IV.Brasil: o país da miscigenação
O modo como se desenvolvem as relações raciais no Brasil, à luz do anteriormente exposto, sugere que a intensidade da discriminação varia na proporção direta dos traços negróides e tal discriminação não é incompatível com os mais fortes laços de amizade ou com manifestações incontestáveis de solidariedade e simpatia.
Para as pessoas com características mais negróides em comparação aos seus amigos com traços caucasóides causa pesar, do mesmo modo por que causaria um "defeito" físico. "Desde cedo se incute, no espírito da criança branca, a noção de que características negróides enfeiam e tornam o seu portador indesejável para o casamento" (NOGUEIRA, 1955: 82).
A cultura brasileira constituída parece que viu no embranquecimento uma forma de conceder ao indivíduo o status de gente. Esta idéia é provada quando se vê em Freyre anotações que, em 1773, um alvará do Rei de Portugal falava de pessoas sem sentimentos que guardavam nas suas casas escravos brancos como se fossem pretos (FREYRE, 1936: 594), como se os escravos pretos também não merecessem compaixão.
A visão de que o negro significava inferioridade foi edificada de modo consistente e eficaz, haja vista que no imaginário coletivo não vê como forma de discriminação ações tipicamente racistas. Ações estas que são encontradas nas práticas diárias das pessoas e que acabam de certo modo alcançando todos os níveis da sociedade seja a família, seja escola, sejam instituições públicas e privadas.
O mito do embraquecimento, segundo Nogueira, pode assim ser justificado:
há uma expectativa geral de que o negro e o índio desapareçam, como tipos raciais, pelo sucessivo cruzamento com o branco; e a noção geral é de que o processo de branqueamento constituirá a melhor solução possível para heterogeneidade étnica do povo. Diante de um casamento entre uma pessoa branca e uma de cor, a impressão geral é a de que esta última foi de "sorte" enquanto que aquela ou foi "de mau gosto" ou se rebaixou, deixando-se influenciar por motivos menos confessáveis. Quando o filho do casal misto nasce branco, também se diz que o casal "teve sorte"; quando nasce escuro, a impressão é de pesar (1955:84).
Oracy Nogueira afirma que este fenômeno tem como escopo a formação de uma "cultura nacional" – língua, religião, costumes. As expectativas "assimilacionistas" de Pierson e "miscigenacionistas" de Freyre se manifestam ambas, tanto em relação aos elementos de procedência africana e indígena como em relação aos imigrantes estrangeiros e sua descendência (1955). Entretanto, vê-se que neste processo se mantém uma valoração entre brancos e negros em que estes últimos são considerados inferiores, menores, menos bonitos etc. O que fica claro de que o fenômeno da miscigenação tem como paradigma para plena aceitação o branco europeu.
Nogueira (1955:85) trabalha com a acepção de que o preconceito de marca há uma hierarquização cultural de um grupo dominante branco sobre os demais grupos não brancos. A ascensão do indivíduo negro ao grupo dominante pressupõe a aquisição de elementos que o faça parte deste grupo a partir de absorção de determinados caracteres brancos como religião, hábitos e finalmente, como ratificação da sua ascensão, à união a uma pessoa branca e, por conseguinte, a formação de família mestiça cada vez mais portadora de características caucasóides.
Esta imposição ideológica vem tendo na prática um efeito extremamente segregacionista contra os negros na medida que esses apresentam características negróides, negando aos mesmos o exercício da cidadania plena. Não adianta somente leis que os protejam, pois a dinâmica social lhes impõe limitações concretas, quanto à conquista de um emprego, do ir vir, pois são classificadas como sendo feias, miseráveis, criminosas etc. Esta forma é tão perversa quanto a americana definida como preconceito "de origem", haja vista que a forma como se dá no Brasil passa por uma anulação de uma cultura, uma destruição de uma identidade. Relega-se toda contribuição dada por outras culturas em prol de uma apenas.
V.Como estão representadas as desigualdades entre negros e brancos à luz dos indicadores sociais
Com efeito, a exclusão dos negros brasileiros tem sido confirmada em estudos provenientes de diversas áreas do conhecimento, ratificando apenas o que já era sabido. Indicadores socioeconômicos elaborados por instituições de pesquisa, tais como, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas – IPEA, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE, Organização das Nações Unidas - ONU etc., descrevem a clara inferioridade dos negros na educação e no mercado de trabalho.
