Desde 15 de junho de 2016, data de encaminhamento da PEC do Teto de Gastos Públicos ao Congresso Nacional, grande celeuma política, jurídica e social instalou-se no Brasil. Mas, enfim, a PEC do Teto de Gastos Públicos é parte da solução para o problema fiscal brasileiro? Retira recursos da saúde e da educação?
Consta na Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 86, de 15 de junho de 2016, da lavra do Exmo. Sr. Henrique de Campos Meirelles, Ministro da Fazenda, e do Exmo. Sr. Dyogo Henrique de Oliveira, Ministro do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que:
“4. A raiz do problema fiscal do Governo Federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária. No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública. Esse é o objetivo desta Proposta de Emenda à Constituição”
Ora, se a raiz do problema fiscal está no descompasso de crescimento da despesa primária[1] em relação ao crescimento da receita primária[2], ou seja, na expansão da dívida pública[3], como a manutenção da despesa primária nos (deficitários) orçamentos fiscal e da seguridade social pelos próximos dez anos, prorrogável por igual período, corrigida pela variação da inflação do exercício imediatamente anterior, poderia resolvê-lo?
O problema, como dito pelo Governo Federal, é de expansão da dívida pública. E essa dívida é composta pela relação deficitária entre receitas e despesas públicas, ou seja, receitas menores que as despesas.
O enfrentamento de um dos elementos da relação não influencia, necessariamente, no resultado, pois o congelamento da despesa primária, por si só, não é capaz de cessar ou de reverter a expansão da dívida pública brasileira.
A cessão ou a reversão da expansão da dívida pública brasileira decorrerá, indubitavelmente, de novo descompasso de crescimento da despesa primária em relação à receita primária, todavia, em sentido reverso, ou seja, com a despesa crescendo menos do que a receita.
Portanto, de pouco ou nada adianta manter estática a despesa primária real[4] se não houver um incremento real das receitas públicas.
Ademais, não tarda lembrar que o Congresso Nacional autorizou um déficit para o Governo Federal de até R$ 170,5 bi, exatamente para o exercício financeiro que servirá de base para a manutenção da despesa primária pelos próximos dez, quiçá vinte anos, ou seja, ao invés de proceder ao ajuste com responsabilidade fiscal, e adotar medidas corretivas para a breve recondução das despesas primárias à capacidade financeira do Estado, o Governo Federal propõe mantê-las imunes ao ajuste fiscal pela inflação - perda da relevância nominal da despesa pública em razão da desvalorização da moeda.
Traçando uma metáfora grosseira com o exame clínico, é como se um médico (Governo Federal), ao identificar uma ascaridíase (problema fiscal), prescrevesse para a enfermaria (Congresso Nacional) administrar no paciente (economia) um remédio (PEC do Teto de Gastos Públicos) que não cura ou impede a evolução doença (contrai ou cessa a expansão da dívida pública), e, inclusive, permite o crescimento proporcional da lombriga ao da criança.
Consta, também, na EMI nº 86, de 2016, que:
“5. O atual quadro constitucional e legal também faz com que a despesa pública seja procíclica, ou seja, a despesa tende a crescer quando a economia cresce e vice-versa. O governo, em vez de atuar como estabilizador das altas e baixas do ciclo econômico, contribui para acentuar a volatilidade da economia: estimula a economia quando ela já está crescendo e é obrigado a fazer ajuste fiscal quando ela está em recessão. (...). A esse respeito, cabe mencionar a vinculação do volume de recursos destinados a saúde e educação a um percentual da receita.”
Ora, o crescimento de qualquer economia de mercado aberto/capitalista: (1) não sofre relevante moderação do Estado e (2) nem ocorre em ritmo constante. Os ciclos econômicos existem, são inevitáveis e não há qualquer garantia de que um governo possa estabilizar suas altas e baixas, notadamente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Outro ponto inerente ao trecho acima transcrito refere-se à crítica do governo em relação à vinculação de recursos destinados à saúde e à educação a um percentual da receita.
