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Greve dos servidores públicos

22/06/2004 às 00:00
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Chegamos a mais um final de semestre na Universidade e, desde logo, ouvimos falar em uma nova greve. Talvez seja a influência do ano eleitoral. Talvez não. Talvez sejam, de fato, interesses legítimos e plenamente justificáveis (como, alias, nos quer parecer) a motivar mais uma greve.

Mas, de uma forma ou de outra, não nos propomos a discutir nessa sede as condicionantes morais ou sociais do movimento cuja deflagração ora se propaga. O que nos propomos, na verdade, é fazer uma abordagem jurídica, se não dos movimentos, da sua instauração pelas entidades sindicais representativas dos servidores públicos (para ensaio, sempre entendidos lato sensu).

O fato é que a greve dos servidores públicos, dentre os quais se inserem os servidores das Universidades, vem encontrando dificuldades em demonstrar legitimidade jurídica frente ao ordenamento constitucional pátrio.

Dispõe a Carta de 1988, em seu art. 37, VII, que "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica".

Firma-se, a esse respeito, entendimento jurisprudencial, inclusive (e principalmente) no seio da Egrégia Corte Constitucional, no sentido de que o preceito supra enunciado é norma não auto-aplicável, dependendo o seu exercício de regulamentação legislativa, por meio de lei específica.

A esse propósito, há quem a afirme, entre nós o professor Carlos Henrique Bezerra Leite, que, à míngua da edição de norma regulamentar no pormenor, poderia ser aplicada à espécie a "lei de greve" (Lei n.º 7.783/89), editada, já sob a égide do atual sistema constitucional, embora com vistas a regular a instituto para os trabalhadores da iniciativa privada. Data venia ao ilustre jurista, que além de professor da Universidade Federal do Espírito Santo, é membro do Ministério Público do Trabalho e da Academia Brasileira do Direito do Trabalho, discordamos dessa posição.

Não temos dúvidas de que a mora legislativa do Estado Brasileiro é censurável, do que trataremos adiante. Contudo, tal não nos permite chegar à conclusão aventada.

A Constituição, em sua redação original, exigia a edição de lei complementar para regular a matéria. Sendo assim, dada a reserva de lei complementar, a "lei de greve", ainda que aplicável à espécie, não se presta (já que não se prestava, no momento da sua edição) a regular a greve dos servidores públicos.

Destacamos, a propósito, que nem mesmo após a alteração constitucional, levada a termo pela Emenda Constitucional n.º 19, a partir da qual a Carta passou a exigir, à regulação da matéria, a edição de lei específica (que é uma lei ordinária), tornou-se possível afirmar a aplicabilidade da "lei de greve" aos servidores públicos. Isso porque essa norma não será, para os servidores públicos, "lei específica", que deve ser editada tendo-se em conta as particularidades dos serviços executados pela Administração.

Destacamos, ainda, que os serviços públicos são, de regra, essenciais. Se assim não fosse, não seriam esses serviços públicos, mas privados. Foge à nossa compreensão que o Estado viesse a se ocupar de serviços que não fossem essenciais à população. Se assim o fizesse, estaria a opor-se a pelo menos dois dos princípios enumerados no caput do art. 37 da Constituição: a moralidade e a eficiência. Com essas ressalvas, a questão afeta à greve na seara pública está a demandar valoração normativa completamente distinta daquela efetuada pelo legislador ordinário quando editou, em 1989, a lei de greve. É, pois, perfeitamente justificável a preocupação do legislador constitucional em determinar a sua regulamentação por lei complementar e, posteriormente, por lei específica.

Se isso não bastasse, há, ainda, um outro óbice à utilização da "lei de greve" para regulação dos movimentos paredistas dos servidores públicos. É que a alteração constitucional proporcionada pela Emenda Constitucional n.º 19, já referenciada, não tem o condão de promover a recepção da mencionada norma trabalhista quanto aos servidores públicos. Vejamos:

A recepção, enquanto fenômeno, atua pontualmente. Trata-se de faceta do poder constituinte originário e se justifica apenas para que o novo sistema constitucional, que então entra em vigor, não fique desprovido de executoriedade quanto a normas não auto-aplicáveis. Somente com esse escopo é que se pode admitir, após a construção de um novo ordenamento constitucional, a perpetuação da vigência (e validade) de normas legais editadas ainda sob a égide de sistemas constitucionais pretéritos. Uma vez em vigor a nova Carta Política, todas as normas jurídicas que não foram recepcionadas no momento da sua promulgação (fração de segundos), perdem validade (o STF fala em revogação) em face do novo sistema, o que torna inviável a sua convalidação, ainda que por Emenda Constitucional.

