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A paternidade socioafetiva e a obrigação alimentar

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Resumo:


  • A Constituição Federal de 1988 igualou todos os filhos perante a lei, abolindo distinções entre filhos nascidos dentro ou fora do casamento e reconhecendo a filiação sócioafetiva.

  • A paternidade sócioafetiva é uma forma de estabelecimento de filiação baseada no afeto e no cuidado, e não apenas nos laços biológicos, sendo reconhecida pela jurisprudência brasileira.

  • Os efeitos jurídicos da paternidade sócioafetiva incluem o direito aos alimentos, a guarda, a sucessão e todos os direitos e deveres decorrentes da relação paterno-filial, em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Faz-se relevante uma abordagem da repercussão do sistema unificado da filiação na ordem jurídica nacional, além dos seus efeitos quanto aos direitos pessoais e patrimoniais.

Nunca perca a fé na humanidade, pois ela é como um oceano. Só porque existem algumas gotas de água suja nele, não quer dizer que ele esteja sujo por completo.

Mahatma Ghandi


RESUMO

A Constituição Federal de 1988 provocou uma importante alteração no Direito de Família através do princípio da igualdade da filiação. Introduziu no ordenamento jurídico uma mudança de valores nas relações familiares, que influenciou na determinação de uma nova paternidade, fruto do afeto, objeto de análise no presente trabalho. Desta forma, faz-se relevante uma abordagem da repercussão do sistema unificado da filiação na ordem jurídica nacional, além dos seus efeitos quanto aos direitos pessoais e patrimoniais. Imprescindível a menção à posição dos doutrinadores brasileiros, bem como às decisões judiciais que formam o atual entendimento dos Tribunais regionais, no caminho de consagração do tema da presente pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Igualdade; Filiação; Direito.


ABSTRACT

The Federal Constitution of 1988 developed an important change in Family Law trought the begining of equality between the offspring. It has introduced to the legal sistem a change in familie relashionship values, that affected a new kind of parenthood, born from affection, the relevant point questioned in this project. Thus, it is important to discuss a new approach of the united offspring sistem’s repercussion in the national legal order, and discuss its effects in estate and personal rights. It is fundamental to mention the position of brasilian authors in this matter, as well as the legal decisions that make the current understanding of the local Courts of Law, in order to find the success of the subject in the present bibliographic research.

Key words: Equality; Offspring; Rights.


SUMÁRIO: Introdução; 1.A família : Da codificação de 1916 à Constituição de 1988, 1.1.O Código Civil Brasileiro de 1916, o desenho da família patriarcal e a transformação à família do Estado Social Democrático de Direito, 1.2.A ênfase à posição jurídica dos filhos por conta do Direito Civil Clássico, 1.3.A evolução da família e da filiação sob o aspecto legislativo e a nova posição dos filhos por conta da concepção contemporânea de família; 2. O reconhecimento da paternidade socioafetiva, 2.1.Elementos materiais para o reconhecimento do caráter socioafetivo da paternidade, 2.2.A proteção integral da família e a proteção dos menores; 3.Os efeitos jurídicos decorrentes da paternidade sócioafetiva: Reflexões acerca da questão alimentar, 3.1.Os efeitos jurídicos decorrentes da paternidade sócioafetiva: Uma via de duas mãos; 3.2. A questão alimentar como efeito jurídico do estabelecimento da paternidade sócioafetiva; Conclusão; Referências Bibliograficas.


INTRODUÇÃO

O Código Civil de 1916 retratou a realidade sócio-econômica de uma época em que a atividade era preponderantemente rural e dentro da entidade familiar os próprios integrantes trabalhavam para a riqueza da instituição, visando a sua perenidade. Para tanto, os homens imperavam por serem força ativa nessa unidade de produção. As mulheres eram relegadas a segundo plano e os filhos tinham suas profissões, casamentos, direcionados à continuidade de uma família de caráter patriarcal e transpessoal.

Nessa esteira, o matrimônio delineava os limites de quem deveria integrar o cenário cultural e fruir os direitos dele provenientes. Dessa forma, os descendentes de pessoas casadas entre si tinham a condição de filho e todos os direitos que dela emanam. Já, aquelas pessoas que nasciam de um casal que não tivesse certidão de casamento, independentemente do motivo, eram renegadas pela sociedade e não tinham direito algum perante o ordenamento jurídico.

A realidade da família brasileira foi mudando a medida em que os acontecimentos históricos, a ascensão científica revolucionária do homem foi refletida em um novo horizonte em que a rigidez do contorno familiar rompeu-se, cedendo ao espaço de um lar, um lugar de afeto e realização das potencialidades de cada um de seus membros. Nesse novo ideal de família, igualdade e respeito revelaram-se na esteira da convivência, somando-se à liberdade como escudo no qual se encontra espaço para a concretização dos interesses de cada componente familiar.

Diante do dinamismo e da complexidade das relações sociais, em especial no âmbito familiar, surgiram cada vez mais situações envolvendo, normalmente, crianças e adolescentes que, afastados dos seus pais no plano biológico ou jurídico, passaram a se relacionar no campo afetivo com pessoas outras que assumiram faticamente a posição de pai e mãe.

Elementos sociais e comportamentais influenciaram na determinação de uma nova paternidade, a sócioafetiva, que, como a própria nomenclatura já expressa, é o tratamento dispensado a um filho, por alguém, independente de imposição legal ou vínculo sangüíneo; fruto apenas do sentimento de carinho e amor.

