Responsabilidade pré-contratual no Direito do Trabalho

14/11/2016 às 02:52
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Considerações sobre as etapas de contratação de empregados.

As relações de trabalho possuem uma infinidade de nuances, para as quais nem sempre empregadores e empregados estão atentos. Estas particularidades despontam no preâmbulo deste vínculo, que contrariando a crença popular, não tem início na contratação.

Os contornos da relação de trabalho são desenhados nos processos seletivos, onde empregados se candidatam aos postos de trabalho oferecidos pelos empregadores. Este é um momento delicado, pois ainda que não exista vínculo de emprego, alguns deveres pré-contratuais precisam ser observados reciprocamente. Falhar em cumprir estas obrigações pode gerar prejuízos para todos os envolvidos.

Frisemos que não se fala em violação de obrigação contratual; a relação de emprego não se estabeleceu. Mas o processo seletivo se rege por principiologia específica de conduta, da qual a lealdade e a boa-fé são pilares indispensáveis. É da violação desse dever de conduta, na fase que antecede a relação jurídica contratual propriamente dita, que surge a responsabilização.

Dentro do processo seletivo, existem duas etapas, com distinções e efeitos jurídicos delineados, com os quais se deve observar a máxima cautela na comunicação. Esta classificação tem raiz no direito contratual, e foi adaptada ao direito do trabalho por analogia.

A primeira fase é a seleção, e compreende o processo propriamente dito. Pode ser equiparada à proposta no momento pré-contratual. Nesta etapa, o empregador anuncia a vaga de trabalho e avalia as aptidões dos empregados potenciais, os candidatos àquele posto, usando as ferramentas costumeiras de mercado.

Não há compromisso de admissão, mas alguns requisitos na elaboração do processo seletivo devem ser observados, especificamente no que tange as ferramentas de oferta da vaga e avaliação de compatibilidade do candidato, bem como critérios utilizados para estas tarefas.

É comum o anúncio de vagas de emprego direcionadas. Com o advento das redes sociais e a popularização de aplicações específicas para aberturas de processos seletivos, como o site Vagas, o escopo de discricionariedade do poder diretivo dos empregadores aumentou sensivelmente.

Muitos anúncios em circulação parecem inofensivos, mas podem trazer problemas aos empregadores. Eles são excludentes; com as especificações dadas, o empregado potencial fica impedido de tentar a vaga de emprego em razão de características inerentes à sua pessoa, que não se relacionam com a função ou com sua competência para desempenhá-la.

Estes são critérios injustos. O empregado não pode ter acesso àquela vaga, mesmo possuindo os requisitos técnicos. Em espectros socialmente aceitos de anúncio discriminatório, o candidato obtém vantagem por possuir dada característica pessoal desejada pelo empregador, ainda que não possua requisitos técnicos.

A contratação com base em dadas características pessoais dos empregados potenciais existe, quando se trata de ação afirmativa - ou seja, o empregador reconhece a existência de um quadro laboral excludente (ou seja, formado majoritariamente por dado grupo social, racial e/ou de gênero/idade), e intervém no quadro laboral para torná-lo mais inclusivo.

A permissão para abertura de processo seletivo observando características pessoais dos empregados potenciais deve ser expressa no texto de lei. Por isso não se pode perfilar vagas em critério político, religioso e outros. E por isso não se pode perfilar vagas tendo como critério característica pessoal que seja coletivamente excludente (não faça vagas para homens, ou homens brancos, por exemplo).

De outra forma, a diferenciação de critérios de admissão é conduta vedada pela Constituição Federal e revela os chamados anúncios discriminatórios, que limitam a participação de empregados potenciais em razão de sua etnia, gênero, credo, estado civil, idade, sexualidade, origem e outros elementos protegidos pela Carta Magna. O empregador tem o direito de escolher o funcionário que melhor lhe aprouver, desde que seleção e recrutamento não usem critérios pessoais nos processos seletivos.

