A lavratura de termos circunstanciados de ocorrência pela Polícia Militar.

Análise de aspectos jurídicos e pragmáticos

Leia nesta página:

A lavratura de TCO's pelas Polícias Militares trouxe inegável avanço no campo do direito, com a possibilidade de coleta imediata de dados relevantes. Conquanto isolado posicionamento contrário, fato que é um avanço no combate ao crime de menor potencial.

Inicialmente cabe aduzir que o assunto objeto deste artigo não é pacífico, muito embora o posicionamento de aceitação de lavratura de Termos Circunstanciados de Ocorrência - TCO´s pela Polícia Militar seja amplamente majoritário na doutrina, jurisprudência e pelos próprios órgãos da Administração Pública envolvidos na Segurança Pública, sejam nas esferas Estaduais, seja na esfera Federal.

Em resumo e já para iniciar a análise do tema, salvo as Polícias Civis, todos os demais órgãos envolvidos na Segurança Pública (Polícia Militar, Ministério Público e Poder Judiciário) apoiam e estimulam a medida, em razão da legalidade, segurança, eficiência, celeridade e simplicidade que aquela promove no seio social e combate efetivo à criminalidade de menor potencial ofensivo.

Em verdade vou mais além: dentro da estrutura da Polícia Civil não há uma uniformidade de pensamento entre seus integrantes, eis que das três categorias essenciais ao órgão, agentes e escrivães se encontram divididos quanto ao assunto. De concreto, somente a classe dos delegados se opõe formalmente à medida, por meio de suas representações de classe.

As razões sobre tão discutido assunto são muitas, e serão minuciosamente debulhadas nas linhas seguintes.

Isso posto, adentramos no assunto, ressaltando de imediato que o mesmo deve ser analisado sob quatro aspectos: o da legalidade, o da doutrina, o da jurisprudência e o da eficiência.

No que diz respeito à legalidade, ao contrário do que equivocadamente se divulga, a legislação pátria não conferiu à Policia Civil a exclusividade de lavratura de TCO’s, mas sim o da “investigação policial” como polícia judiciária que é.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 144, §4º, que: “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.

Logo, o que resta claro é que a Polícia Civil é o órgão competente para realizar investigações criminais na condição de polícia judiciária (salvo de competência da União, de alçada da Polícia Federal), hipótese totalmente distinta da lavratura de um Termo Circunstanciado de Ocorrência.

Isso porque quando a Polícia Militar lavra um TCO sobre um fato de menor potencial ofensivo em situação de flagrante, ocorrido na presença da mesma, o órgão não está conduzindo investigação policial alguma, mas apenas registrando documentalmente e testemunhalmente um fato ilícito ocorrido na presença de policiais militares quando do desempenho de seu dever.

E isso as Polícias Militares dos Estados o fizeram desde sempre, com os chamados “Boletins de Ocorrência” – BO’s.

Nesse sentido, a Polícia Militar não realiza investigação de qualquer natureza, eis que a mesma não baixa portaria instaurando o TCO, não realiza notificações, não representa para o juiz criminal solicitando medidas assecuratórias cautelares, não requisita perícia em coisas ou pessoas, não realiza diligências de qualquer natureza; enfim, não realiza qualquer atividade investigativa.

Ao revés, limita-se a traduzir para o papel o registro de fatos vivenciados pela guarnição que deles tomou conhecimento no exercício de sua atividade policial (situações de flagrante), resolvendo de forma simples e eficiente toda a burocracia engessante do acesso do cidadão à justiça por meio de um registro documental de fatos conhecidos de público, eis que flagrante o ilícito de menor potencial ofensivo.

Sobre o tema, excelente artigo do Procurador da República Vladimir Aras, constitucionalista e penalista de escol, o qual leciona:

“Não há qualquer inconstitucionalidade na lavratura de TCO’s pela PM ou pela PRF, pois a Constituição não assegura exclusividade para o registro da ocorrência de crimes. Quando lavram os termos (TCO), policiais militares e patrulheiros rodoviários não estão investigando crimes, mas apenas registrando fatos, em exercício de atividade administrativa que lhes é própria. Registrar um não é o mesmo que investigar crimes”.