O universo jurídico é propenso a alterar-se frente às mudanças sociais, visando a sua efetiva utilidade. Algumas leis refletiram a transição social até a chegada da Constituição Federal de 1988, que adequou o sistema jurídico à nova realidade brasileira, introduzindo alterações condizentes aos novos tempos, modernos e liberais, sem as amarras de um conservadorismo hipócrita e preconceituoso.

Com seus princípios afirmadores da dignidade da pessoa humana como fundamento maior, a Carta Federal trouxe a proteção à família eudemonista, afirmando a igualdade entre os filhos de qualquer origem e a proteção aos interesses da criança. Até a sua entrada em vigor e a eleição da família como meio de realização pessoal, não decorriam direitos dessa relação afetiva paterno-filial, pois não era reconhecida pelo mundo jurídico.

A conseqüência do desprestígio de proteção foi o aumento desses casos visualizados na sociedade, que se avolumaram e acabaram por asseverar a principiologia constitucional protetiva do interesse dos menores, com conseqüências sociais e jurídicas oriundas de tal constatação pela doutrina e jurisprudência.

Nesta linha, propõe-se no presente trabalho a compreensão das relações familiares dentro da evolução das estruturas axiológicas do sistema jurídico brasileiro, vinculando-se à realidade econômica e cultural de cada espaço e época, até o presente momento, como meio de enquadrar essa nova filiação na linha ideológica constitucional.

Objetiva-se a afirmação do afeto como quesito apto a determinar a verdadeira relação de paternidade, posto que exercida com a responsabilidade idealizada pela lei. Faz-se imprescindível, seguindo esse enfoque, a análise dos direitos e deveres jurídicos decorrentes dessa relação paterno-filial, em especial no âmbito alimentar, questão de relevância indubitável para a realização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, da primazia à proteção dos interesses infanto-juvenis e do Estado Social Democrático de Direito.


1 A FAMÍLIA: DA CODIFICAÇÃO DE 1916 À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

1.1 O Código Civil Brasileiro de 1916, o desenho da família patriarcal e a transformação à família do Estado Social Democrático de Direito

O Direito de Família Pátrio e, por conseqüência, a acepção jurídica de entidade familiar passou, no período compreendido entre 1916 e 1988, por um grande processo de transformação. Neste interregno, visualizam-se duas relevantes abordagens. A primeira, compreendida pelo Código Civil brasileiro de 1916, era de cunho patriarcal, contemplando a "família-instituição", diretamente ligada ao casamento, conforme depreende-se da seguinte definição: "Direito de Família é o conjunto de regras aplicáveis às relações entre pessoas ligadas pelo casamento ou pelo parentesco." [1]

A fim de iniciar o estudo sobre parte da história da família brasileira, segue uma breve análise de seus aspectos. A doutrina define-a da seguinte maneira: "Biologicamente, família é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum, ou seja, unidos por laços de sangue. Em sentido estrito, a família representa o grupo formado pelos pais e filhos." (2

Na transição do século XIX para o XX, iniciou-se a construção jurídica do primeiro Código Civil brasileiro. O modelo de família apresentado à época era o de uma parcela social representativa, os detentores do poder, pessoas pertencentes a famílias de proprietários de escravos, fazendeiros e senhores de engenho. [3]

Em face de uma sociedade basicamente rural, a família funcionava como unidade de produção. Assim, quanto mais componentes, maior a força de trabalho e as condições de sobrevivência de todo o grupo. O homem, além de desempenhar o papel de pai e marido, direção exclusiva decorrente de sua autoridade, chefiava a família, zelando pela sua unidade.

Os familiares restantes ocupavam uma posição de inferioridade. A mulher, figura relativa, desempenhava apenas o papel de mãe e esposa. Assim como a prole, tinha sua vida dirigida pelo homem. Tal domínio ocorria em função da proteção dos interesses familiares, expressado nos casamentos arranjados e carreiras profissionais escolhidas. Destarte, o sexo e a idade eram os fatores determinantes do papel que cada membro desempenharia no grupo, relegando a segundo plano interesses pessoais, de modo a perpetuar esta família transpessoal.

O casamento apresentava-se como fonte única de sua constituição, que trazia o reconhecimento pela religião e concedia o direito à prática do ato sexual, pretendendo que os cônjuges não buscassem a satisfação de seus instintos fora do casamento. Revela-se, assim, no modelo codificado, a regra da indissolubilidade do vínculo matrimonial.

Se o casamento não tivesse sucesso, a alternativa do casal era o desquite, que rompia a comunhão de vida, mas não punha fim ao vínculo jurídico do matrimônio. Num eventual envolvimento extraconjugal, não haveria nenhum reconhecimento jurídico. Assim, ainda constata-se o direcionismo à manutenção da entidade familiar mesmo que sacrificados conceitos como o de afeto.

O matrimônio permanece como força determinante quanto à filiação, manifesta através da presunção pater is est, segundo a qual a prole é, por conta do casamento dos genitores, considerada legítima e digna de proteção legal. A esse respeito, conclui Carbonera que:

Desta forma, a garantia da estrutura familiar apresentada se dava pela observação tanto da necessidade de matrimonialização como no modelo de legitimidade dos filhos, pautado na proibição do reconhecimento dos extramatrimoniais e na atuação da presunção pater is est. [4]

Logo, verifica-se a grande preocupação da lei no que dizia respeito à proteção da entidade familiar, através do aspecto da legitimidade da união e dos filhos dela havidos. Ainda, outro fator relevante na análise das normas da época é o patrimonial, justificativo da função primordial de transmissão do nome paterno: "A família, como rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido. A família é um fluxo de propriedades que depende primeiramente da lei." [5]

Porém, a Revolução Industrial, o aumento das concentrações urbanas, o ingresso da mulher no mercado de trabalho e a mudança da condição social do jovem provocaram transformações nessa denominada "grande-família". A típica divisão de papéis foi perdendo força na medida em que a mulher alargava sua esfera de atuação social, política e jurídica, e deixava, aos poucos, sua condição de inferioridade para trás na história da família brasileira.

