A repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário

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10/10/2016 às 23:05
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4. CRÍTICAS À REPERCUSSÃO GERAL

Apesar de já abordado anteriormente, reitera-se que a repercussão geral foi desenvolvida com a finalidade de efetuar uma filtragem na expressiva quantidade de recursos extraordinários remetidos ao Supremo Tribunal Federal. Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal, por meio de mandamento constitucional, é formado por apenas onze Ministros e possui atribuições originárias e recursais, sendo responsável por uniformizar todo o direito constitucional da Federação. Logo, diante da absoluta impossibilidade de a Corte apreciar os milhares de processos que anualmente são remetidos à sua avaliação, foi necessário o desenvolvimento de mecanismos de filtragem que impeçam a subida da grande maioria deles. A repercussão geral é um desses mecanismos e tem como função efetuar a triagem dos processos, permitindo a ascensão apenas dos casos com relevância perante um significativo grupo social.

A princípio, parece legítima e até elogiável a atitude de barrar a elevação de muitos casos à Corte Superior, pois, assim, os Ministros poderiam despender mais tempo analisando casos realmente importantes para o país e a sociedade. Ocorre, porém, que esse método imperioso de impedir a prosperidade de uma quantidade vultosa de recursos é considerado por muitos doutrinadores como uma clara e reprovável forma de cerceamento ao direito de defesa.

4.1 Princípios Constitucionais Passíveis de Violação pela Repercussão Geral

Na Constituição Federal de 1988, está previsto um conjunto de garantias que asseguram, àqueles que foram tolhidos de seus direitos, a possibilidade de socorrer-se do judiciário para buscar a cura para sua irresignação. Essas garantias fazem parte dos direitos e garantias fundamentais e não podem ser suprimidas sob quaisquer outros argumentos. Verifica-se, na fração do texto constitucional, a previsão dos princípios norteadores das normas processuais:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

(...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

(...)

Por princípio, entende-se o início de algo, o começo, o que vem primeiro, o que orienta, portanto princípios constitucionais são um conjunto de normas que norteiam todo o arcabouço normativo de um Estado. E, devido ao fato de serem oriundos da constituição, que é a lei mãe de todo o ordenamento, não podem jamais ser violados. Desta forma, os princípios constitucionais possuem a função indispensável de harmonizar e consolidar de maneira sistemática todo o direito constitucional, e, ao mesmo tempo, exprimir uma nova concepção de direito, exatamente por representarem a gama de valores que guiaram o constituinte na feitura do texto constitucional. Os princípios constitucionais basilares das garantias processuais são: o livre acesso à justiça; o duplo grau de jurisdição; o devido processo legal; e o contraditório e ampla defesa.

4.1.1 Princípio do livre acesso à justiça ou da inafastabilidade

O princípio do livre acesso à justiça está previsto inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, que prescreve: “XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Segundo Pinho (2011, p. 139), “Esse princípio garante a todos o acesso ao Poder Judiciário. É uma decorrência do monopólio da atividade jurisdicional pelo Estado. Trata-se do direito ao processo, à atividade de distribuição da justiça exercida pelo Poder Judiciário”. Portanto, como o Estado tem o monopólio do exercício da justiça, ele também deve permitir ao cidadão que, sentindo-se tolhido de seu direito, tenha acesso aos órgãos judiciais, onde requererá a correção da injustiça que haja sofrido.

O acesso à justiça, para ser efetivo, deve ser facilitado, evitando-se empecilhos de ordem econômica, sociocultural ou jurídica, pois, essas “barreiras” fazem com que muitos abram mão do seu direito por considerarem demasiadamente dolorosos os percalços judiciais. Dessa forma, o acesso à justiça deve ser concedido a todos e da maneira mais simplificada possível.