De forma que, ainda que tome conhecimento de eventual hipótese de delito de menor potencial ofensivo o qual não esteja em situação de flagrante, a Polícia Militar fica vedada de apurar os fatos, devendo encaminhar o(a) interessado(a) à autoridade policial competente para apuração dos mesmos em sede de TCO instaurado especificamente para esse fim.

Logo, explícito que a Polícia Militar somente atua em hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo em situação flagrancial, na qual possa constatar e documentar objetivamente as mesmas.

Também cumpre salientar que a especificidade do Direito Ambiental e seus corolários jurídicos, como os crimes ambientais, exigem apuração imediata por se tratarem de crimes, na maioria das vezes, transeuntes.

Nesse toar, quando falamos especificamente em meio ambiente sonoro, a necessidade da realização de uma perícia no local do fato se mostra imperiosa, mormente porque se trata de uma infração penal a qual não deixa vestígios.

Assim, uma oportuna, célere e eficiente documentação do fato, traduzida pelo TCO, visando a caracterizar os níveis de pressão sonora emitidos, não se revela uma investigação policial, mas simples registro de fatos feito por autoridades policiais (expressão da Lei n.º 9.099/95) no exercício de seu dever.

Também o princípio da dispensabilidade da investigação policial (art. 46, §1º do Código de Processo Penal) enseja o explícito reconhecimento da possiblidade de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar eis que, diante de elementos suficientes para deflagração de uma ação penal, o Ministério Público poderá prescindir do instrumento investigativo produzido pela Polícia Civil.

Logo, diante dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade e eficiência preconizados pelo art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, e ressonância com os princípios legais da celeridade, economia processual, informalidade e simplicidade, todos elencados no art. 2º da Lei n.º 9.099/90, o TCO lavrado pela Polícia Militar vem se mostrando um eficientíssimo instrumento de apuração de infrações penais de menor potencial ofensivo.

Por fim, cumpre destacar que a exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 1.484-A, de autoria do então Deputado Michel Temer, o qual se transformou na Lei n.º 9.099/95, criadora do TCO em seu art. 86, quando tratou do encaminhamento do TCO à justiça, jamais utilizou a expressão “Delegado de Polícia”, mas sim “autoridade policial”, deixando um óbvio espaço a ser colmatado pelas Administrações Públicas de cada Estado da Federação, dentro de sua possibilidade orçamentária do ente federativo no tocante à persecução dos objetivos constitucionais de promoção da segurança pública estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

Segue extrato do texto daquele PL sobre o assunto objeto dessa exposição de motivos:

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA LEI N° 9.099, DE 26-09-95 DO PROJETO DE LEI N° 1.480-A, DE 1989. A Constituição Brasileira de 1988, no art. 98, capuz, e inc. I, determina que "a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão Juizados Especiais, providos por Juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de  infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por Turmas de Juízes de primeiro grau".