A passagem do modelo econômico agrário ao industrial atingiu irremediavelmente a família, que se revelou não mais uma unidade de produção sob a autoridade de um chefe, e sim um grupo com divisão de funções definidas pelas aptidões individuais dos membros. Verifica-se profunda transformação ao longo do século XX, com sensíveis efeitos no meio familiar.

Ainda devido ao processo de urbanização e sua conseqüente onerosidade na vida em comum, a grande prole cede espaço a um número cada vez mais reduzido de filhos. Deste fator decorre uma considerável melhoria na relação afetiva entre pais e filhos, posto que, como mostram Oliveira e Muniz, "Acentuam-se as relações de sentimento entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais" [6].

Mas o afeto de que se trata não pode ser confundido com a noção da affectio, presente já no modelo romano. Esta, no modelo patriarcal, era presumida e condicionada à existência de uma situação juridicamente reconhecida: o casamento trazia consigo a affectio maritalis, que justificava a necessidade de continuidade da relação. Já, o afeto entende-se como vontade de estar e permanecer junto a alguém. Tempos atuais, novos valores, a affectio matitalis traduz-se hoje como valor sócio-afetivo que funda uma sociedade conjugal, matrimonializada ou não.

As uniões sem casamento foram gradativamente aceitas pela sociedade, ao passo que novas famílias estruturaram-se independentemente das núpcias, conduzidas por um único membro, o pai ou a mãe. Diante disso e das demais transformações sociais, o modelo legal codificado tornou-se insuficiente, cada vez mais distante da pluralidade social existente. Os fatos concretos opuseram-se ao Direito, exigindo maior proteção:

Buscando a realização pessoal, o ordenamento foi posto em segundo plano e os sujeitos se impuseram como prioridade. Formaram-se novas famílias, marginais e excluídas do mundo jurídico, mas ainda assim se formaram. A verdade social não se ateve à verdade jurídica e os fatos afrontaram e transformaram o Direito. [7]

Resultado inevitável do aumento dessas situações fáticas, em 1977, através da Emenda Constitucional regulamentada pela Lei 6.515, surgiu o divórcio, permitindo que as pessoas que desejassem reconstruir suas vidas por meio de uma nova família, o fizessem com o acolhimento do ordenamento jurídico, posto que veio colocar fim não só à comunhão de vida, mas também ao vínculo matrimonial. A ligação jurídica, portanto, não é mais tida como perpétua, extinguindo do ordenamento o desquite.

Assim, deu-se a passagem do modelo patriarcal a outro em que são dominantes as relações de solidariedade e cooperação. A perda da característica de unidade de produção, por conta da industrialização, pôs fim ao papel econômico da família, transferindo sua função relevante ao âmbito espiritual. Sua rígida concepção deu lugar à sensibilidade. A família moderna, em oposição àquela, valoriza um elemento abstrato, que até então estava à sombra: o sentimento.

Este, por sua vez, traduz a noção de afeto, elemento propulsor da relação familiar. Também um substantivo abstrato, o afeto pode ser trazido para o mundo concreto através da demonstração do desejo de estar junto a outrem, constituindo, pois, o alicerce da família atual.

A família moderna nasce sob a concepção eudemonista [8], centrada nas relações de sentimento entre seus membros e baseada em uma comunhão de afeto recíproco. Enquanto a família ditada pelo Código Civil de 1916 se define como hierarquizada e de feição transpessoal, em outro momento e contexto político-econômico, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto definições que consagram a pluralidade familiar, a igualdade substancial e a direção diárquica, como se vê:

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A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial. Hoje, ao revés, não se pode ter dúvida quanto à funcionalização da família para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, devendo a comunidade familiar ser preservada (apenas) como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana. [9]

O modelo contemporâneo tem destacado o seu aspecto pessoal e igualitário, valorizando os interesses individuais dos seus membros e buscando a felicidade como mola propulsora de sua continuidade. Para tanto, a família e o casamento visam ao desenvolvimento da pessoa.

A redução na extensão da família, a mudança dos papéis, o descompasso entre o modelo legislado e a pluralidade social existente resultaram na proteção jurídica à figura da família nuclear, centrada na tríade pai-mãe-filho, bem como a formada por um só dos pais e seu filho, através da Constituição Federal que recepcionou-as e reconheceu-as, em seu art. 226. O objeto da proteção estatal é a pessoa humana e o desenvolvimento de sua personalidade. A realização do indivíduo tem por objetivo a formação de uma família emocionalmente estruturada, a qual é a base da sociedade, promovendo seu equilíbrio.

