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Utopias penitenciárias.

Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil

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05/06/2004 às 00:00
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Soluções alternativas

A necessidade de mais vagas nas prisões e a criação de um abrigo para mulheres criminosas era uma discussão que se fazia presente há décadas. Em despacho datado de 1932 o presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, Candido Mendes de Almeida, solicitou ao Ministro da Educação e Saúde Pública, Francisco Antunes Maciel Junior, que cedesse a fazenda Santa Maria em Jacarepaguá - anteriormente destinada à instalação de uma Penitenciária Agrícola para mulheres delinquentes.

A situação das mulheres criminosas na capital federal era, segundo o presidente do Conselho Penitenciário, miserável. A título de comparação Mendes de Almeida retoma como padrão as penitenciárias femininas dos "países civilizados", cujas presas teriam qualidades. No Brasil os esforços não atingem as transformações almejadas: "A mais miseranda e, por isso, desde 1922 o Patronato das presas vem empregando os mais intensos esforços para conseguir um estabelecimento penal especializado, a exemplo do que se pratica em todos os paízes civilisados e principalmente na América do Norte, onde as nossas patricias têm revelado qualidades cacerárias emeritas´´ (DESPECHO DO PRESIDENTE DO CONSELHO PENITENCIÁRIO, 1935) [23].

Essa situação persistiu até 1934, quando iniciou-se uma acirrada discussão sobre a concessão da fazenda Santa Rita onde se pretendia a instalação da Penitenciária Agrícola para mulheres e do Lazareto da Ilha Grande com o objetivo de descongestionar as Casas de Detenção e Correção do Rio de Janeiro. A Diretoria de Saúde Pública receberia, em troca, uma parte da Ilha Bom Jesus para a instalação de um porto sanitário marítimo na Bahia da Guanabara. Com relação à fazenda Santa Rita, um pequeno trecho desta se destinaria à construção de um posto sanitário para tuberculosos.

Em 24 de março de 1934, durante a reunião do Conselho Penitenciário, houve entrave em torno do assunto. Lemos Brito, integrante do Conselho, assinalou que desde o início do governo provisório, elaborara um projeto de colônia agrícola penal de regeneração, a instalar-se em terras da união. Que tal projeto fora aprovado, com ligeiras alterações pelo Conselho, devendo ser encaminhado a Oswaldo Aranha, Ministro da Justiça. No entanto, alegava não saber que destino havia sido dado a esse trabalho.

O debate transcorreu em torno da utilização do Lazareto que teve seus defensores. Dentre eles estavam Candido Mendes, e seus oponentes, como Lemos Brito, que insistia que qualquer obra de emergência, falharia aos objetivos. Outro componente do Conselho, Heitor Carrilho, por sua vez, achava que a idéia do Lazareto não resolveria o problema: ao contrário, prejudicaria a realização das medidas radicais e gerais que, de longa data, vinha o conselho reclamando (ATA DA REUNIÃO DO CONSELHO PENITENCIÁRIO, 1934) [24].

Por fim a votação foi proposta por Roberto Lyra sendo rejeitada a realização de qualquer obra de emergência. Recomendava-se também ao governo o início da execução do plano contido no ante-projeto do Código Penitenciário, preferindo-se a construção de pavilhões para leprosos, tubeculosos e mulheres em local definitivo.

Em 1935 a discussão foi novamente retomada, ficando agora o Ministério da Justiça interessado na Ilha do Annanaz, fronteira à Ilha das Flores (RJ), para alí ser igualmente criado um núcleo de reclusão carcerária. O Departamento Nacional de Povoamento já havia, no entanto, declarado que a Ilha das Flores, onde estava instalada a Hospedaria de Imigrantes e cuja área não excedia de quatro hectares, não possuia água nascente e que o abastecimento era apenas suficiente para o consumo regular do pessoal existente no local. Em troca da Ilha do Annanaz, o Ministério da Educação receberia um edifício de vastas dimensões localizado no centro urbano (SOBRE A CESSÃO DA FAZENDA SANTA RITA, 1934) [25].