Com efeito, a ideia de que o Estado possa e deva perseguir penalmente, sem exceção, toda e qualquer infração, sem admitir-se, em hipótese alguma, certa dose de discricionariedade ou disponibilidade da ação penal pública, mostrou com toda evidência sua falácia e hipocrisia. Na prática, operam diversos critérios de seleção informais e politicamente caóticos, inclusive entre os órgãos de persecução penal e judiciais. Não se desconhece que, em elevadíssima percentagem de certos crimes de ação penal pública, a polícia não instaura o inquérito, e o Ministério Público e o Juiz atuam de modo a que se atinja a prescrição. Nem se ignora que a vítima - com que o Estado até agora pouco se preocupou - está cada vez mais interessada na reparação dos danos e cada vez menos na aplicação da sanção penal. [...] A celeridade acompanha a oralidade, pela desburocratização e simplificação da Justiça. Ademais, um procedimento sumaríssimo, que não sacrifique as garantias processuais das partes e da jurisdição, é o que melhor se coaduna com causas de menor complexidade. Daí a razão de ser da nova norma constitucional, que haveria de ser aplaudida e apoiada, ainda que não fosse coercitiva para os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, como o é. Como justificação deste projeto estou utilizando estudos feitos, inicialmente, pelos eminentes Juízes paulistas Pedro Luiz Ricardo Gagliardi e Marco Antônio Marques da Silva que, adiantando-se à nova Constituição, ofereceram à Associação Paulista de Magistrados minuta de Anteprojeto de lei federal, de sua autoria, disciplinando a matéria. Para examiná-lo, o DD. Presidente do egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Dr. Manoel Veiga Carvalho, constituiu um Grupo de Trabalho formado pelos Juízes Antônio Carlos Viana Santos, Manoel Carlos Vieira de Moraes, Paulo Costa Manso, Ricardo Antunes Andreucci e Rubens Gonçalves. Foi convidada para integrar o grupo a Dra. Ada Pellegrini Grinover, Professora Titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que, por sua vez, se valeu da colaboração dos mestres Antônio Magalhães Filho e Antônio Scarence Fernandes, Professores Assistentes da mesma Faculdade. [...] d) Procedimento sumaríssimo. Não ocorrendo a imediata aplicação da pena restritiva de direitos ou multa, o Ministério Público formula oralmente a denúncia, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis, ficando clara a dispensa do inquérito policial. Ademais, o Instituto insere-se perfeitamente na filosofia que informa o Projeto, consistente na desburocratização e aceleração da Justiça penal, e do filão da discricionariedade regulada, no mesmo consagrada, tudo em decorrência do texto constitucional. E as palavras de apoio e de aplauso que seu debate tem provocado nos mais diversificados setores jurídicos e sociais indicam que a transformação do Projeto em lei poderá significar considerável passo para o resgate da credibilidade da Justiça penal. Sala das Sessões, em 16 de fevereiro de 1989. MICHEL TEMER Deputado Federal.

Logo, no plano da legalidade, a lavratura de TCO’s pelas Polícias Militares está plenamente justificada.

no plano da doutrina, os cientistas do direito de forma esmagadora afirmam a possibilidade de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar, pelas óbvias razões que desse procedimento decorrem.

Sobre o assunto, novamente invocamos a fala de Dr. Vladimir Aras, ex-membro do Ministério Público do Estado da Bahia e hoje valoroso integrante do Ministério Público Federal, com suas lúcidas explicações sobre o tema:

“O TCO não é nada mais do que um boletim de ocorrência mais robusto, por isto chamado de “circunstanciado”. Em regra, a Polícia Militar e a PRF sempre produziram seus próprios boletins, dos quais constam informações importantes sobre a autoria, a materialidade do delito e suas circunstâncias. A lavratura dos TCO difere muito pouco disto.

Não há qualquer inconstitucionalidade na lavratura de TCO’s pela PM ou pela PRF, pois a Constituição não assegura exclusividade para o registro da ocorrência de crimes. Quando lavram os termos (TCO), policiais militares e patrulheiros rodoviários não estão investigando crimes, mas apenas registrando fatos, em exercício de atividade administrativa que lhes é própria. Registrar um não é o mesmo que investigar crimes.

Por isto mesmo, é desnecessária formação jurídica para a lavratura desses boletins. Não fosse assim os escrivães das delegacias de Polícia deveriam ser bacharéis em Direito e os membros de comissões de sindicância e de processo administrativo também deveriam ter formação jurídica. Não há – nem deve haver – apego ao bacharelismo na atividade policial. A Polícia não é um feudo dos juristas.”

Esse também é o escólio de Ivanir Oliveirra Cordeiro, ao afirmar sobre as manifestas vantagens da possibilidade concorrente de lavratura de TCO´s pela Polícia Militar, ao afirmar que:

Observa-se, que seria de grande utilidade a lavratura do TCO pela polícia militar, e que de de forma célere, poderiam encaminhar os envolvidos diretamente ao Juizado Especial Estadual competente para iniciar o procedimento adequado, o que acarretaria um desafogamento na apuração e lavraturas de inúmeros delitos na delegacia de polícia.

É cediço que no cotidiano da atividade da polícia militar a grande maioria das ocorrências atendidas refere-se aos delitos de menor potencial ofensivo, tais como: acidentes com lesões leves, vias de fato, agressões, perturbação do sossego e outros de menor gravidade.