A Constituição, em seu artigo 1º, inciso III, consagra como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. Os princípios da igualdade e da dignidade conduzem à construção de um novo modelo de família, que valoriza o indivíduo como ser humano nas suas relações intersubjetivas. A proteção à pessoa recebe status constitucional, que transcende a figura do indivíduo por si só, orientando seu tratamento na esfera familiar e priorizando-o em relação ao grupo:

[...]a proteção a todos os sujeitos da família deve ser feita de forma igualitária, uma vez que a desigualdade fere a dignidade. [...] Ademais, tratar da dignidade e da igualdade significa também abordar sua coexistência num ambiente divido por duas ou mais pessoas: se ambas têm direitos idênticos, significa que a convivência somente será possível se houver a limitação da liberdade individual pela lei. [10]

A Carta Magna traz a proteção à família contemporânea, sob suas diversas formas de constituição - matrimonializada ou não, constituída por ambos os genitores e filhos ou de caráter monoparental, originada por laços de sangue ou por meio de adoção. O aumento da tutela, assim como da esfera de liberdade dos sujeitos, permite a coexistência de famílias no molde patriarcal e novas formas fundadas no desejo de estar junto, cujo elemento seja a própria comunhão de vida. [11] Resta valorizada a pessoa em sentido diverso daquele codificado.

Nesse ideal de família modelo do Estado Social Democrático de Direito, a filiação também resta protegida com a chegada da Constituição de 1988, que estabeleceu igualdade de tratamento entre os filhos provenientes de matrimônio ou não. Estes foram nivelados perante a lei, posto que a importância do afeto é tida como determinante também nas relações paterno-filiais. Traçado o perfil da família codificada importa, então, conhecer o papel nela desempenhado pela filiação, dada sua importância na sustentação do modelo patriarcal.

1.2 A ênfase à posição jurídica dos filhos por conta do Direito Civil Clássico

Características marcantes da família patriarcal, tais como a indissolubilidade do vínculo matrimonial e a proteção do patrimônio familiar justificam o sistema de filiação estabelecido. O Código Civil brasileiro de 1916 baseou-se na família como grupo social, com origem no casamento e na consangüinidade, garantindo proteção somente à família legítima, afastando, de um lado, os filhos de uniões não matrimonializadas de qualquer proteção legal e, de outro, qualquer eventual ameaça aos filhos oriundos do casamento.

O sistema artimanhado, de tal sorte competente, atribuiu a si próprio o poder de dizer o direito, e assim o fazendo delimitou com uma tênue, mas eficaz lâmina o direito do não-direito. E entre nós não foi diferente: o Código posto em vigor em 1917 foi perfeito anfitrião ao acondicionar um retumbante silêncio sobre a vida e sobre o mundo; nele somente especulou-se sobre os que têm e julgou-se o equilíbrio do patrimônio de quem se pôs, por força dessa titularidade material, numa relação reduzida a um conceito discutível de esfera jurídica. [12]

A filiação foi regulada com base na orientação advinda do direito romano, segundo a qual, da união do homem com a mulher decorriam dois tipos de filho: legítimo, se os pais eram casados entre si; e ilegítimo, caso havido fora do casamento. Os ilegítimos compreendem dois grupos: naturais, oriundos do concubinato [13], haja vista a inexistência de impedimento para o casamento de seus pais, sendo esta uma terceira classe que surgiu no direito pós-clássico; e espúrios, assim considerados devido a impedimento de os pais casarem-se à época de sua concepção.

A filiação espúria, por sua vez, subdivide-se em espúrio incestuoso, cujo impedimento decorre de parentesco próximo dos genitores, ou de afinidade, conforme enumeração constante do art. 183, I a V, do Código Civil; e espúrio adulterino, cujo impedimento é em razão de um deles já ser casado com outra pessoa e violação, destarte, do dever de fidelidade.

Os filhos ilegítimos, em razão de não se enquadrarem no modelo desenhado pelo sistema, sequer eram reconhecidos pela original família codificada, de modo que somente os

legítimos poderiam fazer parte daquela unidade familiar de produção. Destarte, a noção de legitimidade provocava uma discrepância entre a verdade jurídica e a social, pois "Sob a alcunha de ilegitimidade, a regulação jurídica dos papéis definidos às pessoas depende da função que, em abstrato, o próprio sistema define" [14]. Prova disso é que os filhos ilegítimos não sujeitavam suas vidas ao domínio paterno, realidade típica patriarcal.

O sistema da filiação é um significativo exemplo do distanciamento que a construção da civilística tradicional operou. Filhos de pessoas não casadas entre si não eram reconhecidos pela lei porque a ilegitimidade despia-lhe da condição jurídica de "filho". O sistema do parentesco foi emoldurado para sustentar uma concepção matrimonial de família, que desconsidera a verdade fática ao transpor fatos reais para o universo do não-direito quando estes não correspondem as suas regras, procedendo de forma à exclusão e à marginalização:

Não sendo fruto do acaso, aquela "realidade jurídica" emergiu assentada no sentido clássico da família monolítica e autoritária, hierarquizada e transpessoal, na qual a norma jurídica resta servindo de instrumento para dedicar capítulos inferiores a sujeitos naturais que não passam ao estatuto de efetivo sujeito de direito. Esse regime de exclusão se funda num assento tripartite que une sexo, sangue e família, e propicia que as formulações jurídicas privadas modelem as relações de direitos sob um padrão social de interesses dominantes. [15]

Dada a relevância da filiação legítima na original família-modelo do Código Civil brasileiro de 1916, adotou-se uma fórmula para determinar, juridicamente, a identidade do pai já no momento do nascimento. Apresentou-se a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, geralmente referida, de modo abreviado, como pater is est, expressando diretamente a autoridade do pater, ou seja, o poder do pai em aceitar ou rejeitar o filho segundo seu exclusivo desejo, pois, querendo negar a paternidade, só ele teria legitimidade para propor uma ação que visasse a desconstituí-la.