As estatísticas sobre a desigualdade racial do país são preocupantes. Ricardo Henriques, analisando alguns dos números apurados, denuncia que as diferenças existentes entre brancos e negros persistem há pelo menos três gerações, e se mantém como linhas paralelas:
No Brasil, o processo de modernização excludente atravessa a história e arquiteta instituições que produzem mais de 55 milhões de pobres, dos quais 24 milhões em condição de pobreza extrema. Além da vergonha que esses valores representam, será que a pobreza está "democraticamente" distribuída em termos raciais, preservando um perfil socioeconômico sem viés racial? Não. Os negros representam 45% da população brasileira, mas correspondem a cerca de 65% da população pobre e 70% da população em extrema pobreza. Os brancos, por sua vez, são 54% da população total, mas somente 35% dos pobres e 30% dos extremamente pobres. Os diversos indicadores de renda e riqueza confirmam que nascer negro no Brasil implica maior probabilidade de crescer pobre. (...).
(...). Apesar da melhoria nos níveis médios de escolaridade da população brasileira ao longo do século XX, o padrão de discriminação racial, expresso pelo diferencial na escolaridade entre brancos e negros, mantém-se perversamente estável entre as gerações. De fato, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos. Apesar da escolaridade de brancos e negros crescer de forma contínua no século XX, 2,3 anos de estudo é a diferença observada na escolaridade média dos pais desses jovens. E, de forma assustadoramente natural, encontra-se a mesma diferença entre os avós desses jovens. Assim, brancos e negros olham um para o outro durante um século e, do ponto de vista relativo, situam-se estritamente na mesma posição. Como paralelas mergulhadas na inércia da eternidade brancos e negros não se encontram (HENRIQUES, 2003:14-15).
As diferenças havidas entre brancos e negros se mantêm em diversos campos: o negro no Brasil entra mais precocemente no mercado de trabalho urbano, e permanece um período ainda maior nas áreas rurais.
A escolaridade do brasileiro, para 63,8%, é de em média 6 anos, de 4 a 7 para 31,2%, e pouco mais de 16% tenham completado o primeiro grau, tais taxas são mais aviltantes quando se referem a população negra. Apenas a título de comparação, enquanto aproximadamente 24,6% dos negros têm menos de um ano de escolaridade, a mesma situação envolve 9,3% dos brancos. Em 1995, na cidade de São Paulo, a maior metrópole brasileira, 48,2% dos desempregados eram mulheres. Em 2000, esta taxa subiu para 52,4% trazendo consigo uma assimetria junto à população economicamente ativa negra na ordem de 14,3% em relação à população total, em um quadro numérico de desempregados na grande São Paulo na ordem 20,3%.
Os dados indicam que os negros ocupam os postos informais de trabalho. Neste ramo de trabalho completamente desprovido de benefícios para os trabalhadores, como, por exemplo, um sistema de seguridade social. Aproximadamente 67,4% dos negros na grande São Paulo não contribuem para a seguridade social; 13,95% dos negros passam, pelo menos, um período do ano sem renda, dependendo do sustento de algum membro da família. Para rigorosamente a mesma situação, entre os brancos o universo é de 7,4%. [6].
Estudos do IPEA demonstram um crescimento da concentração de renda no Brasil, aumentando o fosso entre ricos e pobres. Enquanto a elite econômica é composta basicamente por brancos, a excessiva pobreza atinge majoritariamente os negros; no campo da saúde no Brasil a alta incidência de mortalidade infantil é mais expressiva entre as populações indígenas e negras, indo de encontro à implementação procedimental dos direitos humanos e sociais.
No Brasil a defasagem qualitativa de residências é da ordem de 5 milhões, enquanto quantitativamente se aproxima de 9 milhões. Entre os fatores explicativos para o déficit de moradias, principalmente em grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, estão os crescimentos desenfreados das favelas no primeiro caso, e das periferias no segundo. Ainda que o período compreendido entre 1992 e 1999, cujos dados são expressivamente atuais, ofereceu um crescimento do número de domicílios de 36 para 43 milhões, e que 90% da população urbana no Brasil tenha água potável, o quadro das desigualdades, principalmente entre brancos e negros, está longe de desaparecer. O crescimento de uma infra-estrutura de serviços urbanos não é acompanhado por uma melhora homóloga nas áreas rurais. Quando comparadas, as condições de moradias entre brancos e negros são bem distintas: mais da metade dos brancos vivem em condições adequadas, contra menos de 30% dos negros. Apenas um em cada quatro negros vive em moradias consideradas dignas.
