A suposta interferência externa no Fla x Flu à luz do princípio da isonomia

21/10/2016 às 10:30
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O presente artigo serve para localizar a discussão sobre a possível interferência externa na decisão da arbitragem do Fla x Flu de maneira correta, analisando o caso com base no que preceitua o princípio constitucional da isonomia.

O futebol é, sem dúvida alguma, o esporte mais popular em terras tupiniquins. A prática de tal desporto é capaz de suscitar paixões intensas e discussões acaloradas, que se desenvolvem na medida em que o campeonato transcorre. Parece haver uma fonte inesgotável de onde os entusiastas retiram os temas centrais das diversas contendas - talvez esse seja um dos fatores preponderantes que fazem com que este esporte esteja sempre em voga. E, atualmente, a polêmica da vez diz respeito à suposta interferência externa na anulação de um gol do Fluminense, no clássico carioca contra o Flamengo.

Para que se possa introduzir o tema que se pretende examinar, vale confeccionar um breve resumo do acontecido: o time rubro-negro, que disputa o título com o Palmeiras, vencia a partida até os 39 minutos do segundo tempo quando, em posição de impedimento, o zagueiro Henrique marcou de cabeça o tento de empate para o time das Laranjeiras. Árbitro e assistente, de pronto, invalidaram o gol; todavia, após pressão dos jogadores tricolores, voltaram atrás por entender que o jogador que marcou o gol não se encontrava em posição de impedimento, mas sim seu companheiro de time. Daí foi a vez dos jogadores da equipe da Gávea pressionarem a arbitragem, momento em que entrou em campo inclusive o Delegado da Partida, fazendo com que o árbitro voltasse atrás e, novamente, invalidasse o tento tricolor. A partida terminou com vitória do Flamengo por 2x1.

Algumas informações relevantes servirão de premissa para a presente discussão. A primeira delas é que o gol marcado pelo zagueiro do Fluminense foi irregular, eis que o mesmo estava em posição de impedimento. A segunda é a suposta interferência externa que acabou por fazer o árbitro voltar atrás, invalidando o tento. Isto porque, após leitura labial feita por reportagem de uma emissora de televisão, ficou constatado que os jogadores do rubro-negro dizem para Ricci que a “TV mostrava que havia impedimento”, além de o próprio delegado da partida dizer que “a TV sabe que não foi (gol)”.

O presente texto não se prestará a analisar o mérito da questão, qual seja, julgar se houve ou não a interferência externa no caso – mesmo porque o próprio STJD já encarregou-se de arquivar o processo. Além disso, as imagens podem facilmente ser encontradas na internet, sendo que cada um dos nobres leitores pode, também, fazer seus próprios julgamentos.

Destarte, este artigo terá o condão de analisar a possibilidade da ocorrência de interferência externa na decisão do árbitro, invalidando um gol irregular do Fluminense, em face do que diz o princípio constitucional da isonomia. Isto porque a interferência externa nas decisões do árbitro é absolutamente defesa quando o assunto é a prática profissional de futebol – e aí independe se serviu para anular corretamente um gol irregular, ou para invalidar de forma errônea um tento legal.

O artigo 259, § 1º, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, assim preceitua:

§ 1º A partida, prova ou equivalente poderá ser anulada se ocorrer, comprovadamente, erro de direito relevante o suficiente para alterar seu resultado.

A partir do excerto supracitado, faz-se necessário agora definir o erro de direito. Em breve síntese, pode-se conceituar tal instituto como o erro que ocorre por desconhecimento da lei, o que quer dizer que o agente erra por não conhecer o texto legal de determinado diploma. Todavia, não deve ser entendido como o desconhecimento da existência da lei; longe disso, o agente tem ciência da existência de determinada legislação, mas a interpreta de forma equivocada.

No caso em comento, caso restasse comprovada a interferência externa na decisão do árbitro da partida, configurar-se-ia o erro de direito. Isto porque o Livro de Regras do futebol prevê, em sua Regra 5, dentre outras coisas, que as decisões do árbitro sobre a partida são definitivas, somente podendo ser modificadas no caso de o próprio árbitro perceber, ou for alertado por um de seus auxiliares, que a decisão tomada foi incorreta antes de o jogo ter sido reiniciado. Ou seja, a Regra 5 não prevê a mudança nas decisões do árbitro por influência externa, de forma que ninguém além do próprio árbitro e dos árbitros assistentes poderiam interferir no livre convencimento do juiz da partida.

A grande polêmica envolvendo a arbitragem se deu por conta das mudanças de decisão sobre a validação ou não do gol do zagueiro Henrique, sendo que a partida foi interrompida por cerca de 13 minutos até que a decisão fosse concretizada. Caso fosse comprovado que os jogadores rubro-negros, ou mesmo o Delegado da Partida, informaram ao árbitro que a TV mostrou que o jogador estava em posição irregular, restaria configurado o erro de direito, tornando a partida passível de ser anulada.

E é aqui que reside o ponto central do presente estudo. O fato de possivelmente o árbitro do jogo ter sido influenciado por fatores externos à partida para invalidar, corretamente, um gol irregular.

