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O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais

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20/07/2004 às 00:00
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9. Significado da aplicabilidade imediata do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

Está escrito no art. 5º, §1º, da Constituição Federal, que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". [85] O que importa, nesse momento, é saber o significado e o alcance dessa norma em relação ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Ao se afirmar que a norma relativa a um direito fundamental possui aplicabilidade imediata, deseja-se evidenciar sua força normativa. Como a essa norma não se pode atribuir função retórica, não há como supor que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva somente possa se expressar em conformidade com a lei, e que assim seja dela dependente.

De modo que a norma do art. 5º, §1º, da Constituição Federal, já seria suficiente [86] para demonstrar a tese de que o juiz não só deve interpretar a lei processual em conformidade com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, como ainda deve concretizá-lo, através da via interpretativa, no caso de omissão ou de insuficiência de lei.

De qualquer forma, ainda que os princípios da força normativa da Constituição e da efetividade possam parecer uma superafetação diante da norma que afirma que o direito à tutela jurisdicional efetiva tem aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º, CF), parece importante mencioná-los, especialmente porque o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, embora se dirija contra o Estado, inclusive contra o juiz, repercute sobre a esfera jurídica da parte, e assim pode ser pensado – como se verá no item 7.11 – como um direito de eficácia vertical, mas com eficácia lateral sobre os particulares.

Ou seja, embora a aplicabilidade imediata desse direito seja inegável, a tarefa interpretativa do juiz, por repercutir na esfera jurídica de alguém que não faz parte da relação vertical estabelecida em virtude do direito, não pode deixar de considerar os princípios que com ele possam colidir no caso concreto.

Como diz Hesse, "a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação". [87] Ou seja, o princípio da força normativa da Constituição [88] dá base às interpretações que conferem aos direitos fundamentais, diante das circunstâncias concretas, uma eficácia ótima [89].

O princípio da efetividade [90] (relativo à interpretação constitucional), por sua vez, sintetiza a idéia de que os direitos fundamentais devem ser interpretados em um sentido que lhes confira a maior efetividade possível. Ou melhor, no caso de dúvida deve prevalecer a tese que dê a maior efetividade possível ao direito fundamental [91].


10. O dever de o juiz conformar o procedimento

10.1 O dever de o juiz conformar o procedimento adequado ao caso concreto como decorrência do direito de proteção e do direito à tutela jurisdicional efetiva

Como já foi dito, o dever de proteção se dirige contra o Poder Público, e não apenas, como se poderia pensar, contra o legislador. Se o Estado tem o dever de proteger os direitos, seria incoerente supor que esse dever depende apenas de ações normativas.

O dever de proteção requer, é certo, regras de direito material. Mas não pode se resumir a isso. Depende, ainda, de ações fáticas do Estado - como, por exemplo, da atuação da Administração Pública na proteção do consumidor, da saúde pública e do meio ambiente – e da prestação jurisdicional.

Ademais, a proteção, mesmo no plano normativo, não pode ficar restrita a normas de direito material, pois o processo civil também se constitui em mecanismo de proteção dos direitos fundamentais, seja para evitar a violação ou o dano ao direito fundamental, seja para conferir-lhe o devido ressarcimento.

Por ser um instrumento de proteção, é evidente que o processo civil não pode deixar de se estruturar de maneira idônea à efetiva tutela dos direitos. Note-se, aliás, que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva não requer apenas a proteção dos direitos fundamentais, mas sim a tutela de quaisquer direitos. Tratando-se da tutela de direitos não-fundamentais, o único direito fundamental em jogo é o próprio direito à efetividade da tutela, que obviamente não se confunde com o direito objeto da decisão. É por esse motivo, aliás, que o direito de ação, ou o direito de ir ao Poder Judiciário, deve ser pensado como o direito à efetiva tutela jurisdicional, para o qual não basta uma sentença, mas sim a possibilidade de efetivação concreta da tutela buscada. A doutrina espanhola mais moderna, ao se debruçar sobre o art. 24 [92] da Constituição Espanhola de 1978, vem deixando de lado as velhas discussões em torno da ação como mero direito de ir a juízo ou com simples direito a uma sentença de mérito. David Vallespín Pérez, por exemplo, em livro que acaba de ser publicado (2002), assim escreve: "El derecho a la tutela judicial efectiva que consagra el art. 24 CE no agota su contenido en la exigencia de que el interessado tenga acceso a los Tribunales de Justicia, pueda ante ellos manifestar y defender su pretensión jurídica en igualdad con las otras partes y goce de la libertad de aportar todas aquellas pruebas que procesalmente fueran oportunas y admisibles, ni se limita a garantizar la obtención de una resolución de fondo, fundada en derecho, sea o no favorable a la pretensión formulada, si concurren todos los requisitos procesales para ello. Exige también que el ‘fallo se cumpla’ y que el recurrente sea repuesto en su derecho y compensado, si hubiere lugar a ello, por el daño sufrido. Lo contrario sería convertir las decisiones judiciales y el reconocimiento de los derechos que ellas comportan en favor de alguna de las partes en meras declaraciones de intenciones" [93].