O trabalho infantil constitui outra importante variável para demonstrar as diferenças entre as populações branca e negra no Brasil. No período de 1992 a 1999, criança negras entre 3 e 9 anos representam 3,035% da força de trabalho infantil, enquanto entre crianças brancas o percentual é de 1,84%. Vinte por cento das crianças negras entre 10 e 14 anos estão nos postos de trabalho, para 13% das crianças brancas.
De acordo com todos estes dados, algumas conclusões sobre as condições socioeconômicas e culturais da população negra podem ser tiradas. A população negra brasileira ocupa a base da pirâmide social em todas as variáveis do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, bem como de indicadores tais como saúde, educação, trabalho, gênero, moradia, bem – estar individual, proteção à criança e ao adolescente..
A amostragem bem feita sobre as condições de vida da população brasileira, sugere que as políticas públicas feitas hoje em dia no Brasil não incorporam em termos quantitativos e qualitativos a população negra brasileira.
Nas raízes de nossa colonização até os dias de hoje, as problemáticas que compõem o pensamento social brasileiro revelaram que o país se desenvolveu, entretanto as desigualdades se conservaram, sobretudo quando se compara a realidade de negros e brancos. Os negros não tiveram, ao longo da história de desenvolvimento nacional, qualquer medida política que contribuísse diretamente para melhora da sua qualidade de vida.
Nosso modelo de sociedade não consagrou os valores meritocráticos. A discriminação sofrida pelos negros continua incorporada na conduta social e nas políticas estatais que fazem acreditar que o desenvolvimento sem atenção para especificidades é o caminho para a redução de desigualdades sociais. Ademais, essas políticas universalistas não atingem as diversidades contidas nos vários segmentos da comunidade, requerendo a adoção de políticas públicas particularistas. Aliado a isso, políticas de cunho redistributivo se fazem necessárias para reparar a injustiça sócio econômica que se perpetua.
VI. Remédios anti-racistas: Ações Afirmativas e seus Mecanismos para negros
A exposição dos fatos até aqui relatados indica que a luta anti-racista numa sociedade orientada por perspectivas democráticas liberais deve perseguir remédios político-econômicos (medidas redistributivas) que minem as desigualdades raciais, enquanto também deve também procurar remédios cultural-valorativos que valorizem a especificidade de uma coletividade menosprezada (medidas de reconhecimento), sem que isso signifique a renúncia de outros meios mais fecundos de transformação social.
As políticas de ação afirmativa são, antes de tudo, políticas sociais compensatórias. Quando se designa políticas sociais se quer dizer "intervenções do Estado que garantem, ou que ‘dão substância’, aos direitos sociais" (SISS, 2003: 110). Já políticas compensatórias, por sua vez, abrangem "programas sociais que remedeiam problemas gerados em larga medida por ineficientes políticas preventivas anteriores ou por políticas contemporâneas que são prima facie socialmente não dependentes" (SANTOS, W. G. dos, apud SISS, 2003: 110). Mas não podemos olvidar que a sociedade civil também vem encampando a idéia de ação afirmativa, especialmente, as empresas que perceberam a diversidade como fator de desenvolvimento de negócios na era da globalização, notadamente, em países pluriétnicos e multiculturais.
Portanto, as políticas de ação afirmativa, apresentam-se como importante mecanismo ético-pedagógico dos diferentes grupos sociais para o respeito às diversidades, sejam raciais, étnicas, culturais, de classe, de gênero ou de orientação sexual etc. Essa percepção do direito à diferença, leva em conta que a realidade das políticas denominadas universalistas – ou no caso das políticas raciais "cegas em relação à cor" - não atendem às especificidades dos grupos ou indivíduos vulneráveis, permitindo a perpetuação da desigualdade de direitos e de oportunidades. Disso emerge a idéia de adoção de políticas compensatórias focalistas (ou particularistas) que, atendendo ao direito à diferença, percebem os grupos ou indivíduos como sujeitos concretos, historicamente situados, que possuem cor, raça, etnia, deficiências, transtornos emocionais, orientação sexual, origem e religião diversas etc.
O objetivo da "ação afirmativa" é superar contingências relatadas e promover a igualdade entre os diferentes grupos que compõem uma sociedade. Como resultado, espera-se o aperfeiçoamento da cidadania dos negros, e que estes tenham a possibilidade de pleitearem, por exemplo, o acesso às carreiras, às promoções, à ascensão funcional, revigorando, assim, o incentivo à formação e à capacitação profissional permanentes.