A norma em questão, publicada em 28 de julho de 1989, não foi objeto de recepção pelo atual sistema constitucional, mas, ao revés, foi construída já na sua vigência. Tal não afiança, como dirão alguns, a possibilidade de que "lei de greve", editada para efeito de regular o instituto aos trabalhadores da iniciativa privada, por estar no ordenamento jurídico a esse título, venha a regular, validamente, após a Emenda Constitucional n.º 19, os movimentos paredistas deflagrados pelos servidores públicos. Tal proposição se contrapõe à tradição constitucional brasileira, tal como descrita, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência.

É que essa norma, se regulasse a greve dos servidores públicos, padeceria, na origem, de vício formal de constitucionalidade, haja vista o malferimento ao princípio da reserva de lei complementar. As normas inconstitucionais, tidas pelo Supremo Tribunal Federal como inválidas, são inexistentes no plano empírico-pragmático, o que nos permite concluir, mesmo se admitíssemos a constitucionalidade material da Lei n.º 7.783/89 para regular a greve dos servidores públicos, o que se faz apenas ad agumentum tantum, que inexiste lei federal formalmente válida a regular a matéria.

Até porque, é pacífico no Excelso Pretório que a Emenda Constitucional não tem o condão de "constitucionalizar" uma norma originariamente inconstitucional; o que não obsta, evidentemente, a edição de outra norma, nova, ainda que com o mesmo texto, embora, desta feita, representando uma nova vontade legislativa, concebida sob os princípios, premissas e condicionantes preceptivos insertos na Carta Política.

Concluímos, assim, pela inviabilidade da aplicação da lei de greve ao movimentos paredistas deflagrados pelos servidores públicos. Mais do que isso: poderíamos, até, já que nos propomos a discutir a questão apenas sob o enfoque jurídico, pugnar pela ilegalidade de qualquer greve deflagrada no serviço público. Afinal, o Excelso Pretório tem, como dissemos, posicionamento consolidado a esse respeito: até que venha a lei de greve dos servidores, carecerão os movimentos paredistas destes de suporte jurídico adequado.

Não o faremos.

Notamos, aliás, substancial alteração no enfrentamento da questão pelo Poder Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal foi quem primeiro sinalizou nesse sentido, ao determinar a suspensão dos prazos processuais em favor da Fazenda Pública por ocasião do início da greve dos Membros da Advocacia da União. É certo que não se pode extrair dessa decisão, nem mesmo implicitamente, a manifestação da Suprema Corte no sentido da derrogação do posicionamento anteriormente fixado. Mas é, sem dúvida, um grande avanço nesse sentido.

Também o Superior Tribunal de Justiça enfrentou, recentemente, a questão, decidindo que enquanto não vierem as limitações impostas por lei, o servidor público poderá exercer seu direito. Não ficando, portanto, jungido ao advento da lei (STJ, Mandado de Segurança 2834-3/SC, Relator Ministro Adhemar Maciel, 6ª Turma).

Mas foram os Juizes Federais da primeira instância, sede em que o Direito se oxigena, dada a proximidade dos magistrados com as partes e, por conseqüência, com as questões que verdadeiramente originam os litígios, que deram o passo mais importante no sentido de se conferir alguma legitimidade jurídica aos movimentos grevistas dos servidores. Não que tenham eles, generalizadamente, negado a premissa anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal Federal, de que a norma constitucional que trata do direito de greve dos servidores tem eficácia limitada e que, portanto, depende, ainda, de regulamentação normativa. Mas, notadamente, para, na linha da mais moderna doutrina constitucionalista, reconhecer eficácia mínima ao preceito constitucional.

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Abrimos, aqui, um parêntese para transcrever as ponderações tecidas pelo professor Maurício Godinho Delgado, insigne magistrado trabalhista e um dos mais festejados doutrinadores da atualidade no Direito do Trabalho, acerca das correntes doutrinárias que despontam na doutrina do direito constitucional quanto à eficácia das normas constitucionais:

A esse propósito, duas teorizações principais têm-se confrontado, elegendo critérios distintos – com efeitos também distintos – sobre eficácia das normas jurídicas constitucionais. Há vertente tradicional, inspirada na obra de antigos constitucionalistas, como Thomas Cooley e Rui Barbosa, e a quem se filiam anda autores contemporâneos, como M. G. Ferreira Filho. Há, por outro lado, a vertente moderna, inspirada em juristas do Pós - II Guerra Mundial, como o italiano Vezio Crisafulli e desenvolvida no Brasil por autores como José Afonso da Silva, Michel Temer e Maria Helena Diniz.

