Miguel Reale criou a teoria tridimensional do Direito para ajuntar os valores sociais à cultura jurídica. O autor buscou reaproximar a sociologia e a filosofia com o Direito, uma vez que este último, em 1968 (ano da teoria realeana), mantinha como teoria estruturante o juspositivismo kelseniano que rechaçava qualquer dialética interdisciplinar. A tridimensionalidade realeana, inicialmente, parte da premissa que os fatos surgem antes dos valores e os valores, outrossim, surgem antes das normas. Este estudo visa, a partir da inversão da lógica tridimensional realeana demonstrar que as leis criam fatos sociais, bem como valores, ao mesmo tempo em que estruturam a sociedade ditando suas diretrizes. Não se olvidará que as leis foram e são criadas por uma classe detentora de um poder hegemônico, nem que elas – as leis – possuem um poder simbólico capaz de legitimar qualquer tipo de violência imaginável. Palavras-chave: Teoria Tridimensional, violência simbólica, domínio hegemônico-ideológico.
Introdução
Há um pensamento sedimentado na cultura jurídica ocidental: diz-se que "a sociedade cria as leis e não o contrário". Tal alegação pode ter por detrás um sem-número de motivos que vão desde a ignorância até a desresponsabilização dos criadores das leis e aplicadores das leis quando do fracasso destas.
Em que pese a relevância de se depurar os motivos pelos quais tal prolóquio se enraizou no campo jurídico, o escopo deste trabalho é, apenas de maneira oblíqua, refutar tal alegação. As leis, para além de refletirem a sociedade que as cria, também constroem fatos.
Naturalmente, não se está a dizer que as leis criam fatos, no mundo sensível, no átimo em que passam a cumprir efeitos. No entanto, as leis tencionam os agentes sociais a valorarem seus conceitos e, estes, por fim, acabam agindo em razão das leis.
Para descortinar este cenário, o opúsculo lançará mão da Teoria Tridimensional de Miguel Reale, no entanto, refutará um de seus viesses e inverterá uma lógica fundamental, qual seja: a dos fatos antecedendo os valores e os valores antecedendo as normas.
Analisar-se-á a teoria realeana a partir do pensamento sociológico segundo o qual as leis são superestruturas dotadas de um poder simbólico capaz de dirigir o campo social. Entrementes, impingem uma vetusta opressão bastante ignorada.
A teoria tridimensional de Miguel Reale (1910 – 2006):
É importante, antes ainda de explicar a teoria de Reale, esquadrinhar o momento histórico em que essa teoria surgiu, bem como qual era a teoria que predominava antes da de Reale.
Reale engendrou sua teoria em 1968, quando a poeira das bombas da segunda guerra mundial ainda se assentava. A teoria do Direito que inspirava a guerra, por sua vez, era a kelseniana (KELSEN, 2011 p. 1 e ss.). Kelsen imaginava o Direito desvirtuado da noção de justiça. Não queria a profusão de outras ciências intervindo no Direito.
Esse olhar legitimou a faina sanguinária de ditadores no princípio do século XX, que achavam assaz conveniente dizer que o Direito não poderia sofrer investidas de nenhuma outra ciência. Para eles, o Direito era pleno e subsistia sozinho.
Refutando esse pensamento, Reale descortinou sua novel teoria; dizia Reale que o Direito é um fenômeno cultural, que se origina em um tempo, em uma cultura, a partir da junção simbiótica de três elementos: o fato social, o valor moral e a norma.
Este autor diz que qualquer experiência jurídica deve se originar do influxo entre os três componentes (fato, valor e norma). Ou seja, para que haja a criação legiferante hígida é preciso existir a presença dos fatos e dos valores. A tridimensionalidade, outrossim, “se reflete [...] no momento em que o jurisperito (advogado, juiz ou administrador) interpreta uma norma ou regra de direito para dar-lhe aplicação.” (REALE, 2002 pág. 66).
Entendemos, todavia, com a devida venia, que o autor se equivoca quando supõe haver um amalgama que une os três elementos objetos de sua análise, são seus dizeres: “tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta;” (REALE, 2002 pág. 65).