O que falta, porém, é atentar para que, se a técnica processual é imprescindível para a efetividade da tutela dos direitos, não se pode supor que, diante da omissão do legislador, o juiz nada possa fazer. Isso por uma razão simples: o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional não se volta apenas contra o legislador, mas também se dirige contra o Estado-Juiz. Por isso, é absurdo pensar que o juiz deixa de ter dever de tutelar de forma efetiva os direitos somente porque o legislador deixou de editar uma norma processual mais explícita. [94]

Como conseqüência disso, há que se entender que o cidadão não tem simples direito à técnica processual evidenciada na lei, mas sim direito a um determinado comportamento judicial que seja capaz de conformar a regra processual com as necessidades do direito material e dos casos concretos.

Como é óbvio, não se pretende dizer que o juiz deve "criar" a técnica processual adequada, ou mesmo pensar o processo civil segundo seus próprios critérios. O que se deseja evidenciar é que o juiz tem o dever de interpretar a legislação processual à luz dos valores da Constituição Federal [95]. Como esse dever gera o de pensar o procedimento em conformidade com as necessidades do direito material e da realidade social, é imprescindível ao juiz compreender as tutelas devidas ao direito material e perceber as diversas necessidades da vida das pessoas.

Nesse sentido não é suficiente pensar que, diante de duas interpretações possíveis da regra processual, o juiz deve preferir aquela que não seja contrária à Constituição. É que, diante de certa regra processual, podem existir duas interpretações que sejam razoáveis na perspectiva constitucional. Nesse caso, o juiz tem o dever de preferir a interpretação que garanta à máxima efetividade à tutela jurisdicional, considerando sempre o objeto que deve ser tutelado (a tutela do direito material) e a realidade social.

Diante de uma visão simplificadora, alguém poderia supor que estamos propondo que o juiz retire a máxima efetividade da regra processual, pouco importando o resultado de sua interpretação. Não se trata disso, porém. Deixe-se claro que o juiz não tem a possibilidade – e nem poderia ter – de interpretar a regra processual como se fosse alheio aos valores da Constituição. O seu dever é interpretar a regra processual para dar a máxima efetividade à tutela jurisdicional, ou mesmo suprir eventual omissão legislativa através da aplicação do critério da harmonização, compreendidas as necessidades do caso concreto e considerados os valores constitucionais que dão proteção ao réu,, como o direito de defesa.

10.2 Normas como princípios e regras

Robert Alexy, ao desenvolver sua teoria dos direitos fundamentais, adverte que a distinção qualitativa entre regras e princípios tem importante papel nesse setor. Afirma que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, ao passo que regras são normas que podem ser cumpridas ou não, uma vez que, se uma regra é válida, há de ser feito exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Por isso, os princípios, ao contrário da regras, são chamados de mandatos de otimização, que podem ser realizados em diferentes graus, consoante as possibilidades jurídicas e fáticas [96].

As regras contêm determinações em um âmbito fática e juridicamente possível. Enquanto isso, a realização dos princípios depende das possibilidades jurídicas e fáticas. Essas possibilidades são condicionadas pelos princípios opostos, e assim exigem a consideração dos pesos dos princípios em colisão segundo as circunstâncias do caso concreto [97].