Também não é desconhecido que em pelo menos metade do país - ou seja, em cerca de 2.800 municípios brasileiros - não existem delegacias de Polícia Civil e as ocorrências policiais são atendidas e reportadas por Policiais Militares. O fato de comparecer “in loco” da prática do delito favorece o PM que tem melhores condições de descrever os fatos, de maneira mais precisa, podendo inclusive ouvir as testemunhas e fornecer informações preciosas ao deslinde dos fatos.”

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Nesse sentido, os maiores penalistas do Brasil afirmam peremptoriamente a legalidade da lavratura de TCO’s pela Polícia Militar, a exemplo de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Luiz Flávio Gomes e Antônio Scarance Fernandes.

Sobre o tema, afirmam os mesmos:

Qualquer autoridade policial poderá ter conhecimento do fato que poderia configurar, em tese, infração penal. Não somente as polícias federal e civil, que têm a função institucional de polícia judiciária da União e dos Estados (art. 144, § 1º, in. IV, e § 4º), mas também a polícia militar. O legislador não quis – nem poderia – privar as polícias federal e civil das funções de polícia judiciária e de apuração das infrações penais. Mas essa atribuição – que só é privativa para a polícia federal, como se vê pelo confronto entre o inc. IV do § 1º do art. 144 e seu § 4º – não impede que qualquer outra autoridade policial, ao ter conhecimento do fato, tome as providências indicadas no dispositivo, até porque o inquérito policial é expressamente dispensado nesses casos (v. comentário ao § 1º do art. 77). (…) Exatamente neste sentido, a Comissão Nacional da Escola Superior da Magistratura, encarregada de formular as primeiras conclusões sobre a interpretação da lei (v. n. 13 das considerações introdutórias à Seção), apresentou a seguinte: Nona conclusão: ‘A expressão autoridade policial referida no art. 69 compreende todas as autoridades reconhecidas por lei, podendo a Secretaria do Juizado proceder à lavratura do termo de ocorrência e tomar as providências devidas no referido artigo.” (GRINOVER, Ada P. et. all. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995, 3ª ed., RT, 1997).

Mister destacar que os doutrinadores Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes fizeram parte do grupo de estudos o qual elaborou a Lei n.º 9.099/95, norma esta criadora dos TCO’s no ordenamento jurídico brasileiro, de forma que os posicionamentos dos mesmos apontam inexoravelmente para a possibilidade de autoridades policiais militares lavrarem o TCO, como informado.

Ora, se os próprios mentores da Lei n.º 9.099/95 afirmam categoricamente que a Polícia Militar pode lavrar TCO’s, não há dúvidas sobre o assunto, no plano doutrinário.

Assim, doutrinariamente, a possibilidade de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar também é manifesta.

Finalmente, no plano da jurisprudência, Supremo Tribunal Federal já realizou três julgamentos sobre essa questão: a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 3.614-PR, julgada em 20.09.07, a ADI n.º 2.862-SP, julgada em 26.03.08 e o Recurso Extraordinário (RE) n.º 702.617-AM, julgado em 28.02.12.

Basicamente são apenas esses três julgados os invocados para a sustentação (minoritária) de proibição de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar.

Vejamos com detalhes cada um deles e os fundamentos de suas decisões.

A ADI n.º 2.862-SP, julgada em 26.03.08, foi liminarmente extinta sem julgamento do mérito por se tratar de ação movimentada contra ato sem densidade normativa suficiente para deflagrar o controle concentrado, numa hipótese de violação indireta de constitucionalidade.

Logo, este julgado não analisou coisa alguma, não sendo parâmetro para embasar qualquer defesa de posição jurisprudencial perante o STF, eis que sequer a Suprema Corte analisou o mérito da demanda.

O acórdão penas afirmou que o texto impugnado sequer tinha volume normativo para desafiar a Constituição da República.

Assim, por não ter havido sequer a análise do mérito da questão (meritum causae), não há como se sustentar referida ação como paradigma jurisprudencial de qualquer natureza sobre o assunto ora debatido.

Passemos à segunda ação.

O Recurso Extraordinário – RE n.º 702.617-AM, julgado em 28.02.12, também foi liminarmente extinto sem julgamento do mérito por decisão monocrática do Ministro Luiz Fux com embasamento no julgado da ADI n.º 3.614-PR.