Nestes dias em que o debate em tela ocupou boa parte dos programas esportivos, ouviram-se argumentos para todos os lados. Talvez a opinião que mais se difundiu foi a de que seria uma aberração se a partida viesse a ser anulada, eis que, ainda que fosse comprovada a interferência externa, o árbitro acabou por, acertadamente, invalidar um gol irregular.

Entretanto, se a discussão tomar este rumo, estar-se-á desviando o foco da discussão central: a decisão do árbitro não pode, em hipótese alguma, ser influenciada por fatores alheios à partida. E aí não importa se a decisão final for correta ou não.

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Isto posto, é cogente que se observe que erros de arbitragem ocorrem em, praticamente, todas as partidas, sendo que, no decorrer de um campeonato, todos os times serão, em maior ou menor grau, beneficiados e também prejudicados pelas decisões do árbitro. Isto é natural, é do jogo, o juiz da partida é um ser humano como todos os outros, e por isso também pode cometer erros.

As decisões acertadas são merecedoras de aplausos. As decisões incorretas são dignas de críticas, todavia não poderão mais ser modificadas a partir do momento em que a bola voltar a correr. Esta é a Regra 5 do futebol, e tal norma vale para todos os clubes que competem profissionalmente. Assim como possuem o dever de observar todas as regras que regem o esporte, os clubes competidores tem também o direito de receberem igual tratamento perante as mesas regras.

Pode-se construir os alicerces desta igualdade de tratamento no princípio constitucional da isonomia, que tem como objetivo a busca pela igualdade entre todos, sem que haja distinção de qualquer natureza. Impende gizar que não se busca apenas uma igualdade formal – ou seja, isonomia de tratamento perante a lei – mas principalmente uma igualdade substancial, o que quer dizer que tem como finalidade a efetivação de uma igualdade real entre as partes perante os bens da vida.

O princípio da isonomia é um direito fundamental consagrado pela Constituição Federal Brasileira. Vale dizer que tal princípio não é titularizado somente pelas pessoas físicas, mas também pelas pessoas jurídicas. Infere-se daí que os clubes que se dedicam à prática de futebol profissional, constituídos como pessoas jurídicas, são também titulares do princípio da isonomia, devendo receber tratamento igualitário perante as leis e regras que regem o esporte.

Desta maneira, pode-se observar que, em sendo proibida pelas regras do esporte, que devem valer da mesma forma para todos os clubes que disputem a mesma competição, a interferência externa não pode ser utilizada de maneira alguma. Sobretudo, não pode ser utilizada somente em alguns casos, beneficiando um clube e prejudicando os demais.

E é por este motivo que, se tivesse havido interferência externa na decisão tomada pelo árbitro da partida entre Flamengo e Fluminense, estar-se-ia afrontando o que preceitua o princípio constitucional supracitado.

Isto porque, conforme já dito, todos os clubes são prejudicados pela arbitragem no decorrer das competições. Todavia, nenhum clube pode se fazer valer do auxílio externo para que tais erros sejam consertados, eis que tal prática é estranha às regras do futebol.

Já foi dito alhures que o Flamengo era um postulante ao título. Como seu principal concorrente tinha o Palmeiras, que naquela rodada ocupava a primeira colocação do torneio nacional. Far-se-á, portanto, uma breve análise a partir de um exemplo prático.

No jogo contra o Coritiba, no primeiro turno, o Palmeiras vencia até os últimos instantes, quando o time paranaense acabou por empatar o jogo após o jogador que marcou o tento receber a bola de um atleta que estava em impedimento. O jogo terminou empatado, mas caso houvesse auxílio externo, o erro poderia facilmente ter sido corrigido, e o time paulista poderia ter confirmado a vitória. Todavia, o mesmo Palmeiras venceu seu rival São Paulo contando com um gol irregular, por impedimento, do zagueiro colombiano Mina. Da mesma forma, o São Paulo poderia ter feito uso de auxílio externo para corrigir o erro, e invalidar o gol. Nestas duas ocasiões, os gols foram confirmados e o auxílio externo não pôde ser utilizado por nenhuma das agremiações. Isto prova que os erros acontecem e os clubes serão beneficiados e também prejudicados por eles; entretanto, nenhum deles pode se valer de auxílio externo para que a decisão do árbitro seja modificada.

É importante que se frise, novamente, que o STJD entendeu que não houve interferência externa, decidindo arquivar o caso. Todavia, o presente estudo serve para que se localize a discussão corretamente. O debate não deveria recair sobre o fato de o gol ter sido corretamente anulado ou não, mas tão somente sobre a hipótese de ter havido influência externa na decisão da arbitragem. Caso tivesse havido, ainda que tivesse anulado o gol corretamente, o árbitro poderia ter privilegiado os interesses de apenas um clube em detrimento de todos os demais, que não tiveram a oportunidade de se fazer valer de recursos externos para corrigirem os erros cometidos contra si. Desta maneira, a arbitragem, em geral, e não apenas os árbitros das partidas, não estaria dispensando tratamento isonômico a todos os clubes competidores. 

Referências utilizadas:

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010

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