Evidentemente pode existir fato social sem haver valor ou menos ainda norma. Pode ocorrer ainda que exista um valor, mas não haja fato ou norma. Pode ainda, e isso não é raro, haver norma sem que exista fato social ou valor moral. Mas se isso ocorrer, não haverá o Direito legítimo. É Dizer: se existir uma norma jurídica sem seus antecessores lógicos (os fatos e os valores) há a norma, mas não há o Direito legítimo. Se existir um fato e não houver norma nem valor, não há o Direito, mas – sem nenhuma dúvida – há o fato.
Os fatos, os valores e as normas existem separadamente, sua confluência, no entanto, é o que torna o Direito hígido e legítimo. É preciso, todavia, ter em mente que há uma escada para a criação e aplicação do Direito legítimo: os fatos sempre antecederão aos valores, e os valores sempre antecederão às normas.
A noção segundo a qual o Direito se constrói partindo dos fatos e termina nas normas é comezinha: o Direito legitimo só pode surgir da ocorrência de um fato, gerador de um valor, que culmina em uma norma.
Essa premissa guiará este trabalho a partir daqui, qual seja, para existir um Direito legítimo é preciso transpor três degraus. Sendo o primeiro degrau os fatos sociais, após os valores morais e ao cabo a norma positivada.
Descendo os degraus da escada:
Descer os degraus da escada representa inverter a lógica dos fatos antecedendo os valores, e estes antecedendo as normas. Ou seja, partiremos de uma análise em que as normas, constroem valores, e esses valores constroem fatos.
As leis, portanto, sob essa ótica, seria um elemento estruturador da sociedade e do cidadão, verdadeira bússola que norteia as direções “corretas” da sociedade.
Impende salientar que esta análise terá como prisma uma pitada de empirismo, uma vez que o enfoque axiológico desta inversão é atentar para como a sociedade enxerga e aplica as leis, de si para si, sem a presença do jurista.
É preciso evidenciar, no entanto, que não se está a refutar a construção de um Direito enfocado em um viés jurídico-dogmático, quer-se apenas construir uma noção sociológica do Direito a partir da inversão lógica da análise jurídico-realeana.
O Direito como superestrutura que constrói o mundo factual:
Karl Marx (1818 – 1883) dizia que a sociedade se estruturava a partir de uma dualidade: de um lado havia a infraestrutura, que era a divisão econômica das classes; de outro havia as superestruturas: a política, o Direito e a ideologia burguesa.
Explicava o autor que por mais que os pontos de chegada fossem os mesmos, os pontos de partida não eram. Quando o Direito afirma que todos devem ter igualdade de condições para serem contratados, nem todos poderão adquirir os jornais onde estariam estampadas as ofertas de emprego. Sob outro enfoque, embora – teoricamente – quase todos pudessem se candidatar às eleições, alguns poucos é que realmente poderão fazê-lo.
Em suas palavras definiu o alemão:
“As relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas [...] essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência [...]. Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008: pág. 47).
Alguns entendem que Marx disse haver uma dependência do Direito à Economia. Entre todos, cite-se Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy para quem:
[...] “O pensamento marxista já vinculava esses dois campos epistêmicos, direito e economia, subordinando aquele primeiro a essa última. A economia ditaria comportamentos, formatações sociais, idiossincrasias, ideologias. Enquanto infra-estrutura a economia determinaria os nichos de superestrutura; o direito será mero reflexo da movimentação econômica” [...] (GODOY,2005: pág. 01).
No entanto, em nosso sentir, a dualidade traçada por Marx não deve ser vista de modo mecanicista e reducionista, a ponto de se dizer que somente a economia dita “comportamentos, formatações sociais, idiossincrasias, ideologias”. Analisamos a infraestrutura talhada por Marx como o fizeram Bruno Sarmento Ferreira e Luciano Nascimento Silva, in verbis:
(...) “quando Marx utiliza a expressão “modo de produção”, ele não estaria se referindo tão somente à economia, mas a toda uma complexidade de ações praticadas no mundo físico pelas pessoas em sociedade. Esta ressalva tem por escopo enfatizar o “desmembramento” destes dois fenômenos, acentuando-se assim, para nós, sua concepção filosófica materialista, que tinha por objetivo, criticar radicalmente qualquer concepção existencial de cunho metafísico ou idealista.” (FERREIRA e SILVA, 2014, pág. 15).