Como na hipótese anterior (ADI n.º 2.862-SP), não houve o julgamento do mérito por entender o Ministro Relator desnecessário trilhar o mesmo caminho já delineado quando do julgamento da ADI n.º 3.614-PR.

Em resumo, o mérito deste RE n.º 702.617-AM também não foi analisado, sendo o recurso sumariamente extinto por decisão monocrática de seu relator.

Perceba-se que neste julgado não houve submissão do RE ao plenário do STF, de forma que não se pode afirmar, com a composição do órgão e mudança de seus membros, se o órgão manteria o mesmo entendimento quando do julgamento da ADI n.º 3.614-PR, de nove anos atrás.

De forma que, de concreto sobre esse tema, temos apenas o julgamento da ADI n.º 3.614-PR, ocorrido há nove anos atrás, onde o Excelso Pretório afirmou a impossibilidade de policiais militares assumirem as funções de Delegados de Polícia, não de lavraturas de TCO’s!

Acontece que os fatos materiais trazidos no bojo do Decreto n.º 1.557/03, julgado inconstitucional pelo Excelso Pretório, são totalmente distintos da realidade vivenciada pelas Polícias Militares do Brasil.

Naquele Decreto o Governador do Paraná conferiu poderes expressos a sargentos e subtenentes da Polícia Militar do Paraná para assumirem a chefia de Delegacias de Polícia as quais estivessem desprovidas de Delegados de Polícia, visando a dar continuidade nos trabalhos daqueles órgãos policiais.

Com efeito, informava a redação do decreto guerreado:

Art. 1º Nos Municípios onde o Departamento de Polícia Civil não contar com servidor de carreira para desempenho das funções de Delegado de Polícia de carreira, o atendimento nas Delegacias de Polícia será realizado por Subtenente ou Sargento da Policia Militar.

Ou seja, com aquele Decreto o Governador simplesmente autorizou policiais militares a assumirem a titularidade de órgãos executivos (Delegacias de Polícia) de um outro órgão da Secretaria da Segurança Pública (Polícia Civil), o que se mostrou totalmente desarrazoado e absurdo!

Nesse cenário o inconformismo da Polícia Civil do Paraná foi legítimo e correto, pois um servidor de outro órgão estava assumindo formalmente a titularidade da Delegacia de Polícia, inclusive conduzindo investigações sobre atos infracionais, ainda que de menor potencial ofensivo.

Logo se percebe que referida situação se mostra absolutamente divorciada da realidade atual, onde as demais Polícias Militares jamais tencionaram assumir titularidade de Delegacia alguma, mas somente registrar documentalmente fatos do seu conhecimento e os quais demandam imediata apuração, sob pena de perdimento por conta do transcurso do tempo.

Assim, claro se mostra que a situação fática a qual ensejou o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma a qual possibilitava a lavratura de TCO’s pela Polícia Militar é absurdamente distinta da realidade fática das demais instituições do Brasil, onde os registros policiais são feitos somente em situação flagrancial, sem qualquer prejuízo à nobre instituição da Polícia Civil.

Tanto assim deve ser entendido que a Exm.ª Sr.ª Ministra Carmen Lúcia, relatora do acórdão daquela ADI n.º 3.614-PR, ao julgar a Reclamação n.º 6.612-SE, aos 26 de fevereiro de 2009, expressamente afirmou de que o STF jamais disse que policiais militares não poderiam lavrar TCO’s, mas tão somente não poderiam assumir delegacias de polícia!

Nesse sentido, as esclarecedoras palavras da Ministra, fazendo menção ao julgamento da ADI n.º 3.614-PR, tão sobejamente invocada pelos defensores da tese da impossibilidade de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar:

Nesse julgamento, mesmo que tenha havido incursões dos julgadores sobre o fato de policiais militares lavrarem termo circunstanciado de ocorrência, não foi esse, definitivamente, o foco do debate, menos ainda o sentido da decisão final. Decidiu-se, isto sim, em sentido impeditivo porque inconstitucional, que policiais militares atendessem nas delegacias de polícia em substituição aos delegados civis. Não se aprofundou qualquer debate sobre a ontologia, a natureza e conseqüências jurídicas de um termo de ocorrência circunstanciado, tudo como sói acontecer num processo objetivo de inconstitucionalidade. A questão da lavratura dos termos circunstanciados foi, naquele caso, meramente circunstancial – consentindo-me a um jogo de palavras; não se discutiu sobre a lavratura do termo, mas sobre o exercício de função distinta da eminente ou tipicamente militar, e de maneira lata.