Em tempo, cabe ressaltar que o princípio do livre acesso à justiça alcança não só direitos violados, como também direitos em risco eminente de violação, ou seja, protege tanto os direitos que de alguma forma já foram transgredidos, como acautela também aqueles que estão sob acentuada probabilidade de violação, agindo, portanto, tanto de forma restaurativa quanto preventiva.

Ademais, a expressão acesso à justiça deve ser interpretada de forma ampla, abrangendo o sentido formal e material. O sentido formal é a prerrogativa de ingressar no judiciário para proteger um direito do qual julga-se titular. Já o sentido material se verifica no acesso a um processo com decisão justa.

4.1.2 Princípio do duplo grau de jurisdição

Quanto ao duplo grau de jurisdição, há grande divergência doutrinária, pois, como o mesmo não está expresso no texto constitucional, muitos doutrinadores alegam que ele não existe em nível constitucional, tratando-se apenas de um princípio processual. Por outro lado, a melhor doutrina reconhece sua presença na Carta Magna, implicitamente, também no artigo 5º, inciso XXXV, que preceitua: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Portanto, genericamente, nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser eximida da apreciação judicial, isso evidencia que também as lesões ou ameaça a direito motivada pelo próprio Poder Judiciário merecem ser apreciadas. Em outros termos, se o judiciário, por meio de juízes ou tribunais inferiores, prolata uma decisão equivocada, que cause lesão a direito alheio, evidentemente, o prejudicado deve ter o direito de requer ao próprio judiciário que a decisão que lhe é desfavorável seja reformada. E isso é feito mediante recurso a uma instância superior à prolatora da decisão injusta.

Ademais, observa-se o princípio do duplo grau de jurisdição, também de forma implícita, no inciso LV do artigo 5º da Constituição vigente, que comanda: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Dessa forma, o comando constitucional assegura o direito do uso de recursos em busca da ampla defesa, e por questões óbvias, em regra, os recursos são remetidos à instância superior à emitente da decisão recorrida, caracterizando, portanto, o duplo grau de jurisdição.

Destarte, resta superado o questionamento quanto à inexistência do princípio do duplo grau de jurisdição na Constituição Federal, pois, como demostrado acima, apesar da forma implícita, sua presença é bastante clara.

4.1.3 Princípio do devido processo legal

Em relação ao princípio do devido processo legal, não há o que se questionar, pois está explicitamente presente no texto constitucional, conforme já mencionado anteriormente. Este importante princípio zela pelo respeito ao rito processual, assegurando aos litigantes o amplo direito de defesa. É considerado por muitos doutrinadores como o princípio mais importante do ordenamento constitucional, pois dele derivam todos os demais princípios constitucionais e também as garantias. O devido processo legal atua como base para aplicação de todos os outros institutos de proteção constitucional, independentemente do ramo do direito, inclusive no âmbito administrativo.

Moraes (2004, p. 124) faz a seguinte observação em relação ao princípio do devido processo legal:

O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

Todavia, não há dúvidas de que o princípio do devido processo legal tende a ser mais abrangente, envolvendo outros princípios, como o contraditório e ampla defesa, visto que, respeitando aos últimos, também se está atendendo ao primeiro, pois, conceder direito ao contraditório e admitir a ampla defesa, evidentemente, é obedecer o devido processo legal.

Neste mesmo sentido leciona Moraes (2014, p. 110): “O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV)”.

Desta maneira, o devido processo legal garante a aplicação e eficácia de vários outros postulados constitucionais, que, juntos, de forma sistêmica, garantem aos jurisdicionados a tutela aos direitos individuais, coletivos e difusos.

4.1.4 Princípio do contraditório e da ampla defesa

Por fim, o princípio do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal, também são de aplicação muito importante, pois, na busca por uma decisão justa e correta sobre uma situação fática concreta, é necessário que o julgador avalie cautelosamente a versão exposta por cada uma das partes litigantes, e, só após profunda ponderação, exprima seu juízo de valor, decidindo fundamentadamente, conforme as provas apresentadas.

