Sumário: 1. Introdução. 2. O que é patrimônio cultural? 3. O papel dos Municípios e dos Planos Urbanísticos 4. Conclusões 5. Bibliografia.
1. Introdução
O que difere um povo de outro? O que une e o que separa os indivíduos de tantas partes do mundo?
Para conhecermos um povo recorremos à análise de seus hábitos, sua forma de demonstrar sentimentos, expectativas e suas manifestações espirituais onde se refletem seus valores e sua história compondo o que hoje entendemos como cultura.
A cultura inclui conhecimentos, construções arquitetônicas, artes, moral, leis, costumes, hábitos e qualquer outra manifestação que expresse a vida de um povo. Essas manifestações são, em verdade, a própria identidade de uma sociedade e exprimem sentimentos comuns que manifestam singularidade, o que por si só, abarca indiscutível valor humanístico.
O século XX é marcado por movimento político mundial de preservação do Patrimônio Cultural de tal modo que é certo dizer, hoje, que a preservação da identidade popular é uma das funções do Estado e um dever de toda sociedade.
Sem deixar de relevar as diversas iniciativas nacionais e internacionais, consideramos ponto alto nas políticas internacionais a criação da Unesco, que promove a identificação, a proteção e a preservação do patrimônio cultural e natural de todo o mundo, por mandato conferido por um tratado internacional firmado em 1972 e ratificado até agora por 164 países, entre eles, o Brasil.
Em se tratando do Brasil, os fins estatais de preservação do patrimônio cultural são expressos, ainda, na Constituição Federal e legislação ordinária. O regime constitucional do Patrimônio Cultural estende-se por diversos artigos em que fica demonstrada a preocupação do constituinte em garantir a proteção desse bem jurídico social.
Segundo o inciso III, do artigo 23 da carta política brasileira, é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos.
Ter competência comum disposta no artigo 23, significa que todos os entes políticos são competentes e responsáveis pela proteção dos bens de interesse cultural. Suas ações administrativas e suas políticas de governo deverão passar, necessariamente, pela implementação de atos de preservação e valorização culturais.
2. O que é patrimônio Cultural?
O constituinte brasileiro estabeleceu no artigo 216 da Carta Fundamental do Brasil que o "patrimônio cultural é formado por bens de natureza material e imaterial, tomadas individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artistico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico;".
Em consonância com a política mundial, a Constituição reconhece que o patrimônio cultural do povo brasileiro é ingrediente de sua identidade e da diversidade cultural. Podendo também tornar-se um importante fator de desenvolvimento sustentado, de promoção do bem-estar social, de participação e de cidadania.
É mesmo um conjunto de elementos que compõe o que se entende por patrimônio. O patrimônio cultural tem como sujeito de interesses toda a sociedade que reflete sua relevância e é uma categoria que abrange bens de naturezas diversas, que podem se classificar como bens materiais ou imateriais, móveis ou imóveis, públicos ou privados.
A proteção que pretende o constituinte estabelecer abrange o fenômeno cultural que possui três dimensões fundamentais. A criação, a difusão e a conservação. A criação da cultura é feita em diversos níveis e manifesta-se em diversas formas (música, pintura, esculturas, trabalhos literários, fotografias, manifestações populares, dança, etc). Cabe ao Estado favorecer a realização dessas manifestações através de incentivos diretos e indiretos. A difusão corresponde ao acesso dessa produção cultural no meio social. É de importância crucial a informação e a educação da sociedade. E a conservação, que repercute na proteção dos bens e na sua manutenção para evitar destruição e avariações.
As três dimensões fundamentais do fenômeno cultural (criação, difusão e conservação) estão contempladas no texto constitucional, que as coloca sob a responsabilidade do poder público, em colaboração com a sociedade.
Assim, cabe ao Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, formular e operacionalizar a política que assegure os direitos culturais do cidadão, criar instrumentos e mecanismos que possibilitem o apoio à criação cultural e artística, o acesso aos bens culturais e a distribuição destes, bem como a proteção, a preservação e a difusão do patrimônio cultural brasileiro.