Cumpre ainda que se divise, no entanto, se o ato de lavrar um termo circunstanciado se limita à formalização de um relato devido por praça que atenda a um chamado do cidadão, ou se se dá em um ato mais elaborado, a “tomar lugar jurídico de delegado de polícia”, envolvendo um juízo jurídico de avaliação (técnica), como mesmo reconhecido pelo Ministro Cezar Peluso em seu voto na Ação Direta da Inconstitucionalidade nº 3.614/PR.

Na mesma assentada consta o registro do Ministro Gilmar Mendes (vencido na ocasião), remetendo-se ao voto do Ministro Celso de Melo, em que destaca algo que para o caso agora apreciado muito interessa:“(...) Por outro lado, a própria expressão ‘termo circunstanciado’ remete, como agora destacado pelo Ministro Celso de Melo, à Lei n. 9.099, que, na verdade, não é função primacial da autoridade policial civil. A doutrina registra que essa é uma função que pode ser exercida por qualquer autoridade policial.(...)” 

Assim, a leitura dos termos do acórdão paradigma trazido como desrespeitado pelo Provimento nº 13/2008, da Corregedoria de Justiça de Sergipe, conduz-nos a concluir pela inegável inadequação da via eleita e da pretensão da Reclamante.

Cumpre destacar que a Ministra Carmen Lúcia foi o primeiro membro do STF a pugnar pela inconstitucionalidade total do Decreto n.º 1.557/03.

Logo, a mesma lançou o primeiro voto divergente do Ministro relator, o Dr. Gilmar Mendes, estabelecendo a tese vencedora no Supremo naquela ocasião.

Ora, se a própria Ministra a qual inaugurou a tese de que o Decreto n.º 1.557/03 era inconstitucional pela razão única de policiais militares estarem assumindo delegacias de polícia, não adentrando no mérito de se a polícia militar poderia lavrar os TCO’s, óbvio que essa questão restou intocada pelo Supremo Tribunal Federal.

Em resumo, o Supremo jamais disse que a Polícia Militar não pode lavrar TCO’s!

Repitamos as palavras da Ministra, para que não haja dúvidas sobre suas reais intenções naquele julgado o qual tem sido tão frequentemente panejado como impeditivo de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar:

“mesmo que tenha havido incursões dos julgadores sobre o fato de policiais militares lavrarem termo circunstanciado de ocorrência, não foi esse, definitivamente, o foco do debate, menos ainda o sentido da decisão final. Decidiu-se, isto sim, em sentido impeditivo porque inconstitucional, que policiais militares atendessem nas delegacias de polícia em substituição aos delegados civis [...].

A questão da lavratura dos termos circunstanciados foi, naquele caso, meramente circunstancial – consentindo-me a um jogo de palavras; não se discutiu sobre a lavratura do termo, mas sobre o exercício de função distinta da eminente ou tipicamente militar, e de maneira lata”.

Cientes desse abismo fático existente entre as circunstâncias daquele Decreto n.º 1.557/03, diversos Tribunais de Justiça do Brasil já há muito tempo regulamentaram a lavratura de TCO’s pela Polícia Militar, avançando no combate efetivo e eficiente à criminalidade, sem que os mesmos tenham sido questionados em suas constitucionalidades.

Nesse toar, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul editou a Instrução n.º 05/2004, de 2 de abril de 2004, onde expressamente disciplinou a lavratura de TCO’s pela Polícia Militar do Mato Grosso do Sul.

No XVII Encontro Nacional do Colégio dos Desembargadores Corregedores Gerais de Justiça do Brasil, reunidos em São Luís do Maranhão, nos dias 04 e 05 de março de 1999, realizou-se a composição da "Carta de São Luís do Maranhão”, onde foi registrado que:

“Autoridade policial, na melhor interpretação do art. 69 da lei 9.099/95, é também o policial de rua, o policial militar, não constituindo, portanto, atribuição exclusiva da polícia judiciária a lavratura de Termos Circunstanciados. O combate à criminalidade e a impunidade exigem atuação dinâmica de todos os Órgãos da Segurança Pública”.

