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A dúvida razoável e o princípio do in dubio pro reo

15/11/2016 às 22:16
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O princípio do in dubio pro reo prevê benefício da dúvida em favor do réu. A presunção de inocência é corolário dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

O princípio do in dubio pro reo é um princípio fundamental em direito penal que prevê o benefício da dúvida em favor do réu, isto é, em caso de dúvida razoável quanto à culpabilidade do acusado, nasce em favor deste, a presunção de inocência, uma vez que a culpa penal deve restar plenamente comprovada.

Entende-se como dúvida razoável o fator incerto quanto a culpa do acusado. É, em apertada síntese, a falta de condições plenas de imputar ao acusado a ampla responsabilidade pelo cometimento do delito. O fator incerto, aquele que gera determinada dúvida quanto à existência do ato infracional, bate de frente com o princípio da presunção de inocência, e por este é plenamente repelido do campo da capacidade de imputação de responsabilidade penal ao acusado.

Em direito penal a presunção de culpa é afastada pelo princípio constitucional da presunção de inocência, encravado do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal como corolário dos fundamentos vitalícios do Estado Democrático de Direito.

“Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

(...)

LVII- ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”;

Note-se que este princípio tem eficácia e aplicabilidade material de modo imediato.

E, por simples dedução, o texto constitucional não permite a imputação de culpa ao acusado pelo simples fato de contra ele ter sido ofertado uma denúncia, isto é, uma imputação de culpabilidade que, necessariamente, está sujeita ao crivo do contraditório de ampla defesa.

Há de ser notado que o texto constitucional reza, ainda no artigo 5º, LV, que a todos os litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados os princípios antes mencionados. Vejamos:

Art. 5º - (...)

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

O contraditório também está previsto no Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8º, quando trata das garantias Judiciais. Eis:

Art. 8º Garantias Judiciais

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Assim, eis que a dúvida razoável, quando preexistente, ou, quando criada pela defesa, já nasce contendo em seu bojo, o benefício da dúvida em favor do réu.


A título de exemplificação, trago a decisão do STF, quando do julgamento da AP 858/DF, proferida pelo Eminente Ministro Gilmar Mendes:

VOTO DO MINISTRO CELSO DE MELLO:

A absoluta insuficiência da prova penal existente nos autos não pode legitimar a formulação de um juízo de certeza quanto à culpabilidade do réu.

O estado de dúvida que emerge deste processo penal de conhecimento, tão bem destacado da tribuna desta Corte pelo eminente Professor ALEXANDRE DE MORAES, desautoriza, por completo, qualquer decreto condenatório, não sendo acolhível, por isso mesmo, a proposta do eminente Chefe do Ministério Público da União no sentido de que a existência de um “altíssimo grau de probabilidade” bastaria para justificar a condenação criminal do ora acusado.

Na realidade, em nosso sistema jurídico, como ninguém o desconhece, a situação de dúvida razoável só pode beneficiar o réu, jamais prejudicá-lo, pois esse é um princípio básico que deve sempre prevalecer nos modelos constitucionais que consagram o Estado democrático de Direito.

O exame dos elementos constantes destes autos evidencia que o Ministério Público deixou de produzir prova penal lícita que corroborasse o conteúdo da imputação penal deduzida contra o réu, não sendo capaz de cumprir, por isso mesmo, a norma inscrita no art. 156, “caput”, do CPP, que atribui ao órgão estatal da acusação penal o encargo de provar, para além de qualquer dúvida razoável, a autoria e a materialidade do fato delituoso.

Como sabemos, nenhuma acusação penal se presume provada. Esta afirmação, que decorre do consenso doutrinário e jurisprudencial em torno do tema, apenas acentua a inteira sujeição do Ministério Público ao ônus material de provar a imputação penal consubstanciada na denúncia.

Com a superveniência da Constituição de 1988, proclamou-se, explicitamente (art. 5º, LVII), um princípio que sempre existira, de modo imanente, em nosso ordenamento positivo: o princípio da não culpabilidade (ou do estado de inocência) das pessoas sujeitas a procedimentos persecutórios (DALMO DE ABREU DALLARI, “O Renascer do Direito”, p. 94/103, 1976, Bushatsky; WEBER MARTINS BATISTA, “Liberdade Provisória”, p. 34, 1981, Forense).