No plano político, os programas de ação afirmativa resultam da compreensão cada vez maior de que a busca de uma igualdade concreta não deve ser mais realizada apenas com a aplicação geral das mesmas regras de direito para todos. Tal igualdade precisa materializar-se também através de medidas específicas que considerem as situações particulares de minorias e de membros pertencentes a grupos em desvantagem. Considera-se que a referência a um indivíduo abstrato, percebido como universal e reconhecido como cidadão, digno de igual respeito e consideração, deve ter a preeminência na formulação de políticas públicas. Observe-se, ao mesmo tempo, que tal referência torna-se insuficiente para combater o preconceito, racismo, sexismo etc. permanentes na sociedade impedindo o total reconhecimento da dignidade da pessoa (d´ADESKY, 2003: 1).
No plano moral, tal perspectiva conduz à busca de uma dimensão mais exigente da igualdade e implica assumir racionalmente, no terreno de políticas públicas, o caráter dialógico da pessoa humana.
Oracy Nogueira reconheceu que o racismo se sustentava por práticas sociais legitimadas, bem como com o processo de embranquecimento, rompendo com a visão tradicional de que o Brasil formava um povo miscigenado sem presença de conflitos étnicos ou raciais. A conscientização de que a sociedade conservou uma postura segregacionista foi o primeiro passo para a intervenção do Estado para que sejam promovidas ações que têm como escopo a redução das desigualdades sociais no que se refere a negros e brancos.
As políticas afirmativas servem, justamente, para que seja rompida a impressão contida no inconsciente coletivo de que negros são pobres, mal educados. Impressão edificada por uma política estatal, até pouco tempo, totalmente indiferente às necessidades de qualificação dos negros descendentes em sua grande maioria de escravos e que sustentava a perspectiva de que os negros aos poucos iriam conseguir se qualificar e reduzir as diferenças com os brancos; o que até hoje não se concretizou.
A inferioridade material de negros reside, portanto, na desigualdade da oferta de instrumentos qualificantes, sobretudo educacionais. O pesquisador Carlos Alberto Medeiros formula elucidativa metáfora que muito bem traduz o conceito, os objetivos e o alcance das ações afirmativas:
Imaginem dois corredores, um amarrado e o outro solto. É claro que o corredor solto ganha sempre. Mas um dia a platéia dessa competição imaginária chega à conclusão de que essa situação é injusta. À custa de muita pressão, consegue-se convencer os organizadores a cortar as cordas que prendiam um dos corredores. Só que ele continua perdendo. Motivo: seus músculos estão atrofiados pela falta de treinamento. Se tudo continuar como está, a tendência é de que ele perca sempre. Que fazer para promover a igualdade de condições entre os dois corredores? Alguns sugerem que se dê um treinamento especial ao corredor que estava amarrado. Pelo menos durante algum tempo. Outros defendem uma medida mais radical: por que não lhe dar uma vantagem de dez metros em cada corrida? Logo se ouvem vozes denunciando que isso seria discriminação. Mas há quem defenda: discriminação, sim, mas positiva porque visa promover a igualdade, pois tratar igualmente os desiguais é perpetuar a desigualdade. Essa história ilustra muito bem o conceito de ‘ação afirmativa’ e o debate que o tema desperta na sociedade. Podemos dizer que os negros, as mulheres e outros grupos discriminados são como o corredor amarrado: por muito tempo estiveram presos pelas cordas do racismo e da discriminação, por vezes traduzidos até mesmo em leis. Não podem ganhar a corrida. Mesmo depois de ‘soltos’, continuam perdendo. Isso porque a discriminação, mesmo que ilegal, prossegue funcionando de forma disfarçada. No caso dos negros, há também a desvantagem histórica. Seus pais e avós sofreram a discriminação aberta e por causa disso não puderam acumular e transmitir riqueza. O objetivo da ‘ação afirmativa’ é superar essas desvantagens e promover a igualdade entre os diferentes grupos que compõem uma sociedade. (BORGES; d´ADESKY; MEDEIROS, 2002:21).
As ações afirmativas configuram-se como um dos elementos fundamentais na tentativa de assegurar-se maior igualdade de direitos entre os diferentes grupos de cor que compõem o perfil populacional brasileiro. Elas podem vir a ser instrumento capaz promover a superação das desigualdades históricas que acompanham o Brasil desde seu o descobrimento.