Corroborando com este entendimento, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, através do Provimento n. 34, de 28 de dezembro de 2000, formulou que:

“A autoridade policial, civil ou militar, que tomar conhecimento da ocorrência, lavrará termo circunstanciado, comunicando-se com a secretaria do juizado especial para agendamento da audiência preliminar, com intimação imediata dos envolvidos”.

Já no Estado do Rio Grande do Sul, a Instrução Normativa Conjunta n. 01/2000, do Chefe de Polícia Civil e do Comandante Geral da Brigada Militar, definiu que:

 “Todo policial, civil ou militar, é competente para lavrar o Termo Circunstanciado previsto no artigo 69 da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

Por sua vez, através do Provimento 806/03, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, passou a aceitar o termo circunstanciado lavrado pelo policial militar baseando no entendimento de que:

“Considera-se autoridade policial apta a tomar conhecimento da ocorrência e a lavrar termo circunstanciado, o agente do Poder Público, investido legalmente para intervir na vida da pessoa natural, que atue no policiamento ostensivo ou investigatório”.

O enunciado n.º 34 do Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE estabelece que:

ENUNCIADO 34 – Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar.

Também o Ministério Público Brasileiro, por meio do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, manifestou-se de forma unânime em julgamento realizado no Pedido de Providências n.º 1.461/2013-22, interposto pela ADPF – Associação de Delegados da Polícia Federal sobre a possibilidade de lavratura de TCO’s pelas Polícias Militares e Polícia Rodoviária Federal - PRF.

Nesse julgado os conselheiros externaram a absoluta legalidade da possibilidade de lavratura de TCO´s pelas Polícias Militares e PRF, bem como a grande contribuição que as instituições vêm dando à segurança pública por conta da assunção dessa atividade.

Nas palavras do voto do Conselheiro Walter Agra, membro do CNMP e relator do processo:

A lavratura dos TCOs não deve ser confundida com a investigação criminal, atividade inerente à polícia judiciária e a outras instituições, nem 'autoridade policial' há de ser compreendida estritamente como delegado de polícia. Trata-se de simples atividade administrativa [...] todo servidor público, e aí também os policiais rodoviários federais, têm o dever funcional de atuar contra a ilegalidade e não apenas representar ou comunicar a ilegalidade, já que estão imbuídos do dever de preservar a segurança pública, a ordem e a incolumidade das pessoas que trafegam pelas rodovias e estradas federais”.

Dessa forma, percebe-se que a jurisprudência dominante (inclusive no âmbito do CNMP em sede de processo administrativo), vem reiteradamente avalizando a lavratura de TCO’s por policiais militares.

Como narrado adrede, como a própria Ministra Carmen Lúcia já explicitamente afirmou que o STF não decidiu sobre a questão (como elencado na Reclamação n.º 6.612-SE, julgada em 26 de fevereiro de 2009, e fazendo expressa menção ao julgamento da ADI n.º 3.614-PR), uma pá de cal foi jogada sobre o assunto.

Assim, sob o ponto de vista jurisprudencial, a possibilidade de lavratura de TCO’s pela Polícia Militar também é manifesta.

Por fim, sob o aspecto da eficiência, as razões pelas quais a lavratura do TCO de natureza ambiental devam ser realizadas pelas companhias militares especializadas se mostram óbvias.

Em primeiro lugar, como descrito, muitas das infrações penais ocorridas na sede dos grandes centros urbanos versam sobre poluição sonora.

Por sua própria natureza, esse tipo de poluição não deixa corpo de delito (vestígios), cessando tão logo a fonte poluidora cesse suas omissões.

Assim, a imediata arrecadação do corpo de delito se mostra necessária, sob pena de frustração da constatação da materialidade do crime ocorrido.

Nesse sentido, a analisando a questão sob a ótica local da realidade da comarca de Ilhéus, Bahia, o 2º Pelotão da Companhia independente de Polícia de Proteção Ambiental – CIPPA, órgão executivo da Polícia Militar da Bahia, se mostra uma unidade especializada, treinada e dotada de equipamentos de ponta para o desempenho de suas atividades, colaborando com seus trabalhos de forma célere para apuração das infrações penais e aplicação da justiça.

