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Escolha existencial de tratamento médico sem transfusão de sangue e sua proteção jurídica: análise jurisprudencial

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Introdução

“A mais bela função da humanidade é a de ministrar justiça”, disse Voltaire. O Poder Judiciário é o instrumento do Estado para cumprir essa missão. Desta forma, inquestionável a observância da jurisprudência para o reconhecimento de um direito e a própria administração da justiça.

Sabe-se que a autonomia da vontade é pautada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF).  Como característica inerente do ser humano, a autonomia tem integrado a jurisprudência em diversas searas do Direito, como na liberdade contratual, nos negócios consumeristas e na relação médico-paciente.

No tocante a este aspecto, a esfera intangível da autonomia do paciente na escolha de tratamento médico e a liberdade de crença e de religião por vezes são postas em cheque por tentativas de se impor o uso de transfusão sanguínea a pacientes da religião Testemunhas de Jeová sob o argumento de que a vida é bem indisponível.

Esse entendimento tem sido objeto de produção jurisprudencial de forma recorrente no Brasil[2].  Em sintonia fina com o Direito Comparado que privilegia cada vez mais a autonomia do paciente, a jurisprudência brasileira tem reconhecido a obrigação de operadoras de plano de saúde e do próprio Estado de buscar os meios eficazes de satisfazer o direito à saúde sob a orientação da escolha informada do paciente, em obediência ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana.   

O presente trabalho visa expor julgados que contribuíram para o esclarecimento da posição dos pacientes Testemunhas de Jeová, bem como para a legitimação das escolhas médicas deste grupo, buscando resolver o problema proposto por intermédio do cuidadoso estudo das decisões colecionadas, apontando como hipótese de solução para tal problema que o Estado e as organizações prestadoras de saúde passem a decidir e atuar em conformidade com o posicionamento jurisprudencial contemporâneo, que sinaliza com o total respeito aos direitos do paciente, em especial a dignidade da pessoa humana, o direito à honra e a autonomia de vontade na escolha de tratamento de saúde.


1. METODOLOGIA

A técnica utilizada foi o levantamento e análise de decisões jurisprudenciais produzidas no Brasil e no Direito Comparado contemplando a questão da recusa do paciente Testemunha de Jeová à transfusão forçada de hemoderivados, com uso de método teórico, compilativo e comparativo.

No primeiro momento, as decisões judiciais e pareceres produzidos por juristas foram consultados. Após este primeiro passo, foi feita a leitura e fichamento das fontes de pesquisa, análise do material estudado e o sumário foi esquematizado. Com base nas anotações e fichamentos realizados, foi possível o entendimento do tema pesquisado e a posterior elaboração do presente trabalho.


2. A autonomia do paciente na escolha de tratamento médico sem sangue segundo a jurisprudência brasileira

É inegável que o direito à vida é de exponencial valor dentre os direitos fundamentais de proteção constitucional, transcendendo a esfera de mero direito individual para a de valor fundamental objetivo que a Constituição da República Federativa do Brasil protege.

O ministro Luís Roberto Barroso, com invejável lucidez, ensina ser compatível com a proteção constitucional ao direito à vida, o livre exercício de “escolhas existenciais legítimas[3]”. Cita o exemplo daquele que presta ajuda humanitária em região de guerra, ou daquele que pratica esportes radicais de risco extremado, situações em que não cabe ao Estado, sob o espectro da indisponibilidade do bem da vida, tolher a liberdade individual do cidadão. Vai além:

“Uma pessoa que tenha histórico familiar de câncer não pode ser obrigada a se submeter a exames periódicos ou a evitar fatores de risco para a doença. Não se pode impedir uma mulher de engravidar pelo fato de ser portadora de alguma condição que esteja associada a elevado risco de morte na gestação. Como se vê, admite-se sem maior controvérsia que a vida seja colocada em risco pelo próprio indivíduo para que ele possa levar adiante inúmeras decisões pessoais e realizar seu próprio projeto de vida. Em outras palavras, admite-se o risco de morte quando seja indissociável do exercício autônomo da vida, que não pode se converter em mera subsistência, privada de sentido para o seu próprio titular.[4]

Avançando em sua esclarecedora análise do assunto, leciona que “a liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão nuclear da dignidade humana[5]”, para concluir que é “legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por parte das testemunhas de Jeová[6]”.      

O assunto em questão tem sido objeto de judicialização, forçando a produção de orientações jurisprudenciais relevantes, que lançam importante luz sobre a questão.  

O Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, em 16 de maio de 2016, reconheceu o direito de uma paciente Testemunha de Jeová, de 19 anos de idade, portadora de Leucemia Linfoblástica Aguda, de submeter-se ao tratamento com quimioterapia mediante um protocolo médico que dispensa o uso de transfusão de sangue. O acórdão assim esclareceu:

CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PACIENTE INTERNADO. TRATAMENTO APLICADO PELA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE. DETERMINAÇÃO JUDICIAL. TRANSFUSÃO DE SANGUE COMPULSÓRIA. RECUSA DA PESSOA ENFERMA. OPÇÃO POR MODALIDADE DIVERSA DE TRATAMENTO. POSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À LIBERDADE. DIREITO DE ESCOLHA DA ESPÉCIE DE TRATAMENTO MÉDICO. LEGALIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHEDIDO E PROVIDO[7]. – Negritado

O acórdão considerou que a opção de escolha de tratamento que pareça mais conveniente ao paciente sob os aspectos científico, religioso e moral, é conduta que possui a natureza de direito fundamental, protegida pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (CFRB art. 1º, III).

Em 03 de julho de 2015, o Juízo da 10ª. Vara Cível de Londrina, PR, ao apreciar pedido judicial apresentado por hospital, quando se buscava autorização para realização de procedimento de transfusão de sangue contra a vontade de paciente adulta, indeferiu tal requerimento, argumentando que “não existe meia autonomia. Ou o cidadão tem o direito de decidir soberanamente os tratamentos que acatará independentemente das consequências, ou não tem. Não dá para limitar a autonomia apenas para as situações que não ameacem a vida”. A decisão foi solidamente edificada na premissa de que “o direito de recusa a tratamentos deriva diretamente da Constituição, tanto do inciso VI do artigo 5º, que assegura a liberdade religiosa, quanto do inciso II, pelo qual ninguém está obrigado a fazer nada que não esteja fixado em lei[8].”

No ano de 2013, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu que deve ser respeitada a opção religiosa à recusa de sangue, asseverando que “a vida não está limitada à vida física, em especial para pessoas com crença religiosa arraigada”. Na ocasião, protegeu-se o consentimento informado do paciente que também foi expresso em um documento de diretivas antecipadas não autorizando a transfusão de sangue. Tal documento foi julgado pela Corte como válido, citando sua proteção legal, conforme dispositivos do “art. 10 da Lei n. 9.434/97 e o art. 15 do Código Civil[9]”.

Também merece destaque o precedente jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que no mesmo sentido decidiu em causa que versava sobre a possibilidade de transfusão forçada de hemocomponentes em paciente portador de leucemia das células pilosas:

“Nesse caso, se fará a ponderação entre a liberdade de crença e a vida, mas não apenas a integridade física, a intelectual e psíquica também devem ser consideradas, ou seja, tutelar uma vida digna. Assim, admite-se o direito das minorias de não realizar a transfusão de sangue, pois se estaria violando o direito a uma vida digna de uma pessoa Testemunha de Jeová.[10]” 

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao analisar a situação de paciente com elevado risco de morte súbita, fez uma análise bastante coerente e fundamentada da questão, fazendo-se muito elucidativa a reprodução de parte dos robustos motivos jurídicos apresentados no julgado pelo D. Relator:

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“Não vejo como possa a recorrente ser submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial; tratamento este que não obstante possa preservar-lhe a vida, retira dela toda a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido, desnecessária, vazia.(...)

Colocada assim a questão, dir-se-ia que o Estado não pode intervir nessa relação íntima da pessoa consigo mesma, nas suas opções filosóficas, especialmente na crença religiosa, constitucionalmente protegida como direito fundamental do cidadão, mesmo que importe risco para a própria pessoa que a professa (e para ninguém mais), sob pena de apresentar, o Estado, sua face totalitária ao ingressar cogentemente no âmbito da essência da individualidade do ser humano, onde não deve estar[11]”.

Nas decisões acima apresentadas, o direito do paciente adulto Testemunha de Jeová de recusar transfusão de sangue e de exercer seu consentimento informado para outros tratamentos médicos teve como fundamento a autonomia da vontade, a expressão mais forte da dignidade humana.

 Ressalte-se que o direito à vida em nenhum momento foi ignorado. A dignidade humana, por ser fundamento do Estado Democrático do Direito, também é a base para determinar o sentido e o alcance dos direitos fundamentais. Desta forma, a jurisprudência, cumprindo seu papel como fonte de interpretação do Direito, elucidou a real acepção do “direito à vida”. Este não se restringe à vida biológica, abrange também o direito à vida livremente autodeterminada.