Esse postulado – cujo domínio de incidência mais expressivo é o da disciplina da prova – impede que se atribuam à denúncia penal consequências jurídicas apenas compatíveis com decretos judiciais de condenação definitiva. Esse princípio tutelar da liberdade individual repudia presunções contrárias ao imputado, que não deverá sofrer punições antecipadas nem ser reduzido, em sua pessoal dimensão jurídica, ao “status poenalis” de condenado. De outro lado, faz recair sobre o órgão da acusação, agora de modo muito mais intenso, o ônus substancial da prova, fixando diretriz a ser indeclinavelmente observada pelo magistrado e pelo legislador.

É preciso relembrar, Senhor Presidente, que não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Antes, cabe ao Ministério Público demonstrar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Hoje já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra hedionda que, em dado momento histórico de nosso processo político, criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de ele, acusado, provar a sua própria inocência!!!

Refiro-me ao art. 20, inciso 5, do Decreto-lei nº 88, de 20/12/1937 – editado sob a égide do nefando Estado Novo de VARGAS –, que veiculava, no que se refere aos delitos submetidos a julgamento pelo tristemente célebre Tribunal de Segurança Nacional, e em ponto que guarda inteira pertinência com estas observações, uma fórmula jurídica de despotismo explícito: “Presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário (...)” (grifei).

O fato indiscutivelmente relevante no domínio processual penal, Senhor Presidente, é que, no âmbito de uma formação social organizada sob a égide do regime democrático, não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelem-se capazes de informar e de subsidiar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas cuja ocorrência só pode conduzir a um decreto de absolvição penal.

Não se pode – considerada a presunção constitucional de inocência dos réus – atribuir relevo e eficácia a juízos meramente conjecturais, para, com fundamento neles, apoiar um inadmissível decreto condenatório.

Não custa enfatizar que, no sistema jurídico brasileiro, não existe qualquer possibilidade de o Poder Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer, em sede penal, a culpa de alguém.

É sempre importante advertir, Senhor Presidente, na linha do magistério jurisprudencial e em respeito aos princípios estruturantes do regime democrático, que, “Por exclusão, suspeita ou presunção, ninguém pode ser condenado em nosso sistema jurídico-penal” (RT 165/596, Rel. Des. VICENTE DE AZEVEDO – grifei).

Na realidade, os princípios democráticos que informam o modelo constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita, circunstâncias essas que desautorizam o reconhecimento, pretendido pelo eminente Procurador-Geral da República, de que um “altíssimo grau de probabilidade” revelar-se-ia suficiente – consoante por ele expressamente sustentado e pleiteado – para legitimar a imposição, ao réu, de um decreto judicial de condenação criminal.

Essa pretensão formulada pelo Ministério Público jamais poderá ser acolhida em sistemas, como o vigente em nosso País, que consagram a presunção constitucional de inocência em favor de quem sofre persecução penal estatal, independentemente da gravidade do crime que lhe tenha sido atribuído.

É preciso sempre relembrar que as limitações à atividade persecutório-penal do Estado traduzem garantias constitucionais insuprimíveis que a ordem jurídica confere ao suspeito, ao indiciado e ao acusado, com a finalidade de fazer prevalecer o seu estado de liberdade em razão do direito fundamental – que assiste a qualquer um – de ser presumido inocente.

Cumpre ter presente, bem por isso, neste ponto, em face de sua permanente atualidade, a advertência feita por RUI BARBOSA (“Novos Discursos e Conferências”, p. 75, 1933, Saraiva), no sentido de que “Quanto mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa, para os guardas da ordem social, a obrigação de não aventurar inferências, de não revelar prevenções, de não se extraviar em conjecturas (...)”.

