Capa da publicação Restrição das transmissões do STF na TV Justiça: um projeto grosseiramente inconstitucional
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Um projeto grosseiramente inconstitucional

02/10/2017 às 15:35
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Aprovado por unanimidade na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, um projeto de lei veda a veiculação das sessões cíveis ou criminais dos tribunais. Só ficariam liberadas as de sessões sobre questões constitucionais.

 Em meio a uma agenda legislativa apontada como retaliação do Congresso a investigações de corrupção, avança na Câmara um projeto de lei que proíbe a transmissão, pela TV Justiça, dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e demais Cortes superiores de ações penais e cíveis. Aprovado por unanimidade na semana passada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, o texto veda a veiculação das sessões ao vivo ou gravadas, na íntegra ou editadas. Na prática, só ficariam liberadas as transmissões de sessões sobre questões constitucionais.

O ministro Marco Aurélio Mello, que inaugurou a TV Justiça em 2002, quando era presidente do STF, ficou indignado com o projeto:

— É inimaginável essa proibição, considerado o julgamento de ações penais que são propostas contra parlamentares. Essa forma de legislar em causa própria é excomungável. A TV Justiça é um controle externo do STF — declarou Marco Aurélio.

Outros que ainda serão enfrentados no STF, como ações relacionadas à Lava-Jato, envolvendo políticos com foro privilegiado, também ficarão proibidos. Depois de aprovado, o projeto de lei foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, de onde seguirá, caso não seja rejeitado, direto para o Senado, por ter caráter terminativo, ou seja, sem necessidade da apreciação do plenário da Câmara.

Há de ser excepcional a informação sigilosa, que é dada como imprescindível à segurança da sociedade não para proteção desse ou daquele agente público (artigo 5º, XXXIII, Constituição Federal).

A Constituição de 1988, artigo 93, IX, estabeleceu, como garantia das partes que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados casos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

Consagra a Constituição, pois: a) que todos os julgamentos serão públicos, podendo a lei, se o interesse público o exigir(norma de eficácia contida), limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes; b) que todas as decisões serão fundamentadas.

Não mais são permitidas, com a Constituição de 1988, sessões secretas, como bem ensinou o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso (Processo do Trabalho – Estudos em memória de Coqueijo Costa, pág. 32), de que participavam os juízes integrantes do colegiado, sem que fosse dada a menor publicidade.

Publicidade sempre. Isso é o que exige a Democracia, forma de convivência, em nome do que lhe é mais precioso: a transparência.

Por isso, em razão do interesse público e da necessidade de se garantir a ordem na realização dos atos processuais, bem como em face de outros valores constitucionalmente previstos, dentre eles, o direito à intimidade, admite-se restrições ao princípio da publicidade, razão pela qual os processos judiciais ligados ao direito de família e à infância e juventude devem tramitar em segredo de justiça.

Em Portugal  existe um meticuloso disciplinamento das restrições à publicidade, regra esta positivada no art. 86º do CPP, que afirma ser público o processo penal, “a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida, vigorando até qualquer desses momentos o segredo de justiça”, sendo bem semelhantes os fatores que levam à restrição da publicidade.

No tocante, especificamente, às restrições endereçadas aos meios de comunicação, o código lusitano desautoriza a reprodução de peças processuais e de documentos relativos a processos pendentes, a transmissão de imagens e de som referentes a ato processual (salvo autorização judicial) e a publicação da identidade de vítimas de crimes sexuais, contra a honra ou a intimidade, antes da audiência, ou mesmo depois, se o ofendido for menor de dezesseis anos (art. 88).

A Constituição Federal, em seu art. 93, inciso IX, estabelece que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

No Bill of Rights de nossa Carta Magna (art. 5º), prevê o inciso LX que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Caberia, então, à lei infraconstitucional definir as hipóteses em que, já pelo “interesse público”, já pelo “interesse social”, ou, ainda, pela necessidade de preservar a “intimidade” de alguém, a publicidade pudesse ser restringida.