Para evitar problemas nesta etapa da proposta, o anúncio de vaga deve observar critérios técnicos e pertinentes à função. O linguajar deve ser preciso, evitando tratar idade, gênero, preferências políticas, religião, sexualidade e outros elementos componentes da intimidade do candidato, como formação familiar, religiosa, convicções políticas e outros. 

Com as respostas ao informe de vaga, o empregador seleciona os candidatos mais compatíveis com a vaga apregoada e aplica as ferramentas de mercado disponíveis para avaliação desta compatibilidade. Os critérios de admissão devem manter a objetividade, com elaboração cuidadosa e aplicação igualitária.

Um processo seletivo com regras escritas e informadas aos participantes, esclarecendo todas as etapas trilhadas, pode sanar muitos imbróglios. Um fluxograma claro das atividades componentes do processo seletivo evita interpretação errônea, e garante que os candidatos tenham um tratamento uniforme, e que compreendam o processo desse modo nas chamadas dinâmicas de grupo.

Nesta fase da proposta, o item que apresenta mais problemas em processos seletivos é a entrevista, onde empregador e empregado interagem de forma mais intimista e avaliam compatibilidade na sinergia para o trabalho.

No afã de extrair todas as informações possíveis sobre o empregado potencial, o empregador se propõe a investigar, ou mesmo inquirir, aspectos não relacionados a aptidão do candidato para a função. Embora a preocupação seja legítima, no sentido de avaliar disponibilidade, comprometimento e outros aspectos do candidato para integrar o corpo de trabalho, os métodos utilizados podem violar a intimidade do empregado potencial.

Pedidos como a apresentação de antecedentes criminais, certidões de distribuição de processos cíveis e trabalhistas, verificação de inscrição em SCPC, SERASA e cadastros similares, prontuários médicos, número de filhos, quadro gestacional, declarações de renda e boletins escolares ou universitários são considerados métodos de seleção abusivos. E em entrevistas, questões sobre a vida familiar do candidato possuem a mesma conotação, com alta carga antiética[1].

[...] quaisquer que sejam os métodos adotados, deve-se verificar sua aceitação ética e limitar a avaliação da aptidão profissional do candidato para a execução das funções. Informações sobre a esfera da vida privada do empregado só se permitem excepcionalmente, quando apresentam relevância para a execução das funções que serão executadas, em nome da liberdade de contratação conferida ao empregador.

Estas informações podem levar à prática de discriminação direta ou indireta, condutas prescritas pela Organização Internacional do Trabalho, inviabilizando a igualdade de oportunidades e tratamento do empregado.

As questões formuladas para entrevista devem ser pertinentes à aptidão funcional do candidato. Solicitar a apresentação de diplomas, carteiras funcionais – no caso dos advogados, é uma constante – e experiências profissionais anteriores é válido, pois se relaciona à capacidade para ocupar a função.

E por que solicitar o diploma é válido, mas o boletim, não? O diploma comprova a qualificação técnica do candidato para a função. Seu boletim é documento que dá conta de seu esforço pessoal para adquirir dada qualificação. As notas e faltas do empregado potencial pertencem à sua intimidade, bem como sua declaração de renda, seus prontuários médicos e certidões processuais.

Em raras exceções, o empregador poderá inquirir dados aspectos pessoais, pois haverá relação direta destes com a função desempenhada. Caso a candidata a uma vaga em indústria química esteja gestante, a preocupação do empregador deve estar na saúde daquela empregada potencial, em meio a produtos químicos durante a gestação.

Ainda assim, as questões e solicitações devem ser formuladas com o máximo cuidado, pois o limiar entre o legítimo interesse e a violação de intimidade é tênue. Nestes casos, ainda que exista a possibilidade de questionar, o ideal é encaminhar o candidato para exame médico, ou solicitar atestado médico próprio, deixando claro o propósito do documento em todas as circunstâncias.