Não podemos desconhecer que o processo penal, representando uma estrutura formal de cooperação, rege-se pelo princípio da contraposição dialética, que, além de não admitir condenações judiciais baseadas em prova alguma, também não legitima nem tolera decretos condenatórios apoiados em elementos de informação unilateralmente produzidos pelos órgãos da acusação penal. A condenação do réu pela prática de qualquer delito – até mesmo pela prática de uma simples contravenção penal – somente se justificará quando existentes, no processo, e sempre colhidos sob a égide do postulado constitucional do contraditório, elementos de convicção que, projetando-se “beyond all reasonable doubt” (além, portanto, de qualquer dúvida razoável), veiculem dados consistentes que possam legitimar a prolação de um decreto condenatório pelo Poder Judiciário.

O entendimento que venho de referir encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. IV/126-127, item n. 765, 3ª ed., 1955, Borsoi; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado” p. 1.004, item n. 386.3, 11ª ed., 2003, Atlas; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 679, item n. 48, 5ª ed., 2006, RT), valendo referir, no ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, vol. I/655, item n. VI, 5ª ed., 1999, Saraiva):

“(...) Para que o Juiz possa proferir um decreto condenatório é preciso haja prova da materialidade delitiva e da autoria. Na dúvida, a absolvição se impõe. Evidente que a prova deve ser séria, ao menos sensata. Mais ainda: prova séria é aquela colhida sob o crivo do contraditório. Na hipótese de, na instrução, não ter sido feita nenhuma prova a respeito da autoria, não pode o Juiz louvar-se no apurado na fase inquisitorial presidida pela Autoridade Policial. Não que o inquérito não apresente valor probatório; este, contudo, somente poderá ser levado em conta se, na instrução, surgir alguma prova, quando, então, é lícito ao Juiz considerar tanto as provas do inquérito quanto aquelas por ele colhidas, mesmo porque, não fosse assim, estaria proferindo um decreto condenatório sem permitir ao réu o direito constitucional do contraditório. (...).” (grifei)

Em suma: a análise dos elementos de informação contidos neste processo leva-me a reconhecer a inexistência de prova penal convincente e necessária que permita, de modo seguro, a formulação de um juízo de certeza quanto à culpabilidade do ora acusado, no que concerne ao teor da imputação penal contra ele deduzida.

Sendo assim, consideradas as razões por mim expostas e tendo em vista, ainda, os votos dos eminentes Ministro Relator e Ministra Revisora, também julgo improcedente a presente ação penal, para, em consequência, absolver o réu, [nome suprimido], da imputação penal contra ele deduzida.

É o meu voto.

AP 858/DF, VOTO DO MINISTRO CELSO DE MELLO, RELATOR: Ministro Gilmar Mendes, acórdão publicado no DJe de 7.11.2014

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Sobre o autor
Geovano Prudencio Flor

Advogado, administrador de empresas, design instrucional, consultor empresarial e professor de cursos EAD. Possui MBA em Planejamento e Gestão Estratégica. Tem formação em Governança Corporativa, Contract Management, Costumer Centricity e Gestão da Qualidade. Possui ainda formação em ITIL, COBIT, ISO 20000 (Gerenciamento de Serviços de TI) e ISO 27001 e 27002 (Sistema de Segurança da Informação), Project Management Professional (PMP), Lógica de Programação e Gestão da Informação e Documentação. Atualmente cursa Matemática na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. É, por natureza, um entusiasta do conhecimento em todas as suas formas. Tem como foco o desenvolvimento de habilidades em Customer Centricity, Pós Vendas e Gestão da Qualidade. Desenvolve e ministra cursos e treinamentos com foco em Gestão Empresarial. Presta consultoria em Atendimento e Fidelização de Clientes; Gestão de Pós Vendas; Customer Centricity e Gestão da Qualidade com foco no ciclo PDCA, conforme normas da ISO 9001, visando a melhoria contínua de processos, produtos e serviços. Escreve sobre Gestão Empresarial, Doutrina Jurídica e Tecnologia da Informação. É integrante do Grupo de Pesquisa em Fundamentos Histórico-Filosófico da Educação com a seguinte Linha de Pesquisa: História e Filosofia de Instituições Educacionais, UFSC/CNPq.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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