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Conserto de produtos: perda da posse/propriedadade do produto pelo abandono.

Prática comercial abusiva

19/06/2004 às 00:00

Resumo:


  • A busca por assistência técnica especializada para conserto de produtos é comum, e o consumidor recebe um "ticket" ao deixar o produto, com a opção de concordar ou não com o orçamento na data marcada.

  • É comum a existência de cláusulas nos orçamentos que estipulam a perda da propriedade do produto pelo consumidor após 90 dias sem retirá-lo, mas tais cláusulas são consideradas abusivas e nulas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).

  • O CDC prevê regras específicas para a elaboração de orçamentos e a execução de serviços, visando proteger o consumidor de práticas abusivas, como a perda da propriedade do produto deixado para conserto após um período sem retirá-lo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É cada vez mais freqüente a procura dos serviços de assistência técnica especializada para o conserto de produtos com defeito. O consumidor procura o serviço especializado deixando o produto para fazer um orçamento. Recebe do fornecedor de serviço um "ticket" ou expediente semelhante que estabelece as características do produto depositado e a data que o consumidor poderá voltar para tomar ciência do orçamento. Na data marcada, o consumidor possui a opção de retirar o produto, na hipótese de não concordar com o preço do orçamento ou contratar o serviço para a realização do conserto.

Curioso é que quase sempre no rodapé desta nota de orçamento prévio vem prescrita uma cláusula que diz: "Se o consumidor não retirar o produto no prazo de 90 dias após a data marcada, o consumidor perderá a propriedade do produto depositado, podendo ser vendido como forma de pagamento pelo serviço autorizado".

Diariamente os Procons registram reclamações contra os fornecedores de serviços de assistência técnica, como os serviços de consertos de tv, telefone, computador, eletrodoméstico em geral, etc.. pelo fato de apropriar-se do produto depositado para o conserto, chegando a vende-lo em determinados casos, ao argumento que o consumidor deixou ultrapassar o prazo de tolerância do produto no estabelecimento do fornecedor. Reclamações como estas não são raras como o exemplo do consumidor que deixou um aparelho de celular para conserto numa assistência técnica. Após 5 meses compareceu a loja e foi informado que em razão do lapso temporal, o celular foi para a sucata, não sendo possível restituir o aparelho. O consumidor justificou o atraso para apanhar o celular, pois estava juntando dinheiro para o pagamento do conserto. E agora? Quem vai pagar pela perda da propriedade do produto? O fato do consumidor não comparecer no prazo autoriza o fornecedor a vender coisa alheia como se a coisa fosse abandonada?

Trata-se na verdade de autêntica prática comercial abusiva veiculada livremente no mercado de consumo, sob a aparência de cláusula legal, quando na verdade trata-se de uma cláusula ágrafa, que o Código de Proteção ao Consumidor proíbe.

A cláusula ágrafa é a cláusula não escrita, ou que não pode ser escrita, pois a mesma contraria o ordenamento jurídico da lei do consumidor, sendo, portanto nula de pleno direito.

Na realidade, o fato do consumidor não comparecer na data designada para apanhar o produto deixado para o conserto, não pode ser considerado como abandono, ou conforme a máxima romana: "RES DERELICTA".

A perda da coisa, nos termos do art. 1.275 do Código Civil pode se dar por alienação (venda ou doação), renúncia, perecimento da coisa, desapropriação ou abandono.

Para ocorrer o abandono é necessário que o titular (dono da coisa) venha abrir mão de seu direito de propriedade, ou seja: tenha a vontade de abandonar a coisa, não podendo ocorrer o abandono subentendido. Esquecimentos por parte do consumidor são comuns numa sociedade de consumo, não sendo possível aplicar a sanção da perda da propriedade do produto, passando ao domínio do fornecedor de serviço.

Faz-se necessário estabelecer um mecanismo de equilíbrio entre o fornecedor e o consumidor, sendo certo que a cláusula constante no orçamento prévio que autoriza a apropriação do patrimônio alheio é abusiva, logo é considerada nula de pleno de direito na forma do art. 51, IV, do CDC. pois ofende o princípio da boa-fé, sujeitando o fornecedor a responder pela indenização do produto alienado(vendido).