Como regra geral, perguntas sobre opiniões políticas, sexualidade, antecedentes criminais, crença religiosa, filiação sindical, crenças filosóficas, origem étnica, situação familiar, gravidez, uso de substâncias químicas e dados médicos devem ser evitadas a todo custo.

O empregador tem a prerrogativa constitucional de livre iniciativa, cabendo a ele direcionar seus negócios livremente, porque as benesses e prejuízos são riscos inerentes à sua atividade; mas não pode ter sua prerrogativa constitucional violando as prerrogativas do empregado, mesmo que potencial, momento em que sua conduta se torna ilegal. Por isso, o processo seletivo deve ser o mais uniforme e impessoal possível.

A segunda etapa pré-contratual é chamada de punctuação, e compreende as negociações preliminares para o início da relação de trabalho. Esta é uma fase espinhosa, pois qualquer deslize comunicativo faz surgir a obrigação de contratar – ou de indenizar aquele que tem a contratação, já quase certa, frustrada.

Na punctuação são definidas as condições do contrato de trabalho; empregados e empregadores especulam e barganham jornada, salário, transporte e outros itens do liame empregatício. A diferença de força entre empregador, detentor do poder econômico, e empregado, carente de meios para subsistência, tem mais intensidade.

A comunicação, neste momento, é vital; empregador e empregado deverão pautar cada palavra utilizada pela premissa de que as negociações não garantem a contratação. Se das tratativas, é possível antever a celebração de um contrato de trabalho, não se pode desistir de contratar sem justo motivo[2].

As tratativas de punctuação revelam o ânimo e o propósito de contratar. Por isso, criam expectativa natural nas partes contraentes; nas negociações, há legítima viabilidade de conclusão do negócio, e consequente início da relação de emprego.

Tal perspectiva pode levar as partes a conduzirem suas vidas dando o negócio como certo. Na maioria dos casos, verifica-se que o empregado potencial tem tanta confiança na contratação que abre mão de outros processos seletivos, pede demissão de emprego anterior, realiza despesas para adquirir material compatível com o novo ambiente de trabalho, e outras medidas.

Cumpre observar que o empregador não deve ser responsabilizado pelas expectativas do empregado potencial, se a elas não deu causa. Infelizmente, grande parte dos problemas encontrados na punctuação derivam de medidas tomadas pelos empregadores, que dão como certa a contratação, e demonstram que o empregador deu causa ao imbróglio.

Às vezes, o empregado potencial recebe resposta do empregador potencial, que dá sua contratação como “quase certa”; o empregado potencial se apoia nessa afirmativa, cessa a busca por outras posições, prepara sua agenda de compromissos para acomodar o novo emprego, e não é chamado para iniciar os trabalhos.

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Há casos em que o empregador potencial solicita “documentos indispensáveis para a admissão” ao candidato, ou requer que se apresente para inspeção portando determinados materiais utilizados pela empresa.

Em outros casos, o empregado potencial é chamado a entregar sua CTPS para assinatura, e até recebe uniforme da empresa. Na data de início, lhe é comunicado que a contratação não ocorrerá.

Houve uma promessa efetiva de contratação. As negociações preliminares excederam a fase de seleção e de punctuação, chegando a gerar obrigações recíprocas e viabilizando um contrato de trabalho delineado entre os contraentes.

Em função disso, o empregado potencial fez investimentos consideráveis, em razão daquilo que se apresentava certeiro. Esta expectativa não pode ser frustrada pela conveniência de um dos contratantes; o abandono injustificado das negociações é comportamento incompatível com os deveres de lealdade e boa-fé que permeiam a formação do contrato de trabalho.

Se é lícito ao empregador contratar ou deixar de contratar quem entender necessário, também é certo de que não pode causar danos ao empregado potencial no exercício deste direito. A frustração da expectativa de emprego é uma ilicitude na formação contratual.

E assim, se verifica a responsabilidade do empregador pela expectativa de contratação frustrada. O cancelamento unilateral da contratação provável, sem uma justificativa razoável, configura conduta lesiva passível de responsabilização. A liberdade de contratação se transforma em abuso do poder diretivo patronal, atraindo o dever de indenizar o empregado potencial.