Noutro giro, pode-se sustentar que também a superestrutura baliza e norteia a infraestrutura. Ou, em outros dizeres, que o Direito também é construtor de realidades empíricas no mundo da vida. Neste mesmo sentido pontuou, a pena de ouro, o sociólogo francês, Louis Althusser:
“Podemos decir entonces que la gran ventaja teórica de la tópica marxista, y por lo tanto de la metáfora espacial del edificio (base y superestructura), consiste a la vez en hacer ver que las cuestiones de determinación (o índice de eficacia) son fundamentales, y en hacer ver que es la base lo que determina en última instancia todo el edificio; por lógica consecuencia, obliga a plantear el problema teórico del tipo de eficacia “derivada” propio de la superestructura, es decir, obliga a pensar en lo que la tradición marxista designa con los términos conjuntos de autonomía relativa de la superestructura y reacción de la superestructura sobre la base.” (ALTHUSSER, 1974: pág. 13).
Há na superestrutura, em geral, e no Direito, em particular, um movimento cíclico, dialético-sistemático com os fatos sociais ocorridos no mundo sensível. É dizer, não são apenas os fatos que constroem o Direito, mas este também constrói àqueles.
O Direito como violência simbólica:
Pierre Bourdieu (1930 – 2002) percebia o fenômeno jurídico de modo muito particular. Para ele, ao contrário de Marx, a ciência jurídica até era influenciada por outros campos, todavia, sua principal construção se dava de modo autopoietico. O Direito, para Bourdieu, era um tanto autossuficiente e caminhava, muitas vezes, dissociado dos influxos sociais, econômicos e até culturais. Além de ser o instrumento ideal a legitimar a opressão, conforme asseverava o autor falando do campo jurídico:
“(...) um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física.” (BOURDIEU, 2005, pág. 211).
Assim, sob a ótica bourdiana, pode-se afirmar que o Direito, ao encampar uma ideologia (seja ela qual for, não necessariamente burguesa) oprime, sufoca, coage, massacra de forma legítima e simbólica as classes a quem ele – o Direito – desprivilegia.
Nesse mesmo viés, se o Direito estivesse impregnado por uma ideologia proletária, por exemplo, suas normas sufocariam e oprimiriam do mesmo modo. Porquanto o corpus jurídico:
“(...) em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.” (BOURDIEU, 2005, pág. 242).
À luz dos conceitos talhados por esses dois sociólogos deve-se descortinar a ideologia sob a qual se funda o Estado atual, bem como a quem o Direito oprime e a quem tutela.
O Direito, a ideologia e a dominação:
Muitos foram os sentidos cunhados para o termo “ideologia”. Durante os séculos esses sentidos variaram tanto e de tal maneira, que chegou a existir, semanticamente, antagonismos lexicais amplamente incongruentes. (EAGLETON, 1997: pág. 15).
Para os fins deste estudo utilizar-se-á o sentido marxiano de ideologia, para quem a ideologia é a ideia de uma classe dominante ditando conceitos que se enraízam em toda a sociedade como se verdadeiros fossem. (CHAUÍ, 1994: pág. 117).
Entre todas as ideologias impregnadas em nossa sociedade, deve-se citar a maior delas: a propriedade privada. Essa que é protegida a sete chaves pela Constituição Federal de 1988 e não menos socorrida pelo código civil, talhado por Miguel Reale, de 2002.
A sociedade, de uma maneira geral, não admite discutir a abolição da propriedade privada. Mesmo aqueles que se abrigam por debaixo de choupanas preferem legitimar a violência simbólica dos enormes casarões e das coberturas em detrimento da revolta.
Aos dominantes, noutra banda, é conveniente legitimar à propriedade, porquanto lhes preservam a hegemonia da dominação. Essa dominação, porém, por ser simbólica, ocorre de maneira imperceptível ao que a impinge e noutro giro às cegas ao que a suporta. (BOURDIEU, 2005, pág. 7)
Sem embargo, é no afã de possuir domínio que o homem arrasa a natureza, aniquila o seu semelhante, vê o trabalho como arena de conflitos, onde o “concorrente” é inimigo. Vê cifras onde deveria ver vidas. Vê preço onde deveria ver dignidade.