Tal presunção funciona como modo automático de estabelecimento da filiação, pois quem nasce de mulher casada é tido como filho do marido dessa mesma mulher. A regra romanista chegou à redação do Código de Napoleão, recebendo certo alargamento ao serem reputados legítimos, além dos filhos concebidos e nascidos durante o casamento, também aqueles concebidos antes e nascidos após a celebração da união conjugal, e o Código Civil de 1916, por sua vez, a recepcionou. [16]

O Código Francês acolheu as idéias romanistas tanto em relação ao casamento quanto à atribuição ao marido da autoridade sobre sua esposa e filhos. Assim, consagrou a diferença entre filiação legítima e ilegítima, praticamente impedindo a investigação de paternidade, a fim de "assegurar a paz das famílias". O Código Civil é fruto das doutrinas individualista e voluntarista que, consagradas pelo Código Napoleônico e incorporadas pelas codificações do século XIX, inspiraram a legislação brasileira. [17]

Adotado, portanto, o princípio da defesa da instituição matrimonial, que implica, numerosas vezes, em um fechar de olhos à realidade, inspirou duas características marcantes em matéria de filiação: a legitimidade exclusiva do marido para contestar a paternidade do filho

tido por sua esposa e anunciação taxativa dos motivos aptos a ensejar tal contestação. [18] Código incorporou a regra pater is est sob tais características, induzindo até mesmo que a "mentira jurídica" poderia ser essencial à paz familiar.

A proteção da legitimidade da filiação foi nitidamente severa, com indisfarçável desvantagem aos filhos ilegítimos. Mas a ciência jurídica não dispunha de outras soluções, impondo à sociedade o critério adotado pela lei. Destarte, "A aplicabilidade da presunção decorre da inexistência de outro instrumento que proceda ao automático estabelecimento e que, daí, poderia substituí-la." [19]

A situação considerada normal na sociedade era a do marido como pai biológico dos filhos da cônjuge, o que explica a tentativa da regra pater is est em coincidir a verdade jurídica com a biológica. No entanto, a proibição de reconhecimento jurídico do filho gerado entre pessoas não comprometidas perante o ordenamento ou por um dos cônjuges com terceira pessoa acarretou um grande número de nascimentos marginalizados, apontando a incapacidade do sistema de corrigir a falta de coincidência entre a paternidade jurídica e a real - biológica. Observa-se uma paternidade presumida, que passou a inclinar-se a outros interesses:

O sistema do Código, ainda que quisesse buscar através da regra pater is est a coincidência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica, na ocorrência de dúvida entre a verdade da filiação e a suposta paz familiar, sacrifica a primeira em favor da segunda. Dá, assim, preferência a um critério "nupcialista de paternidade" (segundo o qual é reconhecido como pai aquele que contraiu núpcias com a mãe) e não a um critério "biologista da paternidade", que atende à verdadeira filiação do ponto de vista biológico. [20]

Afirmava-se que o Código Civil brasileiro era a Constituição do Direito Privado, por representar a garantia legal mais elevada no que tange as suas relações patrimoniais. Assumia o papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas e de provedor do "mundo da segurança". Cumpria sua função no que diz com a filiação, ainda que para isso tivesse que arrancar algumas cidadanias jurídicas para garantir a prosperidade e a estabilidade da família-instituição.

Nesse contexto de preservação familiar, apenas os filhos concebidos por genitores casados foram reconhecidos perante a sociedade. Alegando uma suposta paz familiar, que para a sociedade seria abalada com o público reconhecimento de um adultério ou de relações incestuosas praticadas por seus membros, não se reconhecia aos filhos extranupciais direitos básicos à sobrevivência, relegando-os à execração pública em virtude de um comportamento tido como altamente reprovável, praticado por seus pais ao gerá-los, que se convencionou manter segredo. A culpa - ou crime dos pais - foi, então, punida na pessoa dos filhos.

1.3 A evolução da família e da filiação sob o aspecto legislativo e a nova posição dos filhos por conta da concepção contemporânea de família

A era de estabilidade retratada pelo Código Civil entrou em declínio já a partir dos anos 20, reflexo dos movimentos sociais e do processo de industrialização crescentes, aliados à agitação popular decorrente da eclosão da Primeira Grande Guerra, que atingiram profundamente o direito civil europeu e, na sua esteira, a política legislativa brasileira. Surgiu a necessidade de intervenção estatal na economia, o que forçou o legislador a utilizar-se de leis extracodificadas, denominadas excepcionais por revelarem desacordo com princípios dominantes do Código, apesar de não desmenti-lo em sua completude e exclusividade.

A família, como realidade sociológica, apresentou, em sua evolução histórica, desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais. À ciência jurídica coube a regulação das relações patrimoniais privadas, bem como das novas situações surgidas no âmbito do direito de família no interior das castas econômicas que se formavam. Cabe destacar, na metade do século XX, a intensificação das famílias estruturadas independentemente das núpcias ou conduzidas por um único membro, o pai ou a mãe.