Assim, a lavratura de TCO’s pela PMBA possibilita a coleta imediata de prova científica imprescindível para apuração desse tipo de delito, sendo extremamente útil à sociedade no combate à criminalidade ambiental.

Somente para ilustrar uma realidade local, quando uma ocorrência de poluição sonora é encaminhada pela Delegacia de Proteção Ambiental – DPA, por conta da enorme dificuldade que o Departamento de Polícia Técnica - DPT tem em laudar essa fonte poluidora sonora, em cerca de 90% dos casos o TCO acaba sendo remetido ao Ministério Público como “perturbação do sossego alheio”, pela simples falta do laudo.

Isso porque a maioria esmagadora das poluições sonoras são eventuais (não têm dia nem hora certas para acontecerem), amadoras (não têm origem em fontes profissionais, como casa de shows, boites, bares) e sazonais (ocorrem normalmente em períodos determinados do ano, como ano novo, carnaval, semana santa, em razão de Ilhéus ser um polo atrativo turístico nacional), de forma que a coleta da prova científica é quase impossível nestas circunstâncias.

Quando do atendimento do DPT da requisição da autoridade policial da DPA (e frise-se que em muitas vezes isso sequer acontece, o que vem causando um enorme estresse entre as instituições), a fonte poluidora já cessou há muito tempo, inviabilizando por completo a apuração do delito.

Essa falha crônica na apuração das infrações penais coloca as instituições envolvidas na persecução da Segurança Pública em descrédito e estimula psicologicamente o cometimento de novos delitos pelos seus responsáveis.

Como descrito, com a atuação da Polícia Militar, a coleta da materialidade é imediata, e o TCO é lavrado em cerca de 10 minutos, com o registro do fato, a coleta da prova científica, a apreensão dos instrumentos do crime e o encaminhamento do autor do fato ao sistema judicial existente na comarca.

Noutro giro, em muitos casos, a Delegacia de Proteção Ambiental (quando existe na comarca) não possui regime de plantão, situação essa a qual obriga o efetivo policial militar a conduzir os envolvidos ao plantão ordinário do órgão da Polícia Civil, demandando um enorme dispêndio de tempo precioso dos militares e da própria Polícia Civil, recursos humanos esses os quais poderiam estar sendo mais bem empregado no combate a crimes de maior lesividade social.

Ainda que eventualmente o órgão acusador perceba eventual falha na coleta de dados elencados em um TCO, admitir-se-ia sempre a possibilidade de remessa do mesmo à Delegacia de Polícia para complementação das investigações pontuais as quais porventura se mostrem necessárias, de forma que prejuízo algum trará à aplicação da justiça.

Isso porque conquanto conceitualmente o TCO deva ser lavrado com todos seus aspectos necessários em uma só assentada, como estabelecido pela Lei n.º 9.099/95, fato cotidiano dos tribunais tem sido a devolução de referidas peças investigativas para complementação das mesmas, sem que isso implique desnaturação da mesma, por conseguinte.

Assim, também sob o prisma da eficiência, a lavratura de TCO’s pela Polícia Militar é absolutamente possível e necessária.

Em resumo, seja sob o aspecto da legalidade, doutrina, jurisprudência ou eficiência, a lavratura de TCO’s pela Polícia Militar é inquestionável.

Somente a defesa intransigente de interesses particulares da classe de delegados de polícia sustenta o posicionamento contrário, sendo este isolacionismo conceitual uma mera divergência pontual no inegável e indefectível processo histórico de melhoramento das instituições envolvidas na questão da segurança pública e justiça, posição essa a qual, certamente, sofrerá a merecida derrocada quando do julgamento do mérito da questão pelo Supremo Tribunal Federal.

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Sobre o autor
Paulo Eduardo Sampaio Figueiredo

Promotor de Justiça do Estado da Bahia. Especializado em Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá, 2003. Especializado em Meio Ambiente e Urbanismo pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, 2016. Licenciado em filosofia pela Universidade Estadual de Santa Cruz, 2016. Mestrando em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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