Em sua faina por angariar a propriedade privada, a sociedade repudia veementemente que trabalhadores rurais deem função social à propriedade ociosa e alheia. Esses malfadados micro agricultores são vistos como invasores, salteadores, desleais. Enquanto os proprietários de terras dão suas receitas de como enriquecer nas manchetes da TV. Políticos, herdeiros, oportunistas, dotados daquilo que a sociedade insiste em chamar de “sorte”.
Diante desse cenário, o Direito é o mais legítimo campo de dominação do capital, porquanto o Direito opera, como dissemos alhures, estruturando a sociedade. Criando os valores aos quais a sociedade deve se nortear, por fim fazendo com que as pessoas ajam de tal ou qual maneira. (FERREIRA e SILVA, 2014, pág. 15).
Como bem acentuaram Bruno Sarmento Ferreira e Luciano Nascimento Silva, in verbis:
“No caso específico do ordenamento vinculado à égide burguesa, o arcabouço normativo estatal sempre corresponde à ideologia dominante, tanto em seu momento de formação (construção das normas) quanto em seu momento de aplicação (decisões judiciais). O legislador, pertencente ao aparelho estatal, nunca legisla contra a sua própria ideologia, que é, por extensão, a ideologia do próprio Estado. Ele implementa no ordenamento legal, os privilégios gozados somente pelos próprios agentes que integram a classe dominante.” (FERREIRA e SILVA, 2014, pág. 12).
Assim, o Direito se nos apresenta como vetor estruturante de um poder simbólico, intangível, invisível, que reafirma e legitima a dominação burguesa. Ora criando, ora reafirmando valores sociais e, por conseguinte, engendrando fatos no mundo sensível.
Este fenômeno de dominação, todavia, não é recente. Historicamente é possível analisar as leis como instrumento de alguma dominação social: o Direito na idade média legitimava a dominação teológica da igreja; nos períodos de absolutismo monárquico, por sua vez, o Direito era um produto da criação do próprio soberano. Após as revoluções burguesas o Direito é ditado por uma engrenagem social burguesa que se opera dissimuladamente.
Não se pode negar que a classe trabalhadora conquistou direitos, mormente a partir do princípio do século XX, com as constituições do México de 1917 e a de Weimar de 1919. No Brasil, especialmente em 1934, com a constituição getulista. No entanto, a dominação burguesa ainda permanece incólume a essas investidas. No Brasil, em particular, a própria CLT, em diversos de seus artigos, tem servido de estrutura de opressão[1].
O Direito, portanto, tem caminhado por um veio único, como um carro dirigido em uma estrada sem contornos, de única via e sem acostamento. Ele não é mais senão que a formalização da vontade humana, uma construção axiológico-normativa do pensamento predominantemente aceito ou do pensamento imposto pela dominação.
A despeito disso, desde as sociedades mais rudimentares até as de hoje, o que salta aos olhos é um Direito orquestrado pelo poder e não pela vontade das maiorias. A crítica marxista quanto à elegibilidade, por exemplo, não mudou – mesmo com o hiato de dois séculos que separam a sociedade de Marx da atual.
Uma teoria sociológica do Direito
Ao propor uma nova teoria, que caminha na contramão da teoria realeana, quer-se demonstrar que, o Direito, para além de regular as condutas humanas àquilo que lhe é desejável a partir de fatos e valores, faz também a projeção futura da sociedade aos seus moldes.
Se para criação/aplicação do Direito deve-se olhar primeiro para os fatos, depois para os valores, por fim para as normas; para este recorte sociológico é preciso analisar as leis, os valores e por fim os fatos, porquanto é nessa ordem que a sociedade recepciona o fenômeno jurídico.
O homem leigo e a sociedade leiga olham para as leis antes de se comportarem; axiologicamente refletem sobre as implicações da aplicação ou violação da lei para uma classe de pessoas ou para um indivíduo, por fim acabam por agir de um modo ou de outro, não sem antes obedecer a uma ordem lógica e cronológica de pensamento que começa nas leis e termina na ação.