Apresentou-se, também, uma legislação extravagante com características de especialização, formando um direito especial, paralelo ao direito comum estabelecido pelo Código Civil. Neste cenário, enquanto o Código preocupava-se em garantir a estabilidade das normas, as leis especiais as alteravam sem cerimônia, visando à garantia de objetivos sociais e econômicos definidos pelo Estado, constituindo sua segunda fase interpretação:

Não há dúvida que a aludida relação estabelecida entre o Código Civil e as leis especiais, tanto na fase da excepcionalidade quanto na fase da especialização, constituía uma espécie de monossistema, onde o Código Civil era o grande centro de referência e as demais leis especiais funcionavam como satélites, ao seu redor. Com as modificações aqui relatadas, vislumbrou-se o chamado polissistema, onde gravitariam universos isolados, que normatizariam inteiras matérias a prescindir do Código Civil. Tais universos legislativos foram identificados pela mencionada doutrina como microssistemas, que funcionariam com inteira independência temática, a despeito dos princípios do Código Civil. O Código Civil passaria, portanto, a ter uma função meramente residual, aplicável tão-somente em relação às matérias não reguladas pelas leis especiais. [21]

No tocante à filiação, a Carta Constitucional de 1937, no seu artigo 126, trouxe a equiparação entre os filhos legítimos e os naturais, facilitando a estes o reconhecimento e estendendo-lhes os direitos e deveres que incumbiam aos pais em relação aos legítimos. Revogou, portanto, o artigo 1.605 do Código Civil de 1916, que restringia os direitos sucessórios de filhos naturais que concorressem com legítimos ou legitimados. Já, a Constituição brasileira de 1946 silenciou sobre o tema.

Em 1942, o Decreto-lei 4.737 permitiu o reconhecimento de filhos adulterinos, condicionando-o ao desquite, e a Lei 883 de 1949 estendeu-o à dissolução da sociedade conjugal por qualquer modo. Seguiu-se a Lei 6.515 de 1977, que permitiu a qualquer dos cônjuges, durante o matrimônio, reconhecer o filho havido fora desse, por meio de testamento cerrado. [22] Em 1984, a Lei 7.250 possibilitou o reconhecimento extramatrimonial, em ação de investigação, desde que a separação de fato dos cônjuges perdurasse por mais de cinco anos. São algumas disposições legislativas acerca da evolução do tratamento dos filhos ilegítimos.

Essa análise apresenta-nos um direito civil repleto de leis que disciplinam exaustivamente matérias de incidência do Código, extraindo-lhe inteiros setores da atividade privada mediante um conjunto de normas que não se limitou a regular aspectos especiais de certas matérias; disciplinou-as integralmente. Sua estrutura restou profundamente alterada, com inúmeros dispositivos concernentes ao direito de família revogados expressa ou implicitamente, tornando incompleto qualquer conceito que viesse a ser formulado na matéria.

Finalmente, em 1988, o texto constitucional inaugurou uma nova fase para o Código Civil, de valoração e interpretação junto a inúmeros diplomas setoriais, cada qual com aptidão no seu campo de conhecimento, formando a chamada "era de estatutos". Dessa forma, a Carta Magna reunificou o sistema, como demonstra José Sebastião de Oliveira, através de um rol de princípios constitucionais de Direito de Família que adverte não ser taxativo:

Proteção de todas as espécies de família (art. 226, caput); reconhecimento expresso de outras formas de constituição familiar ao lado do casamento, como as uniões estáveis e as famílias monoparentais (art. 226, §§ 3º e 4º); igualdade entre os cônjuges (art. 5º, caput, I, e art. 226, §5º); dissolubilidade do vínculo conjugal e do matrimônio (art. 226, § 6º); dignidade da pessoa humana e paternidade responsável (art. 226, § 5º); assistência do Estado a todas as espécies de família (art. 226, § 8º); dever de a família, a sociedade e o Estado garantirem à criança e ao adolescente direitos inerentes à sua personalidade (art. 227, §§ 1º, 2º, 4º, 5º, 7º); igualdade entre os filhos havidos ou não do casamento, ou por adoção (art. 227, § 6º); respeito recíproco entre pais e filhos; enquanto menores é dever daqueles assisti-los, criá-los e educá-los, e destes o de ampararem os pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 229); dever da família, sociedade e Estado, em conjunto, ampararem as pessoas idosas, velando para que tenham uma velhice digna e integrada à comunidade (art. 230, CF). [23]

A Carta Federal interveio nas relações de direito privado, determinando os critérios de interpretação de cada uma das leis especiais e revelando princípios antes relacionados a temas tratados exclusivamente pelo Código, como a própria organização familiar. Chamou para si o papel de lei fundamental da família, até então ocupado pelo Código de 1916 - que perde definitivamente sua posição de centro das relações de direito privado - e pelas leis esparsas:

O conjunto de princípios e regras que se enquadram no Direito Privado apresentam certas fontes formais. Longe, a base positivada fundamental, até 1988, era o Código Civil brasileiro. Hoje, a Constituição Federal, seus princípios vinculantes como regras básicas do Direito de Família. Perto, a legislação infraconstitucional. Acima das fontes formais em sentido estrito, há princípios: o da igualdade, da não discriminação e da neutralidade. Princípios que não são meros enunciados programáticos. [24]

O primeiro destaque é o art. 226, caput, da Constituição que, ao prever que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", compromete-se pela sua integridade. Adota, ao longo de seus parágrafos, a concepção eudemonista, equiparando-a e reconhecendo efeitos jurídicos à união estável entre homem e mulher (§ 3º) e ao grupo monoparental, em que vive apenas um dos genitores e descendentes, filhos ou netos (§ 4º). Constitui "uma Constituição de cunho marcadamente compromissário, mas que erigiu a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento de nosso Estado democrático de Direito" [25].