Note-se que, no caso de conflito de regras, o problema é de validade, enquanto que, na hipótese de colisão de princípios, a questão é de peso [98]. Quando há colisão de princípios, um deve ceder diante do outro, conforme as circunstâncias do caso concreto. Isso significa que, aí, não há como se declarar a invalidade do princípio de menor peso, uma vez que ele prossegue íntegro e válido no ordenamento, podendo merecer prevalência, em face do mesmo princípio que o precedeu, diante de outro caso concreto. [99]

Esse juízo, pertinente ao peso dos princípios, é um juízo de ponderação, que assim permite que os direitos fundamentais tenham efetividade diante de qualquer caso concreto, considerados os princípios que com eles possam colidir.

Frise-se que os direitos fundamentais têm natureza de princípio. Assim, se os princípios constituem mandatos de otimização, dependentes das possibilidades, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (por exemplo) – que então pode ser chamado de princípio à tutela jurisdicional efetiva – também constitui um mandato de otimização que deve ser realizado diante de todo e qualquer caso concreto, dependendo somente de suas possibilidades, e assim da consideração de outros princípios ou direitos fundamentais que com ele possam se chocar.

Como se vê, a partir do momento em que se constata que o direito à tutela jurisdicional efetiva possui natureza principial, deduz-se a conseqüência de que ele não se submete à lógica da aplicação das regras. Esse direito fundamental não pode ser negado na perspectiva da validade, pois o que importa, para sua efetiva incidência, é o caso concreto, e assim a consideração de outros princípios que a ele possam se contrapor. Ou seja, ele será sempre válido, ainda que tenha que vir a ser harmonizado com outro princípio diante das circunstâncias de um caso concreto.

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Isso quer dizer que, com a distinção entre princípio e regra, também resta fácil ao juiz prestar a tutela jurisdicional efetiva, ainda que exista omissão legislativa. Basta-lhe harmonizar esse direito fundamental e o outro princípio que possa com ele colidir, considerando as circunstâncias do caso concreto, e especialmente as regras da "adequação" e da "necessidade".

10.3 Diferença entre interpretação conforme a Constituição, declaração parcial de nulidade sem redução de texto e interpretação de acordo com a Constituição

Demonstrada a natureza principial do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, não pode restar dúvida quanto ao dever de o juiz conformar o procedimento adequado ao caso concreto, utilizando a técnica processual capaz de dar efetividade ao direito, desde que não seja violado princípio ou direito que com ele se choque.

Para chegar à técnica processual adequada à situação concreta, o juiz, além de partir do princípio da efetividade da tutela jurisdicional, deve considerar a omissão legislativa ou a regra processual incapaz de propiciar a efetividade da prestação jurisdicional. A conclusão a respeito da omissão ou da inidoneidade da regra processual exige a prévia análise da tutela prometida pelo direito material e das necessidades concretas da parte. Se a conclusão for no sentido de que a omissão ou a regra processual, diante das exigências do direito material e da realidade social, impedem a prestação jurisdicional na forma efetiva, o juiz não pode fugir do dever de aplicar a técnica processual adequada ao caso concreto. Pouco importa a omissão ou a inidoneidade da regra processual, uma vez que o juiz, diante do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, tem o dever de aplicar a técnica processual hábil à tutela do direito material.

Mas, para tanto, é necessário compreender que o sistema processual deve ser interpretado de acordo com a Constituição, especialmente com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Quando se pensa nisso, muitas vezes confunde-se interpretação de acordo com a Constituição, declaração parcial de nulidade sem redução de texto e interpretação conforme a Constituição [100], embora essas também sejam importantes para a realização do direito à tutela jurisdicional efetiva.

As duas últimas são instrumentos de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos [101], ao passo que a primeira representa apenas método de interpretação da lei. A diferença entre as duas últimas reside no fato de que a interpretação conforme deve ser utilizada nos casos de leis manifestamente inconstitucionais e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto nas hipóteses de leis em princípio compatíveis com a Constituição [102].

A interpretação conforme estabelece uma única interpretação conforme a Constituição, declarando que todas as outras são com ela incompatíveis. Na declaração parcial de nulidade, declara-se a inconstitucionalidade de algumas interpretações, preservando-se a literalidade do texto legal. Na declaração parcial de nulidade os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública ficam proibidos de realizar determinadas interpretações, enquanto que, na interpretação conforme, estabelece-se uma única interpretação cabível [103].

