DO ABANDONO DE INCAPAZ
A princípio, em um contexto histórico, as civilizações antigas limitavam-se apenas a criminalizar o abandono de crianças. O direito canônico foi um dos primeiros a constituir o objeto de tutela penal relativo ao abandono de todo o incapaz de valer-se de si mesmo. No atual Código Penal brasileiro, o crime de abandonar incapaz e o crime de exposição ou abandono de recém-nascido (CP, art. 134) foram previstos em tipos autônomos.
O abandono de incapaz é uma conduta típica, prevista no art. 133 do Código Penal, com pena de detenção de seis meses a três anos. O tipo é descrito como abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono.
O caput define a modalidade simples do abandono de incapaz. Cuida-se de crime de médio potencial ofensivo, pois sua pena mínima autoriza a suspensão condicional do processo, se estiverem presentes os demais requisitos objetivos e subjetivos indicados pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Os §§ 1.º e 2.º elencam qualificadoras, em virtude da superveniência de um resultado agravador: lesão corporal grave ou morte. Na primeira espécie – abandono de incapaz qualificado pela lesão corporal grave –, e somente nela, também é possível a suspensão condicional do processo.
Finalmente, o § 3.º elenca causas de aumento da pena (MASSON, 2016, p. 155)
Esse tipo tem como objeto jurídico a defesa da vida e da saúde, ou seja, é o interesse relativo à segurança do indivíduo, que, por si, não se pode defender ou proteger, preservando sua incolumidade física. O sujeito ativo é aquele que tenha sob seu cuidado, guarda, vigilância, ou autoridade pessoa incapaz. O sujeito passivo de tal crime é qualquer pessoa que se encontre sob cuidado, guarda, vigilância, ou autoridade sendo ela incapaz de defender-se dos riscos do abandono. No que se refere ao elemento subjetivo, é certo que deverá haver o animus necandi, o dolo, podendo ser tanto direto, quanto eventual, não há a previsão culposa no crime em questão.
Trata-se de um crime instantâneo e de efeitos permanentes que se consuma com o abandono do incapaz, desde que haja perigo concreto para a vida ou a saúde da vítima. De acordo com Fernando Capez (2015), a tentativa é admitida nos crimes de perigo, desde que realizado na modalidade comissiva.
Para o crime em questão, o código penal determina apenas duas majorantes da pena, a primeira está prevista no § 1° e ocorre se do abandono resultar lesão corporal de natureza grave, sendo penalizado com reclusão de 1 a 5 anos. Já a segunda hipótese, se encontra no § 2° e ocorre se o resultado for a morte, sendo penalizada com reclusão de 4 a 12 anos.
O código penal traz ainda, três causas de aumento de pena, sendo esses aumentos em um terço. A primeira causa de aumento ocorre se houver o abandono de incapaz em local ermo, ou, solitário, não frequentado habitualmente e não acidentalmente, solitário. Também haverá causa de aumento se o agente é ascendente, descendente, cônjuge, irmão, tutor, ou curador da vítima. Por fim, a última causa de aumento de pena ocorre se a vítima for maior do que 60 anos, acrescentado pela lei 10.741/2003
Art. 98. Abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa.
DA EXPOSIÇÃO OU ABANDONO DE RECÉM-NASCIDO
O Código Penal brasileiro, em seu artigo 134, traz uma espécie especial de abandono de incapaz, dada a inegável prepotência e incapacidade do recém-nascido. Dessa forma, se pune quem expõem ou abandona o recém-nascido para ocultar a desonra própria. Para Cleber Masson:
Esse delito representa, em verdade, uma figura privilegiada do abandono de incapaz (CP, art. 133) cometido por motivo de honra. Nada obstante estejam definidos por tipos penais autônomos, é razoável dizer que o abandono de incapaz é o crime fundamental, do qual deriva o tipo da exposição ou abandono de recém-nascido (MASSON, 2016, p. 160)
Expor ou abandonar são verbos interpretados com sentidos idênticos no direito penal, não fazendo uma distinção entre si, sendo assim no art. 133 só se fala em abandonar e enquanto no art. 134 expor e abandonar. Se fossem distintos o Código estaria deixando impune a exposição de recém-nascido impune, honoris causa, porém isso não acontece.
Diferentemente do que ocorre com o incapaz, como mencionado pelo art. 133 do Código Penal, no art. 134 a lei exige a qualidade de recém-nascido, ou seja, aquele que acabou de nascer, vale dizer, o neonato, bem como aquele que possui poucas horas ou mesmo alguns dias de vida. Não se pode conceber como recém-nascido aquele que, com alguns meses de vida, é abandonado pela mãe, que tinha por finalidade ocultar desonra própria. Nesse caso, acreditamos, o delito será aquele previsto no art. 133 do Código Penal, isto é, abandono de incapaz, mesmo que a mãe atue com essa finalidade especial, uma vez que todos os elementos da figura típica devem estar presentes no momento da aferição da tipicidade do comportamento praticado pelo agente (GRECO, 2016, p. 244).
Os bens juridicamente protegidos pelo art. 134 são a vida e a saúde do recém-nascido, com poucas horas ou até mesmo alguns dias de vida. Quando o recém-nascido já tem alguns meses de vida e a mãe pratica essa conduta para que sua honra não seja maculada, o delito praticado será o do art. 133 do Código Penal.
Sujeito ativo sempre será a mãe, pois é a única em que a desonra cai. Sujeito passivo recém-nascido. Consuma-se quando a exposição ou o abandono resultar em perigo concentro para a vida ou para a saúde do recém-nascido. A tentativa é admissível. O dolo é o elemento característico subjetivo e não se admite a modalidade culposa, por ausência de previsão legal. Pode ser praticado comissiva ou omissivamente.
