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FGTS. Empregado doméstico. Vínculo empregatício reconhecido por decisão judicial.

Impossibilidade de o empregador optar por pagar ou não os depósitos fundiários

07/07/2004 às 00:00
Leia nesta página:

"Cumpre ao magistrado ter em mira um ideal superior de justiça,

condicionado por todos os elementos que informam

a vida do homem em comunidade"

(François Geny, apud Carlos Maximiliano)

Defenderemos neste ensaio a tese da obrigatoriedade do recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, quando o vínculo empregatício do trabalhador doméstico for reconhecido por decisão judicial, a despeito de o art. 3º-A, da Lei 5.859/72, instituído pela Lei 10.208/01, outorgar faculdade ao empregador quanto ao pagamento dos fundiários.

Tal artigo, que tornou possível o acesso dessa categoria ao FGTS, é norma dispositiva, escassa no Direito do Trabalho. Mesmo sendo regra dessa espécie, pensamos haver um momento próprio para o empregador fazer uso da alternativa de pagar ou não os fundiários. Isto porque essa disposição legal está impregnada de injustiça, devendo ser interpretada de modo a encontrar uma solução que atenda aos fins sociais que toda lei deve ter em mira (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).

Referido artigo não está ainda em sintonia com o Estado Democrático de Direito, tanto que a nossa Carta Maior "consagra uma ordem social calcada no primado do trabalho e na dignidade da pessoa humana e cujo objetivo repousa na promoção do bem estar e da justiça sociais (CF, art. 193)" (Carlos Henrique Bezerra Leite. Curso de Direito Processual do Trabalho, 2ª edição, São Paulo LTr, 2004, p. 34)

A Lex Fundamentalis deu aos direitos sociais status significativo, "capaz de vincular a interpretação das normas hierarquicamente inferiores e até mesmo interpretação das próprias normas constitucionais ao crivo da função social" (Kátia Magalhães Arruda. Direito Constitucional do Trabalho, São Paulo: LTr, 1988, p. 37)

Os direitos sociais são verdadeiros direitos fundamentais, o que importa dizer que a sua aplicação prevalece sobre a lei que os contrarie.

Por óbvio que a Lei 10.208/01, de forma incompatível com a letra e o espírito da Constituição, ao conferir o direito de opção ao empregador, desviou-se dos fins traçados pela Carta, os quais exaltam a dignidade da pessoa humana em face dos valores patrimoniais.

Lei dessa natureza deve ser expurgada do sistema jurídico, ante a sua incoerência com os objetivos sociais da Constituição e incompatibilidade com a atual filosofia do Direito Civil, em que a "socialidade" tem preeminência.

A Lei 5.859/72, regulamentou a profissão do trabalhador doméstico, garantindo-lhe direitos tais como: registro em carteira de trabalho, benefícios previdenciários, etc.

A possibilidade de se conceder o direito ao FGTS aos domésticos somente foi vislumbrada com a edição da Lei 8.036/90 a qual, em seu artigo 15, §3º, estabeleceu que "Os trabalhadores domésticos poderão ter acesso ao regime do FGTS, na forma que vier a ser prevista em lei".

Com a edição da Lei 10.208/01, que incluiu o artigo 3º-A na Lei 5.859/72, aquela possibilidade tornou-se factível, deixando-se, entretanto, ao empregador a faculdade de inserir o trabalhador doméstico no regime FGTS, nos seguintes termos: "É facultada a inclusão do empregado doméstico no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, de que trata a Lei n. 8.036, de 11 de maio de 1990, mediante requerimento do empregador, na forma do regulamento".

Na dicção da lei, tal direito ficou ao arbítrio do empregador. Ou seja, o trabalhador doméstico somente usufruirá dos fundiários se o empregador assim desejar. Nesse particular, o Direito do Trabalho funciona como opção do empregador.

Ressalte-se que tanto a Lei 5.859/72 quanto a Lei 10.208/01, foram editadas sob a influência do momento histórico em que a filosofia do direito privado era voltada para o individualismo, simbolizado pelo direito de propriedade, o qual juntamente com a instituição da família, constituía "as duas maiores forças de sustentação das teorias do Direito Civil, como ramo do direito privado, que se funda, essencialmente, no egoísmo, sobretudo como reminiscência das desigualdades existentes entre patrícios e plebeus, na antiga Roma" (Orlando Soares. Filosofia Geral e Filosofia do Direito, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 299/300).