A utilização do Lazareto de Dois Rios e das enfermarias de imigrantes da Ilha das Flores, para escoar a superpopulação das penitenciárias, foi substituída por uma nova proposta de Floriano Rei, diretor da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, que seria a de remover os presos para o manicômio judiciário, sob a alegação destes serem criminosos psicopatas: "A permanência desses presidiários, bem como a de alguns outros contumazes em rebeldia e faltas disciplinares, constitue grave perigo à segurança da prisão. A sua remoção para o manicômio judiciário seria a primeira solução, (...) pois que aquele que atentar contra a própria vida (greve de fome), e perturbar a ordem (disciplinar) e que não se submeter ao tratamento que o caso aconselhar (os recalcitrantes), devem ser recolhidos ao manicômio judiciário, bem como, é proibido manter-se psicopatas em cadeias públicas ou entre criminosos, e é positivamente um psicopata que se acomete contra si mesmo´´ (CARTA DE FLORIANO REI AO MINISTRO DA JUSTIÇA, 1933) [26].

Pretendia-se dessa forma internar os indisciplinados e rebeldes no Manicômio Judiciário, como se estes fossem loucos, apesar da constatação de Mendes de Almeida, que considerava o manicômio como "local lamentável, de extrema exiguidade, e que para tão importantes serviços deveria ser mais amplo e melhor localizado" (COMUNICADO AO MINISTRO DA JUSTIÇA ANTUNES MACIEL, 1934) [27].

Uma outra solução foi dada pelo mesmo diretor à prisão de sete detentos, condenados por assalto a mão armada. Foram colocados em cubículos contendo cal, após uma greve de fome deflagrada pelos presos (CARTA DE FLORIANO REI AO MINISTRO DA JUSTIÇA, 1933) [28].

Outra estratégia, agora largamente utilizada para o aprisionamento, foi a utilização dos navios para o alojamento dos presos, como foi o caso do Navio D. Pedro I, que ficava ancorado defronte às docas, no Rio de Janeiro. Este navio foi símbolo da violência do governo Getúlio Vargas, pois sua afinalidade era aprisionar os revoltosos e oposicionistas durante a década de 30.


Geopolítica das Prisões

A utilização de navios, colônias correcionais, prisões comuns ou ilhas para o confinamento carcerário fez parte das estratégias em torno de uma geopolítica das prisões, implantadas a partir da criação das colônias correcionais. O intuito era de afastar o criminoso dos grandes centros urbanos, objetivando o saneamento da sociedade: mais uma forma de profilaxia social.

Percebemos durante a década de 30 a identificação das autoridades com tais idéias colocadas em prática nos governos anteriores. A utilização de navios-presídios e de ilhas como locais de confinamento e a acomodação de mulheres prisioneiras nos mesmos recintos onde ficavam reclusos os homens, apenas vem comprovar que a penitenciária designava-se à punição, pura e simplesmente. Cabe averiguarmos hoje, se houve mudanças e se elas fora efetivas ou, se não ocorreram, o que isso evidencia.

A prática da tortura no universo carcerário corroborou, ainda mais, para ampliar a dimensão política da prisão. A geopolítica do confinamento desvenda as artimanhas da eliminação do inimigo nocivo ao Estado brasileiro. A construção do mundo da reclusão durante os séculos XIX e XX significou não só a limpeza das ruas contra o inimigo aparente - o vagabundo -, mas, um artimanha para encerrar todos os inimigos, quer fossem eles de vertentes ideológicas, como os comunistas, ou sociais, representados pelos bandidos comuns. Punir e castigar essa gama de desclassificados significou a atribuição do poder de vida e morte ao Estado, que se utilizou desses atos para promover uma "nova ordem social", concretizada durante os governos das décadas de 20 e 30 deste século.

Fundamental é frisar, no final deste texto, que a inoperância das instituições públicas brasileiras funcionou em pról da mentalidade autoritária de época,e trabalhou na criação de lugares excludentes do mundo civilizado; sempre tomando como base modelos ideais e perfeitos de aprisionamento - as utopias penitenciárias -, sobre as quais, os juristas, via de regra, acreditavam que proporcionando leis em favor desses pressupostos, livrariam os bons homens dos perigos que circulavam visivelmente pelas ruas das cidades; protegiam o Estado do perigo que o afrontava e, sobretudo, levariam à regeneração social o futuro encarcerado. Mera utopia. Na atualidade presenciamos os frutos colhidos dos delírios dessa classe jurídica-penitenciarista.