A teor da leitura proposta pela vertente tradicional, existiriam dois tipos de normas constitucionais, considerada a sua eficácia jurídica: normas auto-executáveis e normas não-executáveis.

Auto-executáveis seriam aquelas normas que têm aplicabilidade imediata. Completas e definidas quanto à hipótese de incidência e seu conteúdo normativo (e no tocante à forma de se concretizarem), tais normas se bastam a si mesmas, tendo, desse odo, aptidão formal para incidir e reger imediatamente situações fáticas concretas.

Não auto-executáveis, por sua vez, são aquelas insuscetíveis de incidência imediata, por dependerem de regra infrqconstitucional ulterior que as complemente ou especifique. Pairam em certo limbo jurídico, sem aptidão para reger situações da vida concreta [...] (in Introdução ao direito do trabalho. 2ª Edição. São Paulo: LTr, 1999. Páginas 107/108).

É evidente que o Excelso Pretório não se filia a essa corrente tradicional. Tanto isso é verdade que, ao debruçar-se sobre a norma constitucional de que ora nos ocupamos, que rege a greve dos servidores, atribuiu-lhe eficácia limitada, adotando, portanto, teoria consagrada na obra de José Afonso da Silva.

Há, então, relevante contradição no posicionamento da Corte Suprema que, ao que parece, é agora desvelada por magistrados difusos por todo o território nacional. Ora, negar todo e qualquer efeito ao preceito constitucional em comento, apenas por não ter ele regulamentação normativa infraconstitucional, significa colocá-lo no limbo jurídico a que se refere Godinho. Significa, outrossim, tratar a mencionada norma, não como "norma de eficácia limitada" (como disse o STF, na linha da doutrina moderna), mas como "norma não auto-executável".

Ocorre que não há mais espaço na doutrina constitucionalista para tal conceituação. O que Godinho classificou, eufemisticamente, como doutrina tradicional, chamamos doutrina arcaica, reacionária, pois não é razoável que se admita em um Estado Democrático de Direito que se retire de uma norma constitucional toda e qualquer eficácia.

Isso não quer dizer que a norma em questão não mais necessite de regulamentação. Na verdade, a "não-regulamentação" do preceito que, como dissemos, não está apta, na linha de posicionamento judicial emergente, a obviar a greve, causará (e já vem causando) embaraços a ambas as partes (servidores e Administração) e, por vezes, justificará (e já vem justificando) abusos e o oportunismo político. Ou os leitores não notaram que os movimentos paredistas dos servidores federais são deflagrados a cada biênio e, coincidentemente, em anos de eleições? Será que há alguma coincidência nisso? Apenas lembramos, a propósito, que já se passam dezesseis anos da edição da Carta de 1988 e, ainda assim, o Congresso Nacional não cuidou da regulamentação da greve dos servidores. Será que há algum interesse particular ou casuístico por trás de tão vergonhosa mora legislativa?

De toda sorte, como dissemos, não queremos discorrer, aqui, sobre as mazelas do sistema democrático que, aliás, tem muito mais pontos positivos que negativos. Mas pensamos que o Poder Judiciário tem (e terá), notadamente a partir dessa virada de posicionamento acerca da greve dos servidores públicos, papel fundamental na regulamentação da matéria por lei específica. Registramos, a propósito, que se, por imposição de decisão judicial fulcrada, por exemplo, na mora legislativa do ente federal em editar norma regulamentadora da greve dos servidores, a Administração não puder cortar os pontos dos servidores ou aplicar a eles qualquer penalidade administrativa, será ela, a Administração, a maior interessada na edição da norma regulamentar.

Então cabe a nós, operadores do direito, criar os instrumentos necessários (já que Jurisdição é inerte) para que os Juizes tenham a oportunidade de acionar o sistema de freios e contrapesos (check and ballances) e pressionar (ou, ao menos, condicionar) a edição da lei de greve dos servidores públicos. Somente assim teremos, a partir do conflito harmônico entre os três poderes, a verdadeira Democracia.

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Sobre o autor
Claudio Penedo Madureira

Bacharel em Direito e em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo e Analista Judiciário da Justiça Federal (Seção Judiciária do Espírito Santo), onde atua como Oficial de Gabinete, no Gabinete do MM. Juiz Federal da 3ª Vara

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MADUREIRA, Claudio Penedo. Greve dos servidores públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 350, 22 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5354. Acesso em: 23 dez. 2024.

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