O paradigma do direito privado até a edição do Código Civil de 2002, foi abolido, surgindo em seu lugar o modelo do social, do equilíbrio, do justo e não da lei, ou seja, hoje em dia o Direito vem insculpido numa função social, passando a encarar as pessoas numa relação de igualdade, com normas que permitem soluções diferenciadas. O mais importante é aplicar a norma a fim de dar uma solução justa ao caso concreto. O instrumento utilizado pelo legislador para atingir o justo foi produzir norma de conteúdo abstrato, as chamadas cláusulas gerais, que, para serem aplicadas necessitam de valoração (maior liberdade de atuação do julgador).

O jusfilósofo Miguel Reale ao anunciar o enfoque do novo Código Civil, assinalou que o sentido social é umas das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condicionava o Código de 1916, aduzindo que "Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da ‘socialidade’, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, do valor fundante da pessoa humana" (in Carlos Roberto Gonçalves. Principais inovações no Código Civil de 2002, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 40).

Concretizando essa principiologia, o art. 421 do novo Código Civil, introduz no direito das obrigações, o princípio da função social dos contratos, de maneira que somente se enquadra nesse princípio o pacto que assegurar "trocas úteis e justas", pois as convenções não têm mais aquele caráter individualista, e sim social. "Em outras palavras, o contrato é também instrumento do bem comum, de modo que somente se enquadra na sua função social o contrato que, sendo útil, é também justo" (artigo do professor Nelson Nery Júnior in O Novo Código Civil. Estudos em homenagem ao professor Miguel Reale, São Paulo: LTr, 2003, p. 425).

Constata-se, pois, que a Lei 10.208/01, instituindo a faculdade de o empregador depositar ou não o FGTS do empregado doméstico, está em desacordo com a tendência atual de socialização do direito, encampada principalmente pela Carta da República, Código de Defesa do Consumidor e atual Código Civil, que visam a concretização da igualdade real entre as pessoas, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Prevaleceu naquelas leis o interesse patronal em detrimento do trabalhador doméstico, pois norma que outorga poder de escolha ao seu destinatário de cumpri-la ou não, em geral se faz letra morta no ordenamento jurídico.

A lei dos empregados domésticos, como dito, assegura, entre outro direitos da categoria, a anotação do contrato de trabalho em CTPS. Entretanto esta norma não cuida do momento em que o registro deve ser realizado.

Por analogia, invocamos o que diz a CLT referente ao momento do registro. Seu artigo 29 estabelece que a carteira profissional será obrigatoriamente apresentada pelo trabalhador ao empregador que o admitir, o qual terá o prazo de 48 horas para nela anotar o contrato laboral.

A interpretação da Lei 5.859/72 combinada com as disposições da CLT no que pertine à anotação do contrato de trabalho, inexoravelmente leva à conclusão de que a CTPS do empregado doméstico tem de ser assinada naquele prazo.

Da mesma forma, no referente à opção pela inclusão ou não do empregado doméstico no FGTS, esta deve ser exercida pelo empregador no momento da contratação, ocasião em que o contrato de trabalho obrigatoriamente deve ser anotado em CTPS.

Se o empregador efetuou o registro no prazo legal e não requereu junto à CEF a inclusão do doméstico no sistema do FGTS, mediante apresentação da guia de recolhimento e efetivação do primeiro depósito na conta vinculada, sua omissão significa que optou em não recolher os fundiários.

Entretanto, se o patrão não anotou o contrato de trabalho na CTPS do empregado naquele prazo, consequentemente deixou de manifestar-se acerca da opção conferida pelo legislador sobre depositar ou não o FGTS, haja vista que esta depende do registro. Logo não poderá mais fazê-lo porque passado o momento em que gozava de liberdade de escolha.

No sistema jurídico brasileiro, encontramos no artigo 571, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, hipótese que serve de supedâneo para a tese aqui defendida, se interpretada a contrario sensu.

Referido diploma processual proclama que "Nas obrigações alternativas, quando a escolha couber ao devedor, este será citado para exercer a opção e realizar a prestação dentro em 10 (dez) dias, se outro prazo não lhe foi determinado em lei, no contrato, ou na sentença". E seu §1º estabelece que "Devolver-se-á ao credor a opção, se o devedor não a exercitou no prazo marcado".

Quem tem direito à opção de pagar ou não o FGTS é o empregador. Vamos dizer então que ele é o credor do direito de optar. Sendo credor, deve exercer seu direito no momento em que a lei determina (prazo para anotação do contrato de trabalho). Se não registrou o trabalhador em 48 horas (termo legal), não mais poderá optar pelo não recolhimento das verbas fundiárias, posto que precluso seu direito.