Em ação direta de inconstitucionalidade, o STF poderá julgar parcialmente procedente o pedido para declarar inconstitucionais todas as interpretações possíveis, exceto uma, estabelecida expressamente no acórdão, ou para declarar inconstitucionais algumas interpretações, nele hipotetizadas. No primeiro caso há interpretação conforme, que possui efeitos erga omnes e vinculante sobre todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, impedindo-os de dar interpretação diversa. No segundo caso há declaração parcial de nulidade, também com efeitos erga omnes e vinculante, proibindo os juízes e a Administração Pública de adotar qualquer uma das interpretações declaradas inconstitucionais. [104]

No controle difuso [105], o juiz poderá deparar-se com lei processual (por exemplo) substancialmente inconstitucional ou com lei processual substancialmente constitucional, mas com possíveis interpretações inconstitucionais. Na primeira hipótese, verificando o juiz que a lei não é inconstitucional quando interpretada em um determinado sentido, deve adotá-la expressamente como razão para decidir. Quando o juiz conclui que algumas interpretações da lei processual são inconstitucionais, além de declará-las, deve apontar a interpretação que irá pautar o julgamento, embora possa existir outra compatível com a Constituição.

A interpretação conforme e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto permitem ao juiz, no controle difuso, i) interpretar a lei processual (sempre por exemplo) para estabelecer a única interpretação compatível com a Constituição [106], bem como ii) interpretar a lei processual para, eliminando algumas interpretações inconstitucionais, declarar a adequada ao caso concreto, ainda que possam existir outras compatíveis com o texto constitucional. Nesses casos, como é óbvio, não há que se pensar em efeito vinculante, a impedir outros juízes e órgãos da Administração Pública de decidir em sentido contrário.

Ou seja, o juiz, diante do direito fundamental à tutela jurisdicional, além de ter o dever de rejeitar as interpretações que a ele não correspondem, deve optar expressamente pela interpretação que lhe confira a maior efetividade [107].

Frise-se, porém, que a interpretação de acordo com a Constituição não se constitui em instrumento de controle da constitucionalidade, mas sim em método de interpretação [108]. O juiz é obrigado a interpretar as normas de acordo com a Constituição ou, em uma acepção mais rente ao que aqui interessa, de acordo com os direitos fundamentais. Essa última afirmação é decorrência imediata da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ou melhor, da força jurídica objetiva desses direitos. Fala-se, nesse sentido, em eficácia irradiante dos direitos fundamentais, "no sentido de que esses, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional". [109] Tal eficácia irradiante é que faz surgir a tese da interpretação de acordo com os direitos fundamentais.

Entretanto, não seria possível esquecer dos casos em que não existe legislação, ou que essa é insuficiente, hipóteses denominadas por Vieira de Andrade como de "falta de lei". [110] Nesse caso – esclarece o jurista português -, "o princípio da aplicabilidade direta vale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se a sua ‘perfeição’. Isto é, a sua auto-suficiência baseada no caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui incluídos o dever dos juízes e dos demais operadores jurídicos de aplicarem os preceitos constitucionais e a autorização para com que esse fim os concretizarem por via interpretativa". [111]

Na hipótese que o Estado se omite em editar técnica processual adequada à efetiva prestação da tutela jurisdicional, o juiz deve justificar que a sua aplicação é necessária em face das necessidades do direito material (das tutelas que devem ser prestadas para que ocorra a efetividade do direito). Partindo-se da premissa de que não há dúvida de que o juiz deve prestar a tutela efetiva, é fácil justificar, em conformidade com a Constituição, que determinada técnica é imprescindível à tutela da situação concreta.

Assim, se o juiz, diante da lei processual, é obrigado a optar pela interpretação de acordo com o direito fundamental, cabe a ele, em caso de omissão ou de insuficiência legal, aplicar diretamente a norma que institui o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, considerando os princípios que com ele possam se chocar diante do caso concreto.

10.4 As regras que conferem ao juiz o poder de conceder tutela antecipatória no processo de conhecimento e de determinar a chamada medida executiva "necessária" (arts. 273, 461, 461-A, CPC e 84, CDC), ao mesmo tempo em que apontam para a idéia de que a tipificação legal não é a melhor solução para a prestação jurisdicional, deixam claro o seu dever de concretizar o direito fundamental à tutela jurisdicional diante do caso concreto

A possibilidade de o juiz conceder tutela antecipatória no processo de conhecimento, analisando apenas o fundado receio de dano, o abuso de direito de defesa e a incontrovérsia de parcela da demanda, entra em confronto com a tese de que a tutela antecipatória deve estar prevista em procedimentos especiais específicos.

