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O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais

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20/07/2004 às 00:00
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5. O direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional

O art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, afirma que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Entende-se que essa norma garante a todos o direito a uma prestação jurisdicional efetiva.

A sua importância, dentro da estrutura do Estado Democrático de Direito, é de fácil assimilação. É sabido que o Estado, após proibir a autotutela, assumiu o monopólio da jurisdição. Como contrapartida dessa proibição, conferiu aos particulares o direito de ação, até bem pouco tempo compreendido como direito à solução do mérito

A concepção de direito de ação como direito a sentença de mérito não poderia ter vida muito longa, uma vez que o julgamento do mérito somente tem importância – como deveria ser óbvio – se o direito material envolvido no litígio for realizado - além de reconhecido pelo Estado-Juiz. Nesse sentido, o direito à sentença deve ser visto como direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito substancial, o que significa direito à efetividade em sentido estrito.

Mas, não há como esquecer, quando se pensa no direito à efetividade em sentido lato, de que a tutela jurisdicional deve ser tempestiva e, em alguns casos, ter a possibilidade de ser preventiva. Antigamente, questionava-se sobre a existência de direito constitucional à tutela preventiva. Dizia-se, simplesmente, que o direito de ir ao Poder Judiciário não incluía o direito à "liminar", desde que o jurisdicionado pudesse afirmar lesão ao direito e vê-la apreciada pelo juiz.

Atualmente, diante da inclusão da locução "ameaça a direito" na verbalização do denominado princípio da inafastabilidade, não há mais qualquer dúvida sobre o direito à tutela jurisdicional capaz de impedir a violação do direito. [33]

Na verdade, essa conclusão é pouco mais do que óbvia, especialmente em face dos direitos ditos invioláveis, alguns erigidos a direitos fundamentais pela própria Constituição. Em outros termos, o direito à tutela inibitória está contido na própria estrutura da norma que institui algumas espécies de direitos, pois não há como conceber a existência de norma que outorgue direito inviolável sem conferir direito à inibição do ilícito.

Como se vê, o direito à inibição do ilícito está no plano do direito material, pois decorre da sanção que compõe a própria norma que outorga o direito, e não na esfera do direito processual. O processo é somente técnica para a prestação da tutela inibitória, pois essa última já é garantida pelo direito material. Porém, se o processo, diante da natureza de algumas situações de direito substancial, não estiver disposto de modo a viabilizar a outorga da tutela inibitória àquele que a ela tem direito, certamente estará negando o direito fundamental à tutela jurisdicional preventiva.

Importa, ainda, o direito à tempestividade da tutela jurisdicional [34]. O direito à tempestividade não só tem a ver com a tutela antecipatória, como também com a compreensão da duração do processo de acordo com o uso racional do tempo processual por parte do réu e do juiz.

A tutela do direito geralmente é conferida ao autor ao final do procedimento – quando a sentença for de procedência, como é óbvio. Quando há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, admite-se que o autor possa, quando lhe for possível demonstrar a probabilidade do direito que afirma possuir, requerer a antecipação da tutela almejada. Mas, essa é apenas uma das espécies de tutela antecipatória. As outras duas, vale dizer, a baseada em abuso de direito de defesa (art. 273, II, CPC) e a fundada em incontrovérsia de parcela da demanda (art. 273, 6º, CPC), têm íntima relação com a necessidade de distribuição do ônus do tempo do processo.

Pretender distribuir o tempo implica em vê-lo como ônus, e essa compreensão exige a prévia constatação de que ele não pode ser visto como algo neutro ou indiferente ao autor e ao réu. Se o autor precisa de tempo para receber o bem da vida a que persegue, é lógico que o processo – evidentemente que no caso de sentença de procedência – será tanto mais efetivo quanto mais rápido. De modo que a técnica antecipatória baseada em abuso de direito de defesa ou em incontrovérsia de parcela da demanda possui o objetivo fundamental de dar tratamento racional ao tempo do processo, permitindo que decisões sobre o mérito sejam tomadas no seu curso, desde que presentes o abuso do direito de defesa ou a incontrovérsia de parcela da demanda. Para tanto, parte-se da premissa de que não é racional obrigar o autor a suportar a demora do processo quando há abuso do direito de defesa ou quando parcela da demanda pode ser definida no curso do processo.

