Embora a maior parte da sociedade brasileira tenha se familiarizado com o instituto da colaboração premiada apenas recentemente, no curso da Operação Lava Jato, ela já frequenta os palcos jurídicos brasileiros desde 1986, no corpo da Lei nº 7.492, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional. Depois dela, outras também contemplaram o instituto, mas de forma lacônica e assistemática: Leis nºs 8.072/90, 8.137/90, 9.034/95, 9.269/96, 9.613/98 e 9.807/99. A colaboração premiada é uma entre várias medidas facilitadoras da persecução penal, que atualmente estão agasalhadas na Lei nº 12.850/13, que trata das organizações criminosas e tem três eixos principais: conceito legal de crime organizado; tipo penal de associação em organização criminosa - OrCrim; e o procedimento para a aplicação das técnicas especiais de investigação (TEI). Nesse processo evolutivo, a Sexta Turma do STJ ofertou cota de colaboração no Recurso Especial nº 1109485/DF, 2008/0280817-2, julgado em 12/4/2012, ao reconhecer que a colaboração premiada é cabível na apuração de qualquer crime grave, não somente nos cometidos por OrCrim.
Entretanto, em que pese todo esse esforço das instituições brasileiras para aprimorar os processos investigatórios, o polo passivo da Operação Lava Jato vem empreendendo significativo desforço para desvalorizar a colaboração, a começar pelo apodo pejorativo de delação premiada, amplamente difundido, na tentativa de desestimular os colaboradores aferrando-se à tese de que são traidores abjetos. Na realidade, os que optam por colaborar devem ser vistos com outra lente, porque a colaboração vai muito além de delatar comparsas que agiram sob a hipnose destrutiva da corrupção e outros crimes. Nessa raia, devem ser vistos como quem depois de embriagar-se com as fragrâncias intoxicantes da criminalidade pretende erguer-se diante da vicissitude da penalidade, enfrentando os trâmites necessários ao seu reajuste e retomando suas vidas com seriedade e desvelo.
Certamente ninguém se ilude que esse desejo de refazer o campo destruído e plantar novas sementeiras de labor e retidão procedimental germine naturalmente no colaborador, porque a experiência já demonstrou que a gênese desse sentimento está no temor da efetiva punição. Por isso que no início da utilização do instituto poucos aderiam, pois os cinco dias da prisão temporária, associados à certeza de impunidade, não tinham energia suficiente para motivar a colaboração. A Operação Lava Jato veio para mudar esse quadro, quebrando a letargia Pilatiana e dissipando o nevoeiro de desânimo que envolvia a sociedade brasileira, pois mostrou cidadãos até então intocáveis sendo alcançados pelas mãos da Justiça. Seus números são veementes e inéditos no cenário jurídico pátrio: 106 condenações em 1ª instância, que somam 1148 anos, 11 meses e 11 dias de privação de liberdade, incluindo-se políticos de alto escalão e empresários influentes; R$ 49,6 bilhões de ressarcimento com indenizações e multas; R$ 2,9 bilhões recuperados em acordos de colaboração e leniência; e R$ 79 milhões repatriados, conforme divulgação da Justiça Federal e do Ministério Público Federal nos seus sítios eletrônicos, atualizados até 10/8/2016. Logicamente que esses significativos resultados não podem servir de escudo para a prática de abusos estatais, porque os requisitos para validade da colaboração estão talhados no art. 4º da Lei nº 12.850/13: voluntariedade, eficácia, circunstâncias subjetivas e objetivas favoráveis. A partir dessas premissas busca-se alcançar a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da quadrilha; a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades do bando; a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pelo grupo; e a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Nessa quadra, irradia daquele art. 4º, § 1º, que a concessão do benefício levará em conta a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade, a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. Esse inventário de condições e objetivos permite constatar que as regras de ouro da colaboração premiada são: cautela; necessidade de corroboração por outras provas; acordos com os subalternos da quadrilha para alcançar os líderes; e acordo com um para alcançar vários criminosos.
Mas não tem sido fácil esquivar-se das investidas do verbo leviano dos opositores da Lava Jato, que vem sendo alvo de críticas acerbas de réus, suas defesas e alguns juristas. Eles questionam, notadamente, a legitimidade da colaboração premiada com réu preso, ao argumento de que a Justiça tem abusado da prisão preventiva para, aproveitando-se da fragilidade do preso, forçá-lo a fazer o acordo colaborativo. Todavia, os números desmentem essas críticas, porque dos 74 acordos de colaboração firmados até 10/8/2016, de acordo com aquelas fontes já citadas, 59 foram com réus em liberdade, ou seja, 79,13%, enquanto firmaram-se apenas 15 com réus presos, o que equivale a 20,27%. Desses 74 acordos, 41 já foram homologados pelo STF, por isso não há espaço para se falar em ilegalidade, pois a chancela da Corte Maior fulmina esse argumento. Ademais, defender que a colaboração premiada não deveria ocorrer com réu preso mostra-se contraditória, porque daria tratamento privilegiado ao réu solto em detrimento do encarcerado, limitando o direito subjetivo deste de aderir ao acordo, justo quando lhe seria mais vantajoso.
Fato que pode ter impulsionado essa significativa quantidade de acordos foi o exemplo deixado pelo publicitário Marcos Valério, nos autos da ação penal nº 470, popularmente conhecida como mensalão. Na condição de operador do esquema, foi condenado pelas iras do STF a mais de 30 anos de reclusão, enquanto operadores do núcleo político ficaram pouquíssimo tempo privados de liberdade.
Na esteira das colaborações firmadas no âmbito da Lava Jato já foram publicadas as de Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró, ex-diretores da Petrobrás; Ricardo Pessoa, dono da empreiteira UTC, e Delcídio do Amaral, ex-senador da República. Entre outros, eles ofertaram valioso caderno de informações para o descortino do que é tido como o maior escândalo de corrupção do mundo democrático, e nesse contexto as perguntas que emergem são: a nova Lei e a nova forma de utilizar os mecanismos de combate ao crime organizado vieram para ficar? A advocacia criminal precisa se ajustar a esse novo paradigma? A Lava Jato resolverá o problema da corrupção no Brasil? É certo que a Lava Jato alçou a lide com a corrupção e o crime organizado a outro patamar e trata-se de caminho sem volta, desbravado por valorosa equipe de servidores devotados. Nesse cenário, a advocacia criminal terá de renovar seus ares para enfrentar essa alvissareira fase que dá seus primeiros passos. Entretanto, se por um lado se sabe que essa Operação e seus mecanismos não varrerão a corrupção do mapa brasileiro, porque isso ainda não ocorreu em nenhum lugar do mundo, por outro se tem certeza de que foi o marco de uma nova etapa, que se pudesse ser sintetizada numa única palavra seria ESPERANÇA!