O contraditório é o direito que a parte contrária tem de expressar a sua versão dos fatos, por seu ponto de vista, geralmente contradizendo, ao menos em parte, a versão apresentada por quem levou a lide à apreciação de um órgão julgador.

Pinho (2011, p. 144) observa que: “O princípio do contraditório, também denominado ‘audiência bilateral’, significa a aplicação de outro brocardo latino: ‘audiatur et altera pars’, isto é, a parte contrária também precisa ser ouvida”. Pinho (2011, p. 144), ressalta ainda que: “Uma das decorrências desse princípio é o da igualdade entre as partes na relação processual”, reforçando, assim, a necessidade de que sempre a parte demandada deve ser chamada para apresentar sua versão sobre a questão pleiteada.

Portanto, o princípio do contraditório garante aos litigantes uma condição de igualdade frente aos autos do processo, não tolerando a qualquer deles uma vantagem de que o outro não possa também dispor. De certa forma, o princípio remete a outro celebrado princípio constitucional, o da isonomia, que garante a todos, em iguais condições, a igualdade perante a lei.

Por sua vez, a ampla defesa consiste no pleno exercício do contraditório, garantindo a defesa da maneira mais dilatada possível. Com base no princípio da ampla defesa, deve-se conceder ao réu o pleno exercício de sua defesa, pois, o mais legítimo direito do homem é o direito de se defender. Neste caso, o verbete defender deve ser usado em seu sentido amplo, que, além do direito de se defender, abrange também o direito de recorrer.

Pinho (2011, p. 144-145) faz o seguinte apontamento em relação à ampla defesa:

A ampla defesa constitui outra decorrência lógica do princípio do contraditório. Ao réu devem ser concedidas todas as oportunidades para ver respeitado o seu direito, assegurando-se a indispensabilidade da citação, nomeação de defensor, a notificação para a pratica de atos processuais, a possibilidade de produzir provas e de apresentar arrazoados.

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Desta forma, fica evidenciado que a ampla defesa abrange todos os cenários relacionados ao exercício da defesa, abarcando: a autodefesa, que é defesa feita de forma pessoal e ativa, ressaltando que o silêncio não pode ser interpretado em desfavor do réu, e sim como autodefesa passiva; a defesa técnica, que é feita por advogado, devidamente habilitado; e a defesa efetiva, que consiste no efetivo exercício de defesa em todos os momentos do processo, contestando-se todos os atos da acusação passíveis de contestação.

Portanto, não basta que o réu possua defensor constituído, é necessário que a defesa seja efetivamente efetuada de forma satisfatória, convincente, persuasiva. Inclusive, percebendo o juiz que o exercício da defesa está displicente, ineficiente, deverá suspender o andamento do feito e intimar o réu para que constitua outro defensor, e, caso não tenha condições, deverá ser-lhe nomeado um às expensas do Estado.

A falta ou cerceamento da plenitude de defesa pode vir a gerar a nulidade absoluta do processo. Neste sentido, já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula nº. 523, que preceitua: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. Embora a referida súmula trate de matéria penal, ela traduz as consequências de uma defesa efetuada de forma inadequada.

4.2 Do Cerceamento de Defesa

Analisando-se o que foi discorrido sobre cada um dos princípios anteriormente mencionados, pode-se afirmar que a violação de qualquer um deles ensejaria no cerceamento de defesa, caracterizando uma inconstitucionalidade. Esse argumento é reforçado pelo parágrafo único do artigo 60 da Constituição Federal, que preceitua:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta

(...)

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(...)

IV - os direitos e garantias individuais.