Notas

1Ordenações Filipinas. Livro V, títulos XXXII, XXXV, XLII, XLV, XLIX, LII, LVI. Rio de Janeiro, Typographia do Instituto Philomathico, 14ª edição, 1870, p. 91 e segs.

2SILVA MATTOS, J. da. Reforma Penitenciária: passado e presente. s.e. 1885.

3Vários autores, dentre eles, Souza Bandeira em A Questão Penitenciária no Brasil (Rio de Janeiro, Oliveira, 1881), João Chaves em Sciencia Penitenciária (Lisboa, Classica editora 1912), Esmeraldino Bandeira em ´´O Criminoso e a Penitenciária´´ IN Revista da Faculdade Livre de Direito da Cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, volume V, 1909), escrevem detalhadamente suas observações sobre os vários modelos prisionais existentes no mundo.

4Constituição do Império do Brasil. título VIII, artigo 179, número XX. Rio de Janeiro, Alves & Cia, s.d. 1 volume.

5FAZENDA, José Vieira. "Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro". Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1921, p. 426.

6ROTHMAN, David. The discovery of the asylum. Boston, Little Brown, 1991, p. 30.

7MORAES, Evaristo de. Prisões e instituições penitenciárias no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Cons. Cand. de Oliveira, 1923, p.49.

8BEZERRA, Antonio. "O projecto de reforma do Código Penal". Revista de Jurisprudência. Rio de Janeiro, 1900, volume 9, p. 135.

9Decreto nº 8233 de 22 de dezembro de 1910. Coleção de Leis do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915, p. 550.

10CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. "Negros, loucos negros". Revista USP, nº 18, 1993, p. 149.

11"Relatório do Conselho Penitenciário do Districto Federal (1924-1946)". Pandectas Brasilerias. Rio de Janeiro, 1927, volume 2, 1ª parte, p. 84.

12Relatório da Casa de Correção do Districto Federal referente ao anno de 1907. Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI), 1908, p.2.

13LEMOS BRITO, J. G. "Reforma penitenciária no Brasil". Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, s,e., 1933, p. 8.

14Código Penitenciário da República, artigo 241, p. 44.

15Parecer de Deputado Deodoro de Mendonça sobre a mensagem presidencial solicitando a creação de tribunal especial para julgamento de crimes políticos e de colônias penaes agrícolas

. Câmara dos Deputados, Comissão de Constituição e Justiça 1935-1937. Rio de Janeiro, 1937, p. 16.

16Cidade Penitenciária do Districto Federal. MJNI, Imprensa Naciona, 1937.

17TORRES, Margarino. "Penitenciária Modelo!"Revista do Direito Penal. Rio de Janeiro, 1938, volume 20, p. 181.

18LEMOS BRITO, J. G. "Da prisão preventiva e do regime que se deve adotar nos estabelecimentos destinados a indiciados". IN Anais do 1º Congresso Nacional do Ministério Público. São Paulo, 1942, volume 7, p. 442.

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19Criação de um fundo penitenciário destinado à realização de reformas penaes. MJNI, parecer de 19.07.1934.

20Ofício nº 2164 de 5 de dezembro de 1936. Regulamento da inspectoria Geral Penitenciária. Conselho Penitenciário do Districto Federal.

21Carta de Candido Mendes de Almeida para Vicente Ráo, sobre a construção de estabelecimentos penitenciários destinados à preservação de menores abandonados e delinquentes. Rio de Janeiro, 29.03.37.

22Parecer sobre o projeto de Regulamento da Inspetoria Geral Penitenciária. MJNI, 1939.

23Despaco do Presidente do Conselho Penitenciário. MJNI, 13.12.1935.

24Ata da reunião do Conselho Penitenciário. MJNI, 24.03.1934.

25Sobre a cessão da Fazenda santa Rita e do Lazareto da Ilha Grande. MJNI, 1934.

26Carta de Foriano Rei ao Ministro da Justiça. MJNI, 13.12.1933.

27Comunicado de 25 de maio de 1934 ao Ministro da Justiça Francisco Antunes Maciel. O Presidente do Conselho Penteinciário comunica ter visitado o Manicômio Judiciário. MJNI, 1934.

28Carta de Floriano Rei ao Ministro da Justiça. MJNI, 22.04.1933.


BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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Sobre a autora
Regina Célia Pedroso

Professora universitária e Doutora em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias.: Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 333, 5 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5300. Acesso em: 28 mar. 2024.

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