Portanto, se o trabalhador tiver de buscar na Justiça do Trabalho o reconhecimento de seu vínculo empregatício e sua demanda for procedente, a sentença obrigará o empregador a efetuar a anotação na CTPS e não poderá devolver-lhe a faculdade de incluir o empregado doméstico no regime do FGTS, pois não seria razoável obrigá-lo a registrar o contrato de trabalho e ao mesmo tempo autorizá-lo a optar por pagar ou não os fundiários.

O deferimento de opção ao empregador doméstico não atende ao fim social que toda lei deve conter no sentido de "produzir na realidade social determinados efeitos que são desejados por serem valiosos, justos, convenientes, adequados à subsistência de uma sociedade, oportunos, etc. A busca desse fim social será a meta de todo o aplicador do direito. Com isso a teleologia social terá um papel dinâmico e de impulsão normativa. Se assim não fosse, a norma jurídica seria, na bela e exata expressão de Rudolf vom Ihering, um ‘fantasma de direito’, uma reunião de palavras vazias". (Maria Helena Diniz. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 162).

Anote-se que se o empregador não registrar o empregado, o ordenamento jurídico lhe impõe punições administrativa (art. 47, da CLT), criminal (art. 297, § 4º, do CP) e civil (arts. 186 e 927, do CC).

A penalidade civil consiste em condenar o patrão por danos morais, pois a ausência de anotação na CTPS representa falta grave do empregador e causa ao empregado significativos prejuízos, uma vez que dificulta a comprovação de tempo de serviço para fins de aposentadoria e para usufruir de quaisquer outros benefícios sociais, tais como seguro-desemprego, auxílio-doença, etc.

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Nesse sentido já decidiu o egrégio TRT da 15ª Região: "REPARAÇÃO DO DANO MORAL DECORRENTE DE ATO ILÍCITO PRATICADO PELO EMPREGADOR. DEVIDO. A desobediência a normas de ordem pública, a saber, anotação do contrato em inserção do trabalhador no sistema de previdência social, certamente se constitui em desrespeito à lei que causam danos morais ao trabalhador, presumíveis, inclusive, porque o obreiro não registrado está alheio ao sistema de proteção já indicado" (TRT 15ª R. – 2ª T. – 9.637/03 – Ac. 34.403/03-PATR – Rel. Juíza Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa – DOE 31.10.03 – p. 55)

Diante dessas sanções previstas no ordenamento jurídico ao mau empregador, conceder-lhe a benesse de optar entre pagar ou não o FGTS, se o reconhecimento do contrato de trabalho lhe for imposto judicialmente, viola, no mínimo, o bom senso.

Embora a forma ideal de efetivamente assegurar ao trabalhador doméstico o direito ao FGTS, fosse o legislador preceituar a obrigatoriedade do recolhimento, como não o fez, deverá a doutrina e a jurisprudência caminhar na orientação de, ao menos, impor ao empregador, se o reconhecimento do vínculo empregatício for judicial, o dever de pagar os valores relativos ao FGTS, sem qualquer possibilidade de opção.

A proposição ora defendida adequa-se melhor ao justo, finalidade social de toda norma jurídica. Pois o Direito não pode "isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica; e esta não há de corresponder imutavelmente às regras formuladas pelos legisladores. Se as normas positivas se não alteram à proporção que evolve a coletividade, consciente ou inconscientemente a magistratura adapta o texto preciso às condições emergentes, imprevistas". (Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 157).

Em conclusão podemos afirmar que a faculdade outorgada pela multi referida lei, somente pode ser exercida quando do registro do contrato de trabalho no prazo legal, e não no momento em que o vínculo empregatício é reconhecido por decisão judicial, pois do contrário seria chancelar ainda mais a injustiça da lei que outorgou ao trabalhador doméstico um "falso" direito ao FGTS e, consequentemente, ao seguro-desemprego.

A tese ora defendida, além de encontrar eco no princípio da razoabilidade que, em essência, consubstancia um ideal de justiça, equidade, bom senso, direito justo, também está em harmonia com o método de interpretação conforme à Constituição, apoiado na doutrina alemã, segundo o qual é possível um alargamento do sentido da lei a fim de compatibiliza-la com a Norma Fundamental.

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Sobre o autor
Roberto Silva

Advogado em Caçapava/SP,Especialista em Direito do Trabalho pela PUC/SP, Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Taubaté

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Roberto. FGTS. Empregado doméstico. Vínculo empregatício reconhecido por decisão judicial.: Impossibilidade de o empregador optar por pagar ou não os depósitos fundiários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 365, 7 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5349. Acesso em: 24 abr. 2024.

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