No âmbito do Código de Processo Civil, o tema é tratado nos artigos 155 e 444, que apenas vedam a publicidade total (externa) quando “o exigir o interesse público” (art. 155,inc. I) ou em causas relativas a “casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores” (art. 155, II), hipóteses em que a intimidade determina o segredo de justiça.

Noticia Rogerio Schietti Machado Cruz (Publicidade e Sigilo no Processo Penal Moderno) preocupação no direito dos Estados Unidos, regido, basicamente, pelo sistema de precedentes judiciais (stare decisis), que produz uma flexibilidade jurisprudencial atualizadora das normas constitucionais, formalmente rígidas.

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Na análise dos casos submetidos ao longo da história da Suprema Corte dos EUA, percebe-se um claro debate entre, de um lado, a liberdade de imprensa (free press) e, de outro, a necessidade de assegurar ao cidadão um julgamento justo, imparcial (fair trial).

Mais do que em qualquer outro país do mundo, tenha-se presente, no estudo do tema, a quase absoluta liberdade de imprensa, decorrência direta da Emenda 1 à Constituição dos Estados Unidos da América de 1787. Para que se tenha uma ideia do que representa the freedom of the press nos EUA, é simbólica a afirmação de um dos fundadores da Federação, THOMAS JEFFERSON: “were it left for me to decide whether we should have a government without newspapers, or newspapers without government, I should not hesitate a moment to choose the latter”.

Há, porém, limites à aparente publicidade total da justiça criminal norte-americana, sendo interessante a menção de dois casos célebres (intentados, perante a Suprema Corte dos EUA, por Billie Sol Estes e Samuel Sheppard) julgados em meados da década de 60, nos quais assentou-se o entendimento de que é necessário um equilíbrio entre a liberdade da imprensa e o direito do público em ser informado, de um lado, e a responsabilidade da imprensa e os direitos do acusado, de outro lado. A partir desses precedentes, houve iniciativas por parte de juristas e associações de classe, com o propósito de estabelecer regras a serem observadas na relação justiça-imprensa, tendentes a desestimular todo tipo de publicidade excessiva que pudesse influenciar o júri e conduzir a um julgamento injusto.

No que toca  à fase judicial da persecução penal, mas ainda tendo como referência o próprio Código de Processo Penal, a regra da publicidade vem excepcionada no art. 792, cujo § 1º estabelece que “Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes”.

Percebe-se, assim, que a restrição à publicidade terá como causa, basicamente, a proteção do interesse público na correta realização do ato processual, deixando para segundo plano a preservação da intimidade das pessoas, que virá a ser objeto de proteção legal através de normas extravagantes, como se mencionará adiante.

Já tivemos, no passado, o que foi denominado  “a lei da caixa-preta”. No  art. 3º da Lei 9.034/95, ao  pretexto de minorar a violação do sigilo de dados pertencentes a pessoas envolvidas em ações praticadas por organizações criminosas, cercou de inusitado cuidado a prova colhida, inquisitorialmente, pessoalmente pelo magistrado. Para tanto, o legislador determinou “o mais rigoroso segredo de justiça” (caput), conservando o auto da diligência “fora dos autos do processo”, ao qual somente as partes, na presença do juiz, poderão ter acesso (§ 3º), prevendo-se, ainda, que o auto seja “fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão”, a fim de que a discussão e o julgamento do recurso sejam mantidos “em absoluto segredo de justiça” (§ 5º).

Espera-se que reconhecida necessidade de serem assegurados os direitos individuais dos cidadãos quando afetados pela atividade de investigação e de persecução penal do Estado, não se calem as vozes das instituições que, no cumprimento de suas atribuições constitucionais, têm sido responsáveis por conquistas tão caras a uma sociedade ainda em construção.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um projeto grosseiramente inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5206, 2 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53805. Acesso em: 23 abr. 2024.

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