Todos os princípios anteriormente citados fazem parte dos direitos e garantias fundamentais, previstos no Título II da Constituição Federal de 1988, que, por ser cláusula pétrea, não pode ser objeto de emendas constitucionais que restrinjam seu alcance. Portanto, se se considerar que o instituto da repercussão geral viola algum dos referidos princípios, a Emenda Constitucional nº 45/2004, que o incluiu, seria inconstitucional, e não poderia ter adentrado ao ordenamento nacional. Por conseguinte, a Lei 11.418/2006, que regulamentou o instituto, também seria inconstitucional, não podendo ter validade perante as demais normas positivadas.

Contudo, como já mencionado em outras oportunidades, a interpretação da Constituição Federal deve ser efetuada de forma sistemática e ordenada com os anseios sociais dos dias atuais. Pois, em nada adiantaria admitir-se que milhares de processos chegassem ao Supremo Tribunal Federal, se os mesmos ficassem esquecidos nos escaninhos da Corte, visto a absoluta impossibilidade de onze Ministros julgar todos eles.

Talvez uma solução seria aumentar consideravelmente a estrutura do Supremo Tribunal Federal e elevar para cem o número de Ministros. Mas, ainda assim, poderia não ser suficiente para suprir a demanda. Além do mais, com o aumento significativo do número de membros, com certeza, o nível intelectual da Corte seria diminuído, já que pessoas não tão preparadas ou comprometidas poderiam vir a fazer parte do Tribunal. Isso sujeitaria a sociedade e o País a decisões com menor rigor técnico, talvez até inconsequentes, causando grande insegurança jurídica. Obviamente, sem contar o custo que a reestruturação do Supremo Tribunal Federal teria para os cofres público.

Deve-se levar em conta, também, o fato de que não teria o menor sentido os Ministros ficarem decidindo um a um, centenas ou até milhares de casos com grande similaridade entre si. Inclusive pelo risco eminente de as decisões divergirem, o que também levaria à insegurança jurídica. Portanto, diante dos argumentos apresentados, certamente inchar a Corte não solucionaria a crônica crise que atinge o Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, torna-se plausível o incremento de mecanismos de filtragem, que impeçam de ascender ao Supremo Tribunal Federal a grande maioria dos recursos, permitindo assim que a Corte apenas se envolva com casos de grande importância social. É interessante também que essas decisões tenham efeito vinculante, pois, assim, com apenas uma decisão, podem-se solucionar inúmeros casos similares.

Em tempo, vale destacar que o cerceamento de defesa não ocorre apenas em impedir o acesso à justiça ou em negar o andamento de um recurso. Ocorre cerceamento de defesa quando não se profere uma decisão justa, devido à pressa ou displicência do julgador, assim como também ocorre cerceamento quando a decisão não é proferida num prazo razoável.

Neste caso, também há violação a princípios constitucionais: ao princípio da celeridade processual, previsto no inciso LXXVIII, do artigo 5º, que prescreve o direito à razoável duração do processo; e também ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto no inciso III do artigo 1º, ambos da Constituição Federal, pois, sem dúvida, a demasiada demora na aquiescência do direito a quem o detém gera a este um desgaste desumano. Isso quando o sujeito do direito não perece antes de recebê-lo.

4.3 Interpretação Ponderada dos Princípios Constitucionais

Por fim, apesar dos pontos passíveis de questionamentos, conclui-se que a aplicabilidade do instituto da repercussão geral não causa cerceamento de defesa, pois, o referido instituto foi criado por uma Emenda Constitucional, portanto, está no mesmo patamar hierárquico do restante das normas constitucionais, inclusive dos princípios ensejadores das garantias processuais. Ademais, é importante que as normas constitucionais sejam interpretadas num contexto sistêmico, e não isoladamente, pois em conjunto é possível efetuar ponderações em busca da solução mais adequada, enquanto que isoladamente haveria choques entre si. Assim, ao invés de se privilegiar determinada norma ou princípio, em detrimento de outra do mesmo nível hierárquico, numa interpretação isolada, optando-se pela intepretação sistemática, as duas serão sobrepesadas e consideradas na decisão, de forma que haja consonância entre elas, para o bem da justiça.

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