Com isso, a Carta Magna estendeu o alcance do conceito de direito de família, construído com supedâneo no Código de 1916, que passa a abranger novos personagens, até então desamparados perante o ordenamento jurídico. Submete-se a entidade familiar, no âmbito do próprio direito civil, aos princípios constitucionais e recebe uma proteção funcionalizada direcionada à realização da personalidade e da dignidade dos seus integrantes.

É precipuamente com fundamento no reconhecimento da dignidade da pessoa humana por nossa Constituição, que se poderá admitir, também entre nós e apesar da omissão do constituinte neste particular, a consagração - ainda que de modo implícito - de um direito de livre desenvolvimento da personalidade. [26]

Foi o que fez, ao estabelecer em seu artigo 227, § 6º, que "os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". Concebeu um novo direito fundamental que, em que pese esteja fora do catálogo, enquadra-se na definição por revelar nítida preocupação com a proteção da dignidade humana, tal como ocorreu com a infância e a igualdade entre os cônjuges. Derrogou, ainda que não expressamente, todos os dispositivos do sistema jurídico que fizessem distinções, pondo fim à problemática referente à filiação:

Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições de motivos de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material. [27]

Até o advento da Carta Magna a filiação era subdividida, do ponto de vista jurídico, em diversas espécies, entretanto, "Diante do novo texto constitucional, forçoso parece ser para o intérprete redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição." [28] Portanto, atualmente, não mais se permite sequer a pronúncia de expressões como ilegítimo, adulterino, espúrio, incestuoso, como leciona Sérgio Gischkow Pereira:

O art. 227, § 6º, da Constituição Federal é magnífico pelo que representa de avanço no Direito de Família pátrio. Quebra uma das mais deploráveis hipocrisias naquele ramo do Direito, de efeitos perniciosíssimos, consistente em "punir" os filhos ilegítimos por eventos no tocante aos quais não têm eles qualquer responsabilidade! [29]

A filiação foi um dos pontos mais alterados pelo texto constitucional, pois a eliminação da ligação entre casamento e legitimidade da família resultou no fim das antigas categorias de filhos. No que tange à evolução da família, a Constituição promulgou o princípio da isonomia, ao proclamar que marido e mulher são iguais em direitos e obrigações, consagrou o modelo eudemonista e, na sua esteira, a igualdade da filiação:

(...) a liberalidade dos costumes, ao menos nas sociedades de países ocidentais, fez com que o conceito de família fosse sendo gradativamente ampliado, para alcançar praticamente todos os tipos de uniões englobadas nas chamadas "entidades familiares". Destarte, foi completa a ruptura operada com relação aos antigos dogmas em que se assentavam esses clássicos institutos do direito de família, o que contribuiu decisivamente para que a igualdade entre os filhos oriundos ou não de justas núpcias fosse plenamente aceita pela sociedade. [30]

Ao igualar os efeitos jurídicos de todas as situações catalogadas como família, a Carta Magna resguardou os direitos dos filhos como crianças e como integrantes do grupo familiar. Com esse escopo, não só permitiu o reconhecimento da paternidade qualquer que seja o estado civil do declarante, bem como pôs fim a qualquer dúvida que persistisse a respeito dos direitos dos filhos incestuosos ou adotivos, equiparados nessa nova realidade relatada por Fachin:

Marido e mulher, mesmos direitos e deveres. Filhos tidos dentro do casamento, mesmos direitos e deveres que os tidos fora do casamento. Assim opera a Constituição de 1988. Tendência de "constitucionalização" do Direito de Família, fruto recente. A Constituição de 1824 tratava somente da família imperial, e proclamada a República, a Constituição trazia um dispositivo sobre a matéria, tentando operar uma separação entre o poder da Igreja e o poder do Estado, e até a Constituição Federal de 1988, a lei fundamental da família era o Código Civil brasileiro. Em 1988, há uma guinada fundamental, a legislação infraconstitucional acaba sendo recolhida, no plano dos princípios básicos, pelo capítulo da família na Constituição Federal. Na incompatibilidade, não há recepção por inconstitucionaldade superveniente. [31]

Em 1990, a Lei 8.069 promulgou o Estatuto da Criança e do Adolescente, que disciplina os interesses da criança. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, fundamento do nosso Estado democrático de Direito, elevado a status constitucional, é concretizado pelo Estatuto quando destaca a proteção à família natural, entendida como "a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes" e consagra a igualdade da filiação, bem como o direito de seu reconhecimento, disposto em seus artigos 26 e 27. [32]

Às três espécies familiares equiparadas pelo texto constitucional para fins de proteção estatal - família legítima, criada pelo casamento; união estável, decorrente da união de um homem com uma mulher ausente o vínculo matrimonial; e família natural, ou comunidade familiar, formada por ambos os genitores ou apenas um deles e seus descendentes – uniu-se outra, introduzida no sistema jurídico pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: a família substitutiva, na qual a criança é colocada, na falta ou em lugar daquela em que nasceu, para receber melhores condições de vida, e na qual assume integralmente o papel de filho.

Em janeiro de 2003, entrou em vigor o Novo Código Civil. Dentre suas maiores mudanças, está a do Direito de Família, conseqüência da nova feição dada à disciplina pela Constituição Federal de 1988. Neste diapasão, o capítulo relativo à filiação, já em seu primeiro artigo, declara a impossibilidade de distinção entre espécies de filhos, proibindo designações discriminatórias, tudo de acordo com o art. 227, § 6º da Carta Magna. A expressão legitimidade, utilizada pelo antigo Código, foi substituída por paternidade.