Na verdade, a outorga de poder para a concessão de tutela antecipatória no procedimento comum deriva da percepção de que a necessidade da tutela antecipatória deve ser aferida em face do caso concreto, verificando-se a situação de perigo que pode tornar imprescindível a antecipação da tutela, o modo como a defesa é exercida e o fato de parcela da demanda ter se tornado incontroversa no curso do processo.

A possibilidade da concessão da tutela antecipatória nessas hipóteses parte da premissa de que a efetividade da tutela jurisdicional depende da consideração de todas essas situações, as quais obviamente não podem ser pensadas em abstrato, mas apenas em face das situações conflitivas concretas.

O mesmo fundamento está atrás da idéia de se dar ao juiz o poder de conceder a medida executiva necessária e adequada, conforme previsões dos arts. 461 e 461-A do CPC e 84 do CDC. Ou seja, a impossibilidade de o legislador prever, diante das diferentes situações de conflito, i) quando a tutela antecipatória deve ser concedida e ii) as medidas executivas necessárias e adequadas, fez com que esse poder fosse transferido ao juiz. Note-se, contudo, que essas previsões legais são apenas indicativos de que o juiz não pode deixar de ter poder para aplicar a técnica processual adequada, pois se fosse aceitável a tese de que a tarefa do juiz está subordinada à expressa previsão de meio executivo, a legislação processual poderia negar-lhe as ferramentas necessárias para o cumprimento do seu dever e para o respeito ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Por isso mesmo, não se pode pensar que o juiz assumiu poder apenas para tratar das medidas adequadas em face das obrigações de não-fazer, de fazer ou de entregar coisa. Perceba-se que, se o juiz incorporou o dever de prestar tutela antecipatória diante das necessidades das variadas situações de direito substancial, ele evidentemente passou a ter poder para conferir-lhe efetividade, mediante a aplicação do meio executivo adequado. Até porque seria absurdo pensar que o juiz tem poder para conceder a tutela antecipatória, mas não para fazê-la efetiva.

Assim, no caso em que se mostra necessária a tutela antecipatória de soma em dinheiro, é errado supor que o juiz deva aplicar as modalidades executivas que servem à tradicional "execução de quantia certa", apenas porque não foi expressamente prevista medida executiva adequada, como a multa. Diante dessa hipótese, basta ao juiz justificar a necessidade dessa técnica executiva, aludindo à situação carente de tutela, para que então a multa possa ser aplicada com base no direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Na realidade, o juiz tem poder-dever de dar efetividade ao seu trabalho, prestando a tutela jurisdicional de forma efetiva. Assim, qualquer que seja a situação concreta, o juiz não pode se esquivar do seu dever de determinar o meio executivo adequado, cruzando os braços diante de omissão legislativa [112] ou de falta de clareza da lei, como se o dever de prestar a tutela jurisdicional não fosse seu, mas estivesse na exclusiva dependência do legislador.

10.5 A realização do direito à efetividade da tutela jurisdicional não depende apenas da análise do direito de defesa, mas também da consideração do direito material em litígio e das "tutelas dos direitos"

O direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional obviamente exige a análise da esfera jurídica do réu. Porém, não basta pensar em direito de defesa, pois isso não é suficiente para legitimar o emprego da técnica processual.

A adequação da técnica processual deve ser medida em face das necessidades do direito material e da situação concreta, vale dizer, das necessidades de tutela do direito material, que muitas vezes depende de confronto com o direito material do réu.

Se o direito do autor deve ser efetivamente protegido, a técnica processual capaz de lhe outorgar tutela poderá interferir de forma mais, ou menos, incisiva sobre a esfera jurídica do réu, e por isso o poder do juiz, nessa perspectiva, não pode deixar de ser controlado através da regra da proporcionalidade.

Quando a análise recai sobre regras processuais que fixam os procedimentos de cognição parcial e as liminares, é necessário considerar o direito material e a realidade social que está atrás dos direitos de ação e de defesa. Não é possível pensar na potencialização da efetividade do direito de ação, e na restrição do direito de defesa, sem considerar a substância que se encontra atrás das posições de autor e de réu. Para pensar em balanceamento não é possível imaginar, por lógica, que as posições são neutras. É necessário levar em conta os "bens materiais" que se confrontam. [113]

Em relação aos procedimentos de cognição parcial, como já dito, é preciso verificar se a restrição da possibilidade de alegação é legitimada pelos valores da Constituição. Ou melhor, se os valores constitucionais amparam a tutela que é buscada às custas da restrição da possibilidade de alegação.