Isto porque o Governo Federal está a propor uma alteração de critérios para a destinação de recursos para a saúde e para a educação, qual seja, a aplicação mínima de quinze por cento da Receita Corrente Líquida (RCL)[5] do respectivo exercício em ações e serviços públicos de saúde (inciso I do §2º do art. 198 da CF88) e a aplicação mínima de dezoito por cento da receita de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212 da CF88) pela União Federal serão substituídas, pelos próximos dez, quiçá vinte anos, pelos mesmos percentuais acima mencionados, todavia, relativos à receita do exercício anterior corrigida pela inflação.
“Art. 104. A partir do exercício financeiro de 2017, as aplicações mínimas de recursos a que se referem o inciso I do § 2º e o § 3º do art. 198 e o caput do art. 212, ambos da Constituição, corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior corrigidas na forma estabelecida pelo inciso II do § 3º e do §5º do art. 102 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
Portanto, esta alteração parece-me apenas diferir o limite mínimo de recursos a serem aplicados na saúde e na educação, do exercício respectivo para o exercício anterior corrigido pela inflação, uma vez que a redação proposta estabelece que tais aplicações “corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior (...)” - , e não às aplicações mínimas realizadas no exercício anterior. Logo, parecem-me não refletidas as intenções da equipe econômica do Governo Federal de desvincular, temporariamente, as despesas com ações e serviços públicos de saúde, bem como a manutenção e o desenvolvimento da educação a percentual da receita.
Por conseguinte, a redação proposta ao art. 104 do ADCT induz à conclusão de que quando o resultado financeiro do exercício corrente apontar para um déficit, a saúde e a educação receberão mais recursos do que deveriam receber; quando apontar para um superávit, menos, e; quando apontar para zero, aquilo que deveriam receber, segundo as regras constitucionais precedentes à PEC do Teto de Gastos Públicos.
O orçamento público é um instrumento de planejamento governamental que, observadas as regras para a sua elaboração, deve guardar equilíbrio entre as receitas previstas[6] e as despesas fixadas para um determinado exercício financeiro. Não visa lucro (superávit) e nem prejuízo (déficit), mas tão simplesmente à materialização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil insculpidos na Constituição Federal:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Decerto que a recorrência de resultados fiscais deficitários gera descrédito perante os investidores, notadamente estrangeiros em países subdesenvolvidos, mas a manutenção perene de superávit financeiro é utópica. E, perdoem-me os extremistas, o capital financeiro aliado à força de trabalho parece-me elemento fundamental para o desenvolvimento nacional.
Portanto, o Placebo Encaminhado ao Congresso, digo, a aludida Proposta de Emenda à Constituição não me parece, efetivamente, medicação adequada ou combativa à expansão da dívida pública, pelo contrário, parece-me instrumento de desobediência às normas gerais de direito financeiro, estabelecidas pela Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, bem como às normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, estabelecidas pela Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000:
Art. 1º ...............................
§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
Talvez esta seja, enfim, a razão de o Novo Regime Fiscal procurar guarida no texto constitucional.
[1] Aquelas que pressionam negativamente o resultado primário, alterando o endividamento líquido do Governo (setor público não financeiro) no exercício financeiro correspondente.
[2] Aquelas que pressionam positivamente o resultado primário, alterando o endividamento líquido do Governo (setor público não financeiro) no exercício financeiro correspondente.
[3] Dívida contraída pelo governo com o objetivo de financiar gastos não cobertos com a arrecadação de impostos.
[4] Descontada a inflação.
[5] Somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidos: na União, os valores transferidos aos Estados e Municípios por determinação constitucional ou legal, e as contribuições mencionadas na alínea 'a' do inciso I e no inciso II do art. 195, e no art. 239 da Constituição.
[6] A previsão das receitas é etapa que antecede a fixação do montante de despesas que irá constar nas leis de orçamento, além de ser base para se estimar as necessidades de financiamento do governo.