Porém, como já anunciado, a questão da tempestividade não se resume à problemática da tutela antecipatória, devendo ser sempre analisada a partir da utilização racional do tempo do processo pelo réu e pelo juiz. Se o réu tem direito à defesa, não é justo que o seu exercício extrapole os limites do razoável. Da mesma forma, haverá lesão ao direito à tempestividade caso o juiz entregue a prestação jurisdicional em tempo injustificável diante das circunstâncias do processo e da estrutura do órgão jurisdicional.

Para resumir, basta evidenciar que há direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e, quando houver necessidade, preventiva. A compreensão desse direito depende da adequação da técnica processual aos direitos, ou melhor, da visualização da técnica processual a partir das necessidades do direito material. Se a efetividade (em sentido lato) requer adequação e a adequação deve trazer efetividade, o certo é que os dois conceitos podem ser decompostos para melhor explicar a necessidade de adequação da técnica às diferentes situações de direito substancial. Pensando-se a partir daí fica mais fácil visualizar a técnica efetiva, contribuindo-se para sua otimização e para que a efetividade ocorra do modo menos gravoso ao réu.

Tal direito não poderia deixar de ser pensado como fundamental, uma vez que o direito à prestação jurisdicional efetiva é decorrência da própria existência dos direitos e, assim, a contrapartida da proibição da autotutela. O direito à prestação jurisdicional é fundamental para a própria efetividade dos direitos, uma vez que esses últimos, diante das situações de ameaça ou agressão, sempre restam na dependência da sua plena realização. Não é por outro motivo que o direito à prestação jurisdicional efetiva já foi proclamado como o mais importante dos direitos, exatamente por constituir o direito a fazer valer os próprios direitos.


6. O enquadramento do direito à efetividade da tutela jurisdicional na classificação funcional dos direitos fundamentais

Como é fácil perceber, diante dos itens que trataram do aspecto funcional dos direitos fundamentais e do direito à efetividade da tutela jurisdicional, esse direito não pode ser pensado como direito de defesa, ou seja, como direito de natureza negativa, uma vez que consiste, como é evidente, em um direito de exigir uma prestação do Estado.

Se isso é óbvio, algumas dúvidas podem surgir diante da idéia de direitos a prestações. O direito à prestação jurisdicional efetiva não pode ser visto como um direito a uma prestação fática. Mas também não pode ser visto apenas como i) o direito à técnica processual adequada, ii) o direito de participar através do procedimento adequado ou iii) o direito à resposta do juiz. Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efetiva engloba esses três direitos, pois exige técnica processual adequada (norma processual), instituição de procedimento capaz de viabilizar a participação (p, ex., ações coletivas) e, por fim, a própria resposta jurisdicional.

Note-se, em primeiro lugar, que o direito à tutela jurisdicional efetiva tem relação com a possibilidade de participação, e por isso pressupõe um direito à participação (o Teilhaberechte dos alemães). Nessa linha, a necessidade de participação fez Canotilho relacionar o procedimento coletivo com o direito a um procedimento justo [35]. Trata-se do procedimento capaz de conferir a possibilidade de participação para a proteção dos direitos fundamentais e para a reivindicação dos direitos sociais.

Acontece que essa participação deve ser feita perante um procedimento idôneo à proteção dos direitos, até mesmo porque o direito à proteção não exige somente normas de conteúdo material, mas igualmente normas processuais [36]. Isso quer dizer que o direito à proteção dos direitos fundamentais tem como corolário o direito a pré-ordenação das técnicas adequadas à efetividade da tutela jurisdicional, as quais não são mais do que respostas do Estado ao seu dever de proteção.

Porém, o direito à tutela jurisdicional não só requer a consideração dos direitos de participação e de edição de técnicas processuais adequadas, como se dirige à obtenção de uma prestação do juiz. Essa prestação do juiz, assim como a lei, também pode significar, em alguns casos, concretização do dever de proteção do Estado em face dos direitos fundamentais. A diferença é que a lei é resposta abstrata do legislador, ao passo que a decisão é resposta do juiz diante do caso concreto. Ou seja, há direito, devido pelo Estado-legislador, à edição de normas de direito material de proteção, assim como de normas de direito instituidoras de técnicas processuais capazes de propiciar efetiva proteção [37]. Mas o Estado-Juiz também possui dever de proteção, que realiza no momento em que profere a sua decisão a respeito dos direitos fundamentais.