As modalidades qualificadoras deste delito somente podem ser imputadas a título de culpa, ou seja, tratam-se de crimes preterdolosos, § 1° se do fato resultar lesão corporal de natureza grave, pena- detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Já no § 2° se resulta a morte, pena- de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
DA OMISSÃO DE SOCORRO E DO CONDICIONAMENTO MÉDICO-HOSPITALAR EMERGENCIAL
Quando trata da omissão de socorro em seu Curso de Direito Penal, Rogério Greco atenta para o fato de que a vida em sociedade nos impõe deveres de solidariedade de uns para com os outros. “Existe um dever maior, necessário não somente ao convívio social, mas à manutenção da própria sociedade em si, que é o dever de solidariedade” (GRECO, 2016, p. 249). Sendo a solidariedade um valor social dos mais caros, o legislador houve por bem responsabilizar criminalmente a inação em socorrer ao semelhante. Ex lege:
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
A omissão de socorro configura um crime omissivo próprio, uma vez que a omissão vem narrada expressamente pelo tipo penal. Os crimes omissivos impróprios, ao contrário dos próprios, não se encontram tipificados expressamente pela lei, mas são previstos quando verificadas as situações indicadas no artigo 13, parágrafo 2º, alíneas a, b e c, do Código Penal.
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
O crime de omissão de socorro comporta duas condutas típicas. A primeira delas é deixar de prestar assistência ao ofendido, um crime omissivo puro. Tal omissão, contudo, só é punida dentro das capacidades do agente, isto é, pune-se a omissão naquilo que era possível ser feito e não foi, não se exige, portanto, a prática de atos para os quais o agente não está habilitado. A segunda conduta típica é não pedir socorro da autoridade pública. Uma vez verificada a impossibilidade de prestar socorro, exige-se o acionamento das autoridades competentes, não o fazer é penalmente punível e também configura omissão de socorro.
Neste crime, o dolo consiste na vontade de não prestar socorro ou não pedir auxílio, cônscio do perigo para a vítima. Se o agente não tem consciência do perigo, afastado está o dolo e não há falar em punibilidade, uma vez que inexiste a forma culposa (MIRABETE, 2015, p. 900).
São cabíveis formas qualificadas do crime de omissão de socorro, caso em que ocorra lesão corporal grave ou morte da vítima. Para a aplicação das causas de aumento de pena, deve restar provado que o omisso poderia ter evitado a lesão ou a morte da vítima.
Não configura o crime de omissão de socorro descrito no artigo 132 do Código Penal:
Quando o omitente tinha o dever jurídico de cuidar da vítima (art. 13, § 2º), poderá outro crime (homicídio, lesões corporais, abandono de incapaz etc.). A omissão de socorro pode ser, não crime autônomo, mas causa de agravamento de pena nos crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas que não sejam configuradas como crime de trânsito. Se a vítima é pessoa idosa (com idade igual ou superior a 60 anos), o crime é descrito no art. 97 da Lei nº 10.741, de 1º-10-2013 (Estatuto do Idoso), para o qual se preveem penas de seis meses a um ano de detenção e multa. A pena é aumentada de metade se resulta lesão corporal grave e triplicada, se resulta morte (parágrafo único).
A omissão de socorro praticada pelo motorista em caso de crime ou acidente de trânsito está agora submetida a tipos especiais previstos na Lei nº 9.503, de 23-9-97 (CTB) [...]
Tratando-se de omissão no atendimento médico-hospitalar por condicionamento de sua prestação a uma garantia de dívida ou ao preenchimento de formulários, configura-se tipo específico, previsto no art. 135-A, inserido pela Lei nº 12.653, de 28-5-2012 (MIRABETE, 2015, p. 902).
O dispositivo a que alude Mirabete (art. 135-A, CP) trata de um crime próprio, uma vez que somente pode ser praticado por quem esteja na posição condicionar o atendimento emergencial médico-hospitalar a garantia ou preenchimento de formulário. Podem figurar como sujeitos ativos da conduta descrita no tipo penal sócios dos estabelecimentos médico-hospitalares, administradores, gestores, médicos, enfermeiros, atendentes, empregados administrativos de hospital etc. Na outra ponta, figura como sujeito passivo a pessoa que necessita de atendimento emergencial nos estabelecimentos médico-hospitalares, mesmo que a exigência de garantia ou preenchimento de formulário seja feita a terceiro, como parente ou pessoa que prestou auxílio (MIRABETE, 2015, p. 903).
Greco (2016), salienta que a prática tipificada penalmente no artigo 135-A do Código Penal já era proibida pela Resolução Normativa nº 44, de 24 de julho de 2003, da Agência Nacional de Saúde e vedadas pela lei (Código Civil e Código de Defesa do Consumidor) e conclui:
que as determinações contidas nos diplomas citados (Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Resolução Normativa) não eram fortes o suficiente a fim de inibir o comportamento por elas proibido, entendeu por bem o legislador fazer editar a Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, criando uma nova figura típica e encerrando, com isso, também, uma discussão já existente, quando parte de nossos doutrinadores se posicionava pela possibilidade de configuração do delito de extorsão indireta, tipificado no art. 160 do Código Penal, ou ainda pelo delito de omissão de socorro, previsto no art. 135 do mesmo diploma repressivo (GRECO, 2016, p. 274).
Uma vez tipificada a conduta, pelas razões que aponta Greco, criou-se um crime de perigo concreto, que se consuma com a exigência de garantia ou do preenchimento de formulário (mesmo que a vítima venha a ser atendida posteriormente, a simples exigência consuma o crime). A pena é aumentada até o dobro, se da negativa de atendimento resultar lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resultar em morte (hipóteses preterdolosas).