Embora as negociações preliminares não gerem, por si mesmas, obrigações para qualquer dos participantes, elas fazem surgir, entretanto, deveres jurídicos para os contraentes, decorrentes da incidência do princípio da boa-fé, sendo os principais os deveres de lealdade e correção, de informação, de proteção e cuidado e de sigilo. A violação desses deveres durante o transcurso das negociações é que gera a responsabilidade do contraente, tenha sido ou não celebrado o contrato. Essa responsabilidade ocorre, pois, não no campo da culpa contratual, mas da aquiliana, somente no caso de um deles induzir no outro a crença de que o contrato será celebrado, levando-o a despesas ou a não contratar com terceiro etc. e depois recuar, causando-lhe dano. Essa responsabilidade tem, porém, caráter excepcional.

Por dirimir uma série de problemas que atingem as prerrogativas constitucionais dos indivíduos, o instituto da responsabilidade civil é largamente utilizado no direito do trabalho, com arcabouço na aplicação subsidiária das normas civis às relações trabalhistas.

A responsabilidade civil é instituto jurídico que compele o causador de danos a arcar com as consequências da ação violadora, ressarcindo prejuízo decorrente de fato ilícito próprio, ou relacionado. Obrigação e responsabilidade são institutos diversos: um é dever jurídico originário, e o outro, dever jurídico sucessivo, consequência da violação do primeiro.

Na formação dos contratos de trabalho, os deveres de conduta são obrigações pétreas. As partes devem se comportar com lealdade e boa-fé recíprocas; e a frustração de uma contratação encaminhada, ou o comportamento discriminatório e invasivo no processo seletivo, são violações deste dever de conduta.

Caso o empregador utilize qualquer uma das práticas discutidas acima, ou métodos similares, durante os procedimentos de seleção e punctuação, ele viola estes deveres de conduta, e comete um ato ilícito.

O instituto da responsabilidade civil observa a presença de três elementos: o ato ilícito, o nexo causal e o dano, que compreende abalo aos direitos da personalidade e às garantias fundamentais. É um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, idealizado por Kant, e que originou as esferas jurídicas dedicadas aos campos extrapatrimoniais dos indivíduos.

A frustração de expectativa de contratação, quando demonstrada, traz dano ao empregado potencial, atingindo justamente as garantias fundamentais contidas no princípio da dignidade da pessoa humana. O dano tem natureza in re ipsa; é presumido, pois decorre do ato em si.

Por isso, é necessária cautela redobrada nos procedimentos de contratação de novos funcionários. As falhas aqui descritas, e suas consequências, podem ser evitadas com cuidados simples.

Não é necessário suspender todos os processos seletivos em andamento, e temer uma enxurrada de reclamações trabalhistas por procedimentos já realizados. A mera participação em processo seletivo não garante nada a ninguém; mas os empregadores devem ficar atentos à condução destes procedimentos, para que deslizes não garantam seus prejuízos.

 


[1] DUARTE, Juliana Bracks; KLÔH, Talita Cecília Souza. O perigo da seleção de pessoal que envolve a verificação de SPC, SERASA, FAC etc. dos candidatos. Biblioteca Informa: Pinheiro Neto Advogados, Rio de Janeiro, v. 1913, jun. 2006. Disponível em: <http://www.calvo.pro.br/media/file/colaboradores/juliana_bracks_duarte/selecao_spc_pinheironeto.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2016.

[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 3 vol. 9 ed. Saraiva, São Paulo, 2012, p. 73.

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Sobre a autora
Raphaella Reis

Advogada atuante nas relações de Trabalho. Especialização em Compliance Regulatório pela Penn State University. Integrante de Geledés Instituto da Mulher Negra. Integrante da Rede Feminista de Juristas – deFEMde. Integrante do Instituto da Advocacia Negra Brasileira - IANB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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