Desse modo, pode-se afirmar que, se para o Direito a análise do fato/valor/norma opera seu fim, para a sociologia este é o começo da análise. A sociologia começa por analisar a criação das leis a partir dos fatos e dos valores sociais, mas continua sua análise após a criação das normas, estudando quais valores as leis criam na sociedade, bem como quais fatos exsurgem no seio da convivência social em razão das normas jurídicas.
Para demonstrar a influência empírica das leis no mundo factual é imprescindível uma análise por sobre a história. Para tanto, abrir-se-á as cortinas do passado com três exemplos emblemáticos: o primeiro - longevo, o segundo – recente, o terceiro - atual.
O exemplo longevo que se faz menção é a história do negro no Brasil. História nefasta, marcada por sangue e crueldade. Por muitos anos Portugal[2] fomentou a escravidão do negro nestas plagas. Essa prática, como seria óbvio antever, segregou de forma significativa o negro brasileiro.
Os números oficiais dão conta que o negro é menos remunerado no mercado de trabalho, tem menos acesso à universidade, menos acesso ainda em concursos públicos e, ainda hoje, em pleno século XXI, inacreditavelmente, sofre preconceito exclusivamente por conta de sua pele, isso tudo sem se levar em conta contra quem o Direito Penal é vocacionado a atuar (CHADAREVIAN, 2011, Pág. 1-10).
Em que pese o Brasil ter sido um dos últimos países a abolir a escravidão, bastou a Lei Áurea ser assinada, em 13 de maio de 1888, para que se mudasse, paulatinamente, o cenário até então instaurado. Ao longo do tempo, mormente após a abolição da escravatura, o negro vem ganhando o merecido espaço em solo brasileiro.
Vale pontuar que, atualmente, em boa hora, as ações afirmativas de cotas têm servido para se atingir a igualdade nos pontos de partida em favor dos afro-brasileiros. Evidentemente ainda não é o ideal, mas da escravidão às políticas de ações afirmativas houve um salto quântico propiciado por uma lei.
Tempos mais tarde, como exemplo recente: as constituições do século XX começariam a outorgar direitos civis às mulheres, tais como: direitos sociais atinentes à maternidade, direito ao voto, e de modo geral tratamento isonômico diante dos homens. A partir desse momento as mulheres ganharam gradativamente mais espaço na sociedade, se elevando no fim do século XX e, principalmente, no século XXI, a um posto por elas nunca antes ocupado: o de protagonistas de suas histórias. Não é preciso dizer, mas desde já se evidencia, que as mulheres ainda são subjugadas por um ocidente extremamente machista e preconceituoso: elas recebem menos no mercado de trabalho, sofrem preconceitos diversos, porém houve uma ascensão enorme vinda de um cenário onde não se reconhecia sequer o direito ao voto e chegando, atualmente, a discussão aberta e ampla da legalização do aborto. (BOURDIEU, 2014, pág. 3 ss.).
O exemplo atual se dá com o reconhecimento, via Supremo Tribunal Federal, da família homoafetiva, possibilitando a união estável de homossexuais. Posteriormente, O Conselho Nacional de Justiça lavrou a resolução n. 175 que permite a conversão da união estável homoafetiva em casamento. É indiscutível que após essa decisão e com a resolução do CNJ, cada vez mais haja aceitação social do homossexualismo, como já se tem percebido.
Essas leis e a decisão judicial que usamos como exemplo surgiram fruto de discursos contra majoritários e progressistas. As leis surgem da engrenagem social ou do protagonismo institucional ou pessoal de alguma pessoa, uma vez criadas, as leis dirigem, governam e criam o pensamento social, fazendo com que a sociedade aja conforme seus ditames.
É possível, neste diapasão, analisar cada um desses exemplos no momento antecedente à lei, vendo os fatos criarem valores (ainda que contra majoritários) e ambos darem causa às leis. É possível, porém, e esse é o viés que se pretende, analisar essas leis criando valores e esses valores, por fim, darem causa aos fatos.
Deve-se salientar, por último, que a despeito desta abordagem ser nova, as balizas sob as quais ela se estrutura já estão consolidadas há anos[3]. O próprio Bourdieu destacava que “o direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este.” (BOURDIEU, 2005, pág. 237).