Entretanto, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, quando se dirige contra o juiz, não exige apenas a efetividade da proteção dos direitos fundamentais, mas sim que a tutela jurisdicional seja prestada de maneira efetiva para todos os direitos. Tal direito fundamental, por isso mesmo, não requer apenas técnicas e procedimentos adequados à tutela dos direitos fundamentais, mas sim técnicas processuais idôneas à efetiva tutela de quaisquer direitos. De modo que a resposta do juiz não é apenas uma forma de se dar proteção aos direitos fundamentais, mas sim uma maneira de se dar tutela efetiva a toda e qualquer situação de direito substancial, inclusive aos direitos fundamentais que não requerem proteção, mas somente prestações fáticas do Estado (prestações em sentido estrito ou prestações sociais).

Como se vê, embora a resposta do juiz sempre atenda ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, somente em alguns casos o objeto da decisão é outro direito fundamental, ocasião em que, na realidade, existe o direito fundamental à tutela jurisdicional ao lado do direito fundamental posto à decisão do juiz. Quando esse outro direito fundamental requer prestação de proteção, não há dúvida que a decisão configura evidente prestação jurisdicional de proteção. E no caso em que a decisão não trata de direito fundamental? Frise-se que, embora o juiz, nesse caso, não decida sobre direito fundamental, ele obviamente responde ao direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional. Nessa hipótese, como a prestação do juiz não decide sobre direito fundamental, ela deverá ser considerada diante do próprio direito fundamental à tutela jurisdicional.

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Se o juiz não tem apenas a função de resolver litígios, porém a de zelar pela idoneidade da prestação jurisdicional, sem poder resignar-se a aplicar a técnica processual que possa conduzir a uma tutela jurisdicional inefetiva, é certo dizer que o seu dever não se resume a uma mera resposta jurisdicional, pois exige a prestação de uma tutela jurisdicional efetiva. Ou seja, o dever do juiz, assim como o do legislador ao instituir a técnica processual adequada, está ligado ao direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional, compreendido como um direito necessário para que se dê proteção a todos os outros direitos.

Nesse sentido, compreendida a necessidade de tutela – aí entendida como proteção – dos direitos através do processo jurisdicional, é correto pensar que o juiz e o legislador, ao zelarem pela técnica processual adequada à efetividade da prestação jurisdicional, prestam proteção aos direitos e, por conseqüência, ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, os quais, não fosse assim, de nada valeriam.

O jurisdicionado não é obrigado a se contentar com um procedimento inidôneo à tutela jurisdicional efetiva, pois o seu direito não se resume à possibilidade de acesso ao procedimento legalmente instituído. Com efeito, o direito à tutela jurisdicional não pode restar limitado ao direito de igual acesso ao procedimento estabelecido, ou ao conceito tradicional de direito de acesso à justiça. Não importa apenas dizer que todos devem ter iguais oportunidades de acesso aos procedimentos e aos advogados, e assim à efetiva possibilidade de argumentação e produção de prova.

Será que o direito à tutela jurisdicional é apenas o direito ao procedimento legalmente instituído, não importando a sua capacidade de atender de maneira idônea o direito material? Ora, não tem cabimento entender que há direito fundamental à tutela jurisdicional, mas que esse direito pode ter a sua efetividade comprometida se a técnica processual houver sido instituída de modo incapaz de atender ao direito material. Imaginar que o direito à tutela jurisdicional é o direito de ir a juízo através do procedimento legalmente fixado, pouco importando a sua idoneidade para a efetiva tutela dos direitos, seria inverter a lógica da relação entre o direito material e o direito processual. Se o direito de ir a juízo restar na dependência da técnica processual expressamente presente na lei, o processo é que dará os contornos do direito material. Mas, deve ocorrer exatamente o contrário, uma vez que o primeiro serve para cumprir os desígnios do segundo. Isso significa que a ausência de técnica processual adequada para certo caso conflitivo concreto representa hipótese de omissão que atenta contra o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional.

Se o dever do legislador editar o procedimento idôneo pode ser reputado descumprido diante de determinado caso concreto, o juiz, diante disso, obviamente não perde o seu dever de prestar a tutela jurisdicional efetiva. Por tal razão, o juiz tem o dever de interpretar a legislação à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional, estando obrigado a extrair da regra processual, sempre com a finalidade de efetivamente tutelar os direitos, a sua máxima potencialidade, desde – e isso nem precisaria ser dito – que não seja violado o direito de defesa.

Portanto, deseja-se propor, nesse momento, que o direito à tutela jurisdicional, ainda que sem perder sua característica de direito de iguais oportunidades de acesso à justiça, passe a ser visto como o direito à efetiva proteção do direito material, do qual são devedores o legislador e o juiz, que então passa a ter um verdadeiro dever de se comportar de acordo com o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5281. Acesso em: 18 abr. 2024.

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