Deverá, dessa forma, o Estado brasileiro, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o património cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação.
Além do Estado, todos os cidadãos devem promover a proteção do património cultural das cidades, provocando os institutos próprios de preservação, ligados à Prefeitura Municipal, ao Estado, ou, ainda, à União (IPHAN [1]). A sociedade pode, ainda, organizar-se em associações ou fundações com tais finalidades.
Está também à disposição de toda a sociedade a Ação Popular e a Ação Civil Pública [2], meios para evitar a destruição ou má conservação dos bens que integram o Patrimônio Cultural, entendido como interesse difuso de todos.
3. O papel dos Municípios e dos Planos Urbanísticos
Já vimos que todos os níveis de Estado têm competência comum para efetuar os meios necessários para impedir a degradação e destruição dos bens culturais. Chamamos à atenção dentre os meios de preservação cultural, o papel do Município na realização dessa tarefa.
É comum verificarmos nas estruturas administrativas dos municípios, Secretarias de Cultura que atuam na promoção e na preservação de manifestações culturais. Entretanto, ainda há tímida relação entre as ações das Secretarias de Cultura e das Secretarias de Desenvolvimento Urbano.
Tais organismos administrativos estruturam-se em razão das competências municipais traçadas na Constituição Federal:
"Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
...
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX – promover a proteção do patrimônio histórico – cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual." (destacamos)
A elaboração do planejamento urbanístico por excelência e das normas que efetivamente interferem na transformação da organização urbana é missão remetida à entidade que representa a comunidade local, cujo interesse na questão é direto e imediato.
Trata-se, pois, de definir o espaço em que habita determinada comunidade, havendo, portanto, de predominar seus interesses, ainda que submetidos aos contornos fixados pela legislação federal e estadual.
Compete ao Município, assim, complementar o rol de objetivos da política de desenvolvimento urbano, especificando, detidamente, as limitações e as determinações a serem observadas no trato da propriedade urbana ou rural sob sua guarda.
Cabe ao Município a difícil e fundamental tarefa de avaliar a cidade como um todo, verificando em seu território a melhor solução para os problemas gerados pela urbanização descontrolada, bem como prevenir situações de risco social, organizando áreas e estimulando a regularização fundiária.
A competência Municipal em matéria de direito urbanístico não se restringe, ainda, à organização definida no art. 30 da Constituição Federal. Sua atuação é ampliada por força do art. 182 da Carta Fundamental que trata da Política Urbana e confere conteúdo ao princípio da função social da propriedade, uma vez que é o plano diretor, lei municipal, que estabelece os requisitos e condições para o cumprimento daquele princípio constitucional:
"Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
d 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
d 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor."
A avaliação e regulamentação das questões urbanas pelo ente municipal se dará, necessariamente, sob a ótica social que a Constituição Federal estabelece em seu inciso XXIII, do art. 5º combinado com o art. 182.
Deverá, portanto, o Município, atuar na fiscalização e implementação dos princípios constitucionais por meio dos instrumentos definidos pelo Estatuto da Cidade, norma federal de caráter geral que confere ao ente local meios para efetivar a conformidade da propriedade pública e privada à função social.
É, outrossim, o município que definirá os passos concretos que o desenvolvimento urbano dará, uma vez que cabe privativamente a este ente o tratamento legal de assuntos de interesse local em matéria de "política de desenvolvimento urbano, colocando-se como instrumento básico dessa política o plano diretor urbano aprovado pela Câmara Municipal e obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes." [3]
Em matéria de Direito Urbanístico, portanto, o Município é ente de competência destacada lhe sendo conferido o dever e o direito de interferir na disciplina da propriedade local, dando a esta conteúdo social.
Nesse aspecto, destacamos que a Lei Federal nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, dispõe que política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, observando o dever de proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico. (inciso XII, art.2º)
É de se saber que uma das funções do governo local é a de implementar a política urbana através do Plano Diretor e de planos especiais de valorização e preservação de bens de interesse cultural e natural.