Desse modo, embora este trabalho se denomine “uma teoria sociológica do Direito” seus engendradores foram aqueles que pensaram o Direito como construtor dos valores sociais e de estruturas sociais: Marx, Bourdieu, Geertz e outros mais. O “mérito” da pesquisa foi somente inverter uma teoria jurídica amplamente difundida e trabalhada, lançando mão, para isso, de um recorte sociológico.
CONCLUSÃO:
Conforme se viu é possível trilhar um caminho oposto dentro da teoria tridimensional de Miguel Reale, encontrando em seus alicerces os sustentáculos para uma inversão sociológica do recorte jurídico da tridimensionalidade.
Buscou-se descortinar um Direito construtor de realidades factuais e não mero reflexo de uma sociedade como se poderia supor. Tentou-se, por fim, demonstrar que o Direito cria e legitima a ideologia burguesa, entrementes, sua aplicação não foge a mesma ideologia, impingindo violência à classe sob a qual se desprivilegia.
Desse modo, a ideologia burguesa se torna hegemônica, porquanto cíclica e sistematicamente a sociedade e as leis corroboram os mesmos ideais. A sociedade burguesa criou, ao sabor de suas vontades, a égide das leis codificadas a partir das revoluções do fim do século XVIII. Enquanto as leis, por sua vez, refletem antigas dominações e criam novas estruturas de dominação no seio da sociedade.
BIBLIOGRAFIA:
ALTHUSSER, Louis. Ideología y aparatos ideológicos de Estado. Tradução de Alberto J. Pla. Ediciones Nueva Visión: Buenos Aires, 1974.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kuhner.1ª edição – Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
_________. O poder simbólico. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CHADAREVIAN, Pedro. Para medir as desigualdades raciais no mercado de trabalho. Revista de Economia Política, volume 31, n. 2, São Paulo: 2001.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos Borges.São Paulo: Editora Boitempo, 1997.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 2006.
GEERTZ, Clifford. O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4ª Ed., Porto Alegre: Artmed, 2005.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e economia: introdução ao movimento law and economics. Rev. Jur. Brasília, v. 7, n. 73, p.01-10, junho/julho, 2005.
GORENDER, Jacob. A Escravidão Reabilitada. São Paulo: Editora Ática,1991.
MARX, Karl. A ideologia alemã (Feuerbach). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
_________. Contribuição à crítica da economia política. Tradução e introdução de Florestam Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
_________. O Capital. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural,1988.
REALE, Miguel. Filosofia do direito, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
_________. Fontes e modelos do direito. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994.
_________. Lições preliminares de direito. 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002.
_________. O direito como experiência, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
_________. Teoria tridimensional do direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003.
SCHETTINI, Fernando Gomes. A ideia de violência simbólica e sua ocorrência na regulamentação do contrato de trabalho na CLT brasileira. Revista Jurídica da FAMINAS. v. 7, n. 1-2, Muriaé/MG. Faculdade de Minas, 2011.
SILVA, L. N. e FERREIRA, B. S.. Superestrutura, Direito e ideologia: uma relação dialética, sistêmica e autopoiética. Florianópolis: Compedi, 2014.
TELLES, Edward. Racismo à Brasileira: Uma Nova Perspectiva Sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
[1] Veja mais no profícuo artigo de nosso amigo e professor, Fernando Gomes Schettini “A idéia de violência simbólica e sua ocorrência na regulamentação do contrato de trabalho na CLT brasileira” Revista Jurídica da FAMINAS. v. 7, Muriaé/MG. Faculdade de Minas, 2011.
[2] Poder-se-ia aventar o termo “Brasil Colônia” (1530-1822). Mas, ao arrepio de alguns “historiadores”, sentenciamos: só há Brasil após 1822, o antes era Portugal ou, se quiserem, Colônia portuguesa.
[3] Remetemos o leitor ao fabuloso livro “O Saber Local” do antropólogo Clifford Geertz, onde o autor, entre algumas outras diretrizes, busca demonstrar que o Direito não apenas reflete a sociedade que o criou, mas também a cria.