O artigo 1.597, na frase "presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos", traz a presunção de paternidade. Os filhos nascidos fora do casamento ainda necessitam de reconhecimento porque não há como presumir legalmente sua paternidade. Somente via reconhecimento voluntário ou por sentença judicial essa pode ser estabelecida, enquanto a de filho havido do casamento sofre a incidência da presunção pater is est. Ensina Venosa que "Apesar da igualdade estabelecida em lei, os filhos havidos fora do casamento não gozam da presunção de paternidade outorgada aos filhos de pais casados entre si" [33].

Ainda que tenha cessado a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, ao serem compreendidos no amplo conceito de família, mantém-se distintas as relações matrimonializadas das não matrimonializadas, e seus respectivos filhos, sem que disso resulte ofensa ao princípio da igualdade, eis que provém de diferentes realidades sociológicas. Como a Constituição manteve o casamento como fonte da família, segue o exame da presunção pater is est como resíduo diferenciador entre os filhos provenientes do casamento e os não provenientes. A proibição de distinção não elide as diferenças que continuam a existir:

(...) a opção da unidade da filiação, tendo por base o princípio da igualdade entre os filhos nascidos fora do casamento e os filhos nascidos dentro do casamento, não fez desaparecer a distinção existente entre filhos legítimos e ilegítimos, como resultante necessário, natural e automático do casamento (...) presente em todas as legislações. Então o que a Constituição não permite é o tratamento discriminatório. [34]

O Capítulo que tratava do reconhecimento dos filhos ilegítimos, no Código de 1916, passou a ser denominado, no de 2002, "Do Reconhecimento dos Filhos", posto que não persistem razões para a denominação ilegítimo, abolida do nosso direito. O filho havido fora

das núpcias pode ser reconhecido, no ato do casamento, pelos pais, desde que ambos se manifestem. Reconhecido por apenas um deles, o outro poderá fazê-lo, posteriormente, por escritura pública ou testamento. O reconhecimento da verdadeira identidade impõe-se como direito declarado pela unidade da filiação:

Parece-nos que, hoje, não se pode mais estabelecer, em matéria de reconhecimento, hipóteses taxativas. Simplesmente deve caber o direito ao reconhecimento do filho. Ao nosso ver, mesmo o filho da prostituta tem direito a reconhecimento e exames laboratoriais existem para comprovar a paternidade. Se a regra é constitucional não pode o legislador ordinário estabelecer limitações. O novo Código, no entanto, não contém dispositivo expresso sobre o direito do filho ao seu reconhecimento, o que, no entanto, parece mesmo desnecessário: o filho tem o direito de postular contra o genitor o seu reconhecimento. E basta. [35]

A desconformidade da paternidade jurídica estabelecida pelo Código de 1916 com a real, até então considerada a do ponto de vista biológico, levou à reflexão do que seria a verdadeira paternidade, atentando para a realidade afetiva que liga um filho a um pai. A presunção de paternidade, antes atrelada à defesa da família calcada no casamento, à proteção da legitimidade da filiação e à intenção de manter a autoridade do marido, abre as portas para alterações axiológicas do meio, que levam à busca do verdadeiro sentido da filiação.

Surge, então, o aspecto sócioafetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento das pessoas que integram a tríade pai-mãe-filho. Essa observação revela que o afeto, aspecto aparentemente mais incerto, apesar de um ente abstrato, em muitos casos é o mais apto a revelar quem são os pais, pois "A verdadeira paternidade decorre mais de amar e servir do que de fornecer material genético." [36]

O artigo 1.597, nos incisos III, IV e V do novo Código, cuida da presunção de paternidade dos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, concepção artificial homóloga e inseminação artificial heteróloga, o que constitui inovação em face ao direito anterior que, naturalmente, não previa tais situações. A tecnologia derrubou a supremacia da verdade jurídica como forma de estabelecimento da paternidade, permitindo que os verdadeiros genitores sejam revelados através de um laudo de DNA que estabelece, com precisão quase absoluta, a origem genética de uma pessoa.

Caiu por terra a plenitude do sistema legal que provocou a exclusão da filiação dita ilegítima para apresentar, então, três verdades que podem ser destacadas na busca da real filiação: as verdades jurídica, biológica e sócioafetiva. Há que se ressaltar que a segunda cede espaço, gradativamente, à terceira, permitindo a identificação da figura paterna através do amor, desvelo e serviço com que se entrega ao seu filho. Produto do meio, "A alteração de valores sentida na sociedade não mais tolera o estabelecimento de filiações fictas, com base na verdade jurídica afastada da verdade biológica e sócioafetiva." [37]

A concepção eudemonista traduz a verdade sócioafetiva, consistente na própria valoração do sujeito. A alteração da percepção jurídica de família trazida pela Constituição e

acompanhada pelos diplomas que se seguiram, impõe a construção de um novo sistema de filiação. Essa inovação de alvo objeto de proteção deve ser considerada, por ser dever da ciência jurídica progredir concomitantemente ao ser humano. Por fim, resta afirmar que o afeto deve ser apreciado por tomar lugar de destaque no reconhecimento das relações paterno-filiais, tornando a família instrumento de realização de quem a compõe.

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Sobre a autora
Luana Babuska Chrapak da Silva

acadêmica do curso de ciências jurídicas e sociais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luana Babuska Chrapak. A paternidade socioafetiva e a obrigação alimentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 364, 6 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5321. Acesso em: 23 dez. 2024.

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