussão geral, jamais contra, e a explicação é o elevado quórum de 2/3 exigido pela Constituição para se rejeitar RE sob esse argumento”.
Dantas (2012, p. 306) continua comentando o seguinte:
(...) ao exigir o quórum qualificadíssimo, o constituinte derivado acenou à sociedade que a regra continua a ser o cabimento do RE. A exceção é a inadmissibilidade, e ela só ocorrerá, nesse caso, quando estiver claro, para ao menos oito ministros, que a questão constitucional em debate tem por plano de fundo exclusivamente a irresignação do recorrente com o resultado desfavorável, sem qualquer perspectiva de o julgamento ali pronunciado servir para além dos limites estritamente subjetivos das duas partes.
Portanto, sintetiza-se que a repercussão geral pode ser reconhecida de forma presumida, porém, não pode ser afastada por esse mesmo procedimento. Para afastá-la, mesmo que a decisão recorrida condescenda com a jurisprudência dominante da Corte, ainda assim é necessária a reafirmação de ao menos oito membros da Corte, negando provimento ao feito.
3.8 A Intervenção de Terceiros – “Amicus Curiae”
A Lei 11.418/2006, que regulamentou a repercussão geral, estabeleceu a possibilidade de que terceiros se manifestem em relação ao exame do instituto. Esse mandamento pode ser observado no parágrafo sexto do artigo 543-A, incluído pela lei supra citada no Código de Processo Civil, que preceitua: “O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”.
Por terceiro é considerado aquele que não é parte litigante no caso concreto, ou seja, é alguém alheio à demanda, que, por algum motivo, tem interesse em intervir no processo. É o denominado amicus curiae. O terceiro é um cooperador do Juiz, fornecendo-lhe algum esclarecimento que pode auxiliá-lo na prestação jurisdicional, porém, como Dantas (2012, p. 320) adverte, “Não se confunde, todavia, com o assistente, o curador especial, ou outras espécies de terceiros intervenientes no processo”.
Dantas (2012, p. 320) enfatiza ainda que “O interesse que o amicus curiae tem em intervir no processo é distinto do interesse jurídico, categoria tradicional vinculada a uma concepção individualista do processo”.
A participação do terceiro tem como finalidade evidenciar ao julgador questões relevantes provenientes da lide, mas que estão além do interesse das partes envolvidas no caso concreto. Ou seja, questões que transcendem o interesse dos litigantes e que devem ser consideradas na decisão por causar algum impacto perante a sociedade. A respeito, Dantas (2012, p. 323-324) elucida o seguinte:
[...] no exame da repercussão geral das questões constitucionais discutidas no RE, o amici curiae podem ser, por exemplo, organizações não governamentais de defesa das liberdades civis interessadas em demonstrar ao STF o impacto que as questões em debate no recurso têm perante a sociedade. Esse impacto, é bom que se diga, é exatamente o conteúdo da repercussão geral, e será examinado no juízo de admissibilidade.
Por fim, o terceiro interessado em intervir num determinado processo deverá demonstrar ao relator os motivos pelos quais merece participar. E, quando sua intervenção é consentida, tem por obrigação agir com boa-fé, lealdade e imparcialidade, e, ainda, apresentar elementos que contribuam para a adequada solução do processo.