No que diz respeito à tutela antecipatória prevista em procedimentos especiais - de maneira descartada da demonstração de perigo -, cabe analisar se a situação de direito material que se pretende tutelar justifica a restrição do direito à produção de prova. Perceba-se que, nas hipóteses em que se requer a demonstração do perigo (arts. 273, I, 461 e 461-A do CPC e 84 do CDC), é preciso compreender os motivos que podem justificar a concessão da tutela antecipatória no caso concreto. O perigo legitima a restrição da produção da prova e, assim, a "verossimilhança". Porém, quando a concessão da tutela antecipatória puder causar prejuízo irreversível ao direito do réu, será necessário tomar em consideração os "bens materiais" em litígio. Nesse caso, a possibilidade de restrição ao direito à prova deve caminhar na razão proporcional direta do valor do bem afirmado pelo autor, e na razão proporcional inversa do valor do bem afirmado pelo réu.

Por outro lado, o meio executivo eleito no caso concreto deve ser adequado (legítimo) para o fim que o autor objetiva alcançar. Esse fim é a tutela almejada. Nessa direção, o meio executivo somente é adequado quando capaz de legitimamente atingir a tutela pleiteada.

Além da adequação, deve-se verificar se esse meio executivo é idôneo – no que diz respeito à sua eficácia – para proporcionar, em termos concretos, a tutela buscada. Tal meio, contudo, além de ser adequado e idôneo à tutela, deve ser aquele que traz a "menor restrição possível" à esfera jurídica do réu [114].

Falar em menor "restrição possível" traz embutida a suposição de que o meio idôneo é o mais suave [115]. A regra da necessidade - que se desdobra nas sub-regras do meio idôneo e da menor restrição possível - tem relação com o que Lerche chama de proibição de excesso, que traz à tona as idéias de "justa medida" e "equilíbrio", as quais desejam evidenciar a impossibilidade de o direito do autor ser protegido por meios que tragam conseqüências "desmedidas" ao réu. [116]

A aplicação da regra da proporcionalidade implica na idéia de "justa medida" [117]. Essa idéia - como explica Larenz - tem uma relação estreita com a de "justiça", tanto no exercício dos direitos como na imposição de deveres e ônus, de equilíbrio de interesses reciprocamente contrapostos na linha do menor prejuízo possível. [118] Nesse sentido, o meio executivo somente pode ser dito "justo" quando, além de adequado e idôneo, não traz prejuízos excessivos e desrazoáveis ao demandado.

Porém, o meio executivo não pode deixar de atentar para eventual colisão, no plano substancial, entre os direitos do autor e do réu. Se é inegável que o meio mais idôneo é aquele que deve proporcionar a menor restrição possível, é necessário admitir que esse pode variar de acordo com a dimensão dos valores colidentes. Isso quer dizer, em outras palavras, que nos casos em que a tutela do direito do autor depender da restrição de um direito fundamental, como o direito à liberdade, o juiz, na escolha do meio executivo, não pode esquecer de que está harmonizando bens em conflito.

Entretanto, no caso em que não se trata de harmonizar, no plano substancial, bens em colisão, o meio mais idôneo deve ser encontrado apenas diante das necessidades de tutela do direito material e do direito de defesa. Tais necessidades nada mais são do que as tutelas prometidas pelo direito material, as quais, assim, devem obrigatoriamente ser proporcionadas pelo processo. Daí, aliás, o interesse pelo seu resultado jurídico-substancial e, enfim, pela sua instrumentalidade substancial.

Eis outro motivo fundamental para a elaboração de uma classificação das tutelas (e não apenas das sentenças). Se os operadores do direito, inclusive o juiz, não souberem precisar as necessidades do direito material (portanto, as tutelas), será impossível ao autor pedir e ao juiz impor o meio executivo hábil à prestação da tutela do direito. Do mesmo modo, e por igual razão, será impossível às partes (autor e réu) controlarem a imposição do meio de execução, ou discutirem se esse é o "mais idôneo" e o que causa a "menor restrição possível". [119]

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5281. Acesso em: 18 abr. 2024.

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