Recusar determinado tratamento médico e optar por outro, seja essa decisão motivada por crenças religiosas ou não, jamais configurará uma renúncia ao direito à vida. Como destacado, é uma “escolha legítima existencial”.


3. Prestação de atendimento médico alternativo ao transfusional  

Firmada a premissa do direito legítimo de escolher tratamento médico, em cuja proteção está inserida a garantia à intangibilidade da recusa a tratamento com transfusão de sangue, cumpre analisar qual comportamento o Direito exige por parte das entidades responsáveis pela prestação de saúde.

  Aqui cabe uma importante ressalva. O dever constitucional de respeito à legítima opção de recusa ao uso de hemocomponentes pelo profissional ou entidade prestadora de atendimento médico exige que sejam adotadas todas as medidas possíveis para viabilizar as opções terapêuticas consentidas pelo paciente.

A jurisprudência brasileira não se faz insensível ao tema.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao julgar ação de obrigação de fazer proposta por paciente Testemunha de Jeová em face de operadora de plano de saúde, assentou que “a seguradora não está habilitada, tampouco autorizada a limitar as alternativas possíveis para o restabelecimento da saúde do segurado, sob pena de colocar em risco a vida do consumidor[12]”. É dizer, a escolha do paciente por um determinado tratamento ou procedimento médico capaz de evitar a transfusão de sangue não pode sofrer limitação por parte da operadora de plano de saúde. Foi assegurado o direito ao tratamento médico consentido pelo paciente custeado pela operadora de plano de saúde, aplicando-se a regra do art. 47, do Código de Defesa do Consumidor.

Neste caso, o acórdão acompanhou o entendimento jurisprudencial que visa à concretização do direito ao “acesso à saúde” (CF, art. 196). Assumindo a seguradora o risco pela enfermidade do paciente, impedida está de estabelecer limite financeiro para a cobertura das despesas ou de restringir o tipo de tratamento/procedimento recomendado pelo médico[13].

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo adotou idêntica posição, ao julgar ação em que se determinava a abrangência da obrigação da operadora de plano de saúde, em caso envolvendo internação por neoplasia hematológica, cuja paciente Testemunha de Jeová pleiteava tratamento quimioterápico com suporte não transfusional. Concedeu a Corte de Justiça a antecipação de tutela em favor da paciente, obrigando a operadora de plano de saúde ao procedimento de saúde desejado. O acórdão ficou assim ementado:

Agravo de Instrumento – Plano de Saúde – Tratamento de câncer – A agravada é seguidora da religião Testemunha de Jeová e não aceita qualquer tratamento com transfusão de sangue – No hospital em São Paulo, a agravada conseguiu tratamento com quimioterapia e teve que ser internada urgentemente em estado grave (...) Esta Câmara vem entendendo que os procedimentos de saúde cobertos pelos planos não podem sofrer limitações quando o paciente ainda está em tratamento, para proteção do direito à vida, previsto no art., 5.º da Constituição Federal – Estão presentes os requisitos do art. 273 do CPC, devendo ser concedida a antecipação da tutela – Agravo improvido[14].

Poderíamos ainda citar o caso envolvendo paciente portadora de miolema múltiplo (câncer de medula óssea), em que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná concedeu a segurança, compelindo o Estado do Paraná a fornecer medicamento de alto custo à paciente, o qual se afigurava medida alternativa de tratamento à intervenção cirúrgica com transfusão de sangue, sob o fundamento de que “a Interessada não deve se submeter a tratamento que considera afrontoso à sua convicção religiosa, especialmente em razão da existência de medicamento eficaz e alternativo para o tratamento buscado.[15]

Os julgados acima elencados espelham a tendência do Direito atual de eleger a dignidade da pessoa humana e a autonomia do paciente (sua melhor tradução) como vetores da atuação jurisdicional.

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Sobre o autor
Lucas Alexandre Marcondes Amorese

Procurador Federal lotado na Procuradoria Seccional Federal de Londrina desde 2007. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL – 2006). Docente em cursos de Pós-Graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORESE, Lucas Alexandre Marcondes. Escolha existencial de tratamento médico sem transfusão de sangue e sua proteção jurídica: análise jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4908, 8 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54395. Acesso em: 25 abr. 2024.

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