Um dos objetivos prementes do Plano Diretor Municipal é a conjugação do planejamento do território urbano com a proteção do patrimônio cultural, especialmente aquele de natureza imóvel.
Devemos saber, ainda, que a elaboração do Plano Diretor necessariamente deverá ser acompanhada e sujeita à participação efetiva dos cidadãos da cidade, a fim de garantir a gestão democrática do espaço urbano.
É necessário promover audências, debates, consultas públicas, conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal ( inciso III, art.43 do Estatuto da Cidade). Estabelecer, enfim, junto da comunidade local, reflexões sobre como queremos viver a cidade de nossos dias sem perder nossa identidade.
A democrática participação popular, devidamente informada e esclarecida, é imprescindível para garantir um ordenamento urbano que reflita a preocupação cultural, a partir de onde se concretizará uma cidade como queremos.
Resta observar, desta feita, se está ocorrendo em nossas cidades oportunidades de abordarmos as questões envolvendo a proteção dos bens culturais, ou se as ações locais ainda restam insuficientes para tratarmos a valorização de nossa identidade cultural.
Devemos, ainda, refletir, sobre a repercussão benéfica da preservação de imóveis de valor arquitetônico, e mudarmos nossas visões acerca das responsabilidades que um tombamento ou qualquer outra medida administrativa restritiva dos direitos de propriedade privada, vêem a representar.
De certo, cidades cuja preservação do patrimônio imobiliário cultural é efetiva, tornam-se mais atraentes a investimentos e ao turismo, o que evidentemente é de interesse de todos e confere auto - sustentabilidade aos bens que o integram.
Mais do que previsões legislativas a proteção do patrimônio cultural depende de medidas políticas e é por isso que ao poder executivo cabe grande responsabilidade e à sociedade cabe ser atenta às medidas tomadas.
4. Conclusões
Não se poderá admitir que, na ocasião da elaboração dos planos diretores municipais, se omita a necessidade de avaliar e de repensar a função cultural desse instrumento elementar de implantação da política urbana. Trata-se mesmo de direito subjetivo de todos e de direito fundamental a ser respeitado pelo Estado Brasileiro.
As ações públicas municipais devem estar atentas a necessidade de educar a sociedade e promover a valorização e preservação do patrimônio imobiliário cultural existente, que transmitirá às gerações futuras o sentido dos valores e da identidade atuais.
Embora tenhamos várias alternativas e um regime de preservação cultural que remonta às Constituições Federal e dos Estados, assistimos incrédulos à degeneração de nossa história, presenciamos a omissão dos entes políticos e, ainda, à passividade insólita de nós mesmos, diante de tímidas e insuficientes tentativas de mantermos vivas algumas construções e monumentos de relevância cultural.
Ter uma cidade preservada, através de iniciativas públicas e privadas, demonstra consciência cultural, dando oportunidade de transmitir às gerações futuras o que somos hoje, dando-lhes referências históricas e fortalecendo os laços em comum. Omitirmo-nos diante dessas necessárias medidas fará com que nos esqueçamos de quem nós somos. Quanto tempo mais esperar?
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Notas
1 Actualmente, o Brasil possui o IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em Janeiro de 1937 no Brasil, criado para promover actividades ligadas à proteção do Património Cultural.
2 No Brasil, destacamos a Ação Popular Lei nº 4.717/65, meio adequado para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio, entendido como o conjunto de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. E a Ação Civil Pública, Lei nº 7.347/85, que dispõe a legítimidade do Ministério Público, União, Estados e Municípios, bem como autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou associação, desde que atendam aos requisitos do incisos I e II do art. 5º, da referida Lei, para promover reparações por danos morais e patrimoniais causados: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III – à ordem urbanística; IV – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; V - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. A autorização legislativa não foi ignorada pelo legislador constituinte de 1988 que recepcionou a Lei e estabeleceu no artigo 5º, inciso LXXIII preceito equivalente em que preconiza: "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao património público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao património histórico e cultural...".
3 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1991, pág.127.