Ao nosso juízo, o fornecedor de serviço para evitar transtornos com o consumidor deve atentar para os comandos que a lei consumerista recomenda, no qual destacamos:

1. Não executar serviço sem orçamento prévio. Diz o art. 39, VI do CDC que é proibido ao fornecedor de produtos ou serviços: executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes;

2. Requisitos do orçamento prévio. O orçamento prévio deverá mencionar o valor da mão de obra, equipamentos utilizados, condições de pagamento, e datas de início e término dos serviços. Diz o art. 40 do CDC: O fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços.

3. Prazo de validade do orçamento. O orçamento prévio deve estabelecer o prazo de validade, sob pena de valer pelo prazo de 10 dias, conforme estabelece o art. 40 § 1º: Salvo estipulação em contrário, o valor orçado terá validade pelo prazo de 10 (dez) dias, contados de seu recebimento pelo consumidor.

4. Aprovação expressa pelo consumidor. O orçamento deverá ser aprovado expressamente pelo consumidor, considerando como prática abusiva na forma do art. 39, VI do CDC que menciona: "...autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes";

5.Orçamento é um pré-contrato. Aprovado pelo consumidor, o orçamento obriga o fornecedor a executar os serviços nos moldes da apresentação. Diz o art.40,.§ 2º do CDC: Uma vez aprovado pelo consumidor, o orçamento obriga os contraentes e somente pode ser alterado mediante livre negociação das partes. Estabelece ainda o art.48 do CDC.: As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do artigo 84 e parágrafos. Registra-se ainda, que o art. 30 do CDC. relata que Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado. Estabelecendo o art. 35, Ido CDC que Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;

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6. Isenção de quaisquer ônus ao consumidor. O art. 40, § 3º do CDC diz que o consumidor não responde por quaisquer ônus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros, não previstos no orçamento prévio.

7. Ausência de informação = publicidade enganosa por omissão. O fornecedor de serviço não poderá omitir informação relevante no orçamento prévio, tais como o preço, ou quaisquer outros dados sobre os serviços, como frete, mão de obra terceirizada, etc. sob pena de incidir na publicidade enganosa, conforme estabelece o art 37 § 3º do CDC: Para os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço; podendo tal conduta incidir no tipo penal previsto no art. 67 que diz: Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena - Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.

8. Produto para conserto/Perda da propriedade. Não consignar no orçamento prévio a perda da propriedade do produto para conserto, considerada cláusula abusiva, na forma do art.51, IV do CDC. logo, nula de pleno direito, sujeito o consumidor ingressar na Justiça pleiteando indenização pelo dano ocorrido; não descartando a hipótese do fornecedor de registrar no orçamento a cláusula de multa ao consumidor displicente que esqueceu de retirar o produto para conserto no prazo mencionado.

9. Conhecimento prévio do conteúdo do contrato. Registra-se por fim, o art. 46 do CDC., estabelecendo que Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não Ihes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance; sendo que as cláusulas que dificultam a compreensão ao consumidor, serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, na forma do art. 47 do CDC., atendendo assim ao princípio da transparência máxima(art.4 caput).

Destarte, adotando-se o Código de Defesa do Consumidor como linha mestra, é considerada abusiva a cláusula constante no orçamento prévio que prevê a perda do produto em favor do fornecedor de serviço, registrando como produto abandonado, permitindo assim a perda da propriedade em favor do fornecedor, sendo tal cláusula reconhecida pelo direito consumerista como nula de plena direito.

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Sobre o autor
Plínio Lacerda Martins

promotor de Justiça em Juiz de Fora (MG), professor de Direito do Consumidor da FGV e UGF, mestre em direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Plínio Lacerda. Conserto de produtos: perda da posse/propriedadade do produto pelo abandono.: Prática comercial abusiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 347, 19 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5332. Acesso em: 19 dez. 2024.

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