4. A autonomia do paciente na escolha de tratamento médico sem transfusão de sangue segundo a jurisprudência estrangeira
A jurisprudência brasileira está em consonância com o entendimento de tribunais estrangeiros sobre o valor da autonomia do paciente na escolha de cuidados para a saúde. Conhecer o pensamento jurídico estrangeiro auxilia na compreensão da evolução do direito à autonomia e da proteção do ser humano. A seguir, alguns julgados paradigmas.
Suprema Corte do Estado de Illinois, EUA. É intangível a recusa de uma paciente à transfusão sanguínea, exercício legítimo da liberdade de crença religiosa. A liberdade religiosa “significa que o indivíduo terá o direito de decidir, sejam suas crenças razoáveis ou não, sem a interferência de outros, desde que as suas ações ou recusa de agir não sejam diretamente prejudiciais à sociedade de que faz parte[16]”.
Tribunal de Ontário, Canadá. Paciente adulto capaz tem o direito de recusar tratamento médico “ainda que a decisão possa envolver riscos tão sérios quanto à morte e possa parecer equivocado aos olhos da profissão médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o paciente quem tem a palavra final quanto a submeter-se ao tratamento[17]”.
Suprema Corte do Estado do Mississippi, EUA. O direito da paciente de recusar determinado tratamento somente poderia ser cerceado se colidisse com os direitos conflitantes de outros. Aplicou-se a norma do consentimento informado, segundo a qual “o paciente deve ser informado da natureza, dos meios e das prováveis consequências do tratamento proposto, a fim de que ele possa “conscientemente” decidir o que deve fazer – uma de suas opções sendo a rejeição[18]”. No entendimento desse Tribunal, o direito à privacidade, ainda que dissociado de crença religiosa, por si só, impediria a interferência do Estado para a transfusão de hemocomponentes, observando que “muitos temem as transfusões de sangue como fonte de infecção de outras doenças terríveis”, e o “Estado não tem a autoridade de interferir na ação de uma pessoa face a tal temor[19]”.
Suprema Corte Argentina. É legítimo o documento de diretivas médicas antecipadas com expressa recusa à transfusão de sangue, para aquelas situações em que seu portador estiver inconsciente. Decidiu-se que “Toda pessoa capaz e adulta tem a faculdade de estabelecer diretivas antecipadas sobre [sua] saúde, e pode aceitar ou rejeitar certos tratamentos médicos”, para concluir o julgamento com a posição de que as “diretivas devem ser aceitas pelo médico responsável[20]”.
Suprema Corte de Nova Gales do Sul, Austrália. A antecipação da vontade do paciente ao tratamento médico de saúde desejado, ante a previsão de situações de inconsciência, também deve ser respeitada. Uma situação de emergência médica acompanhada do estado de inconsciência do paciente (“the classic emergency situation with an unconscious patient”) não autoriza a intervenção contra a vontade do paciente quando existente prévia e esclarecida manifestação de vontade:
“ Se uma diretiva antecipada é feita por um adulto capaz, e é clara e inequívoca, e se aplica à situação em tela, deve ser respeitada. (…) Portanto, um profissional médico que se confronta com uma escolha clara feita por um adulto capacitado, baseada em valores sociais, morais ou religiosos, deve respeitar essa escolha, mesmo que não compartilhe com os valores que a sustentam (…) Na verdade, mesmo uma decisão sem qualquer justificativa aparente deve ser respeitada.{C}[21]{C}”
Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Testemunhas de Jeová de Moscou e Outros v. Rússia, na questão do direito à recusa de transfusão de hemocomponentes. Decidiu a Corte:
“A liberdade de aceitar ou recusar tratamento médico específico, ou de poder escolher uma forma alternativa de tratamento, é vital para os princípios da autodeterminação e da autonomia pessoal. Um paciente adulto consciente é livre para decidir, por exemplo, se deve ou não ser submetido a uma cirurgia ou a um tratamento ou, da mesma forma, a uma transfusão de sangue. No entanto, para essa liberdade ser significativa, o paciente deve ter o direito de fazer escolhas que estejam de acordo com seu próprio ponto de vista e valores, independentemente se isso parece ser irracional ou imprudente perante outras pessoas. Muitas jurisdições estabelecidas examinaram os casos de Testemunhas de Jeová que recusaram transfusões de sangue e descobriram que, embora o interesse público em preservar a vida ou a saúde de um paciente era legítimo e muito forte, foi preciso ceder ao grande interesse do paciente de decidir o curso de sua própria vida{C}[22]{C}”.
Pesquisas jurisprudenciais em âmbito internacional revelam que a legitimidade da posição das Testemunhas de Jeová já foi reconhecida pela Suprema Corte de diferentes países como Argentina (em duas ocasiões distintas), Canadá, Espanha, Japão, Namíbia e Porto Rico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O panorama jurisprudencial apresentado neste artigo permite avaliar como os tribunais estão interessados cada vez mais em proteger as decisões dos pacientes Testemunhas de Jeová quanto ao recebimento de tratamento médico sem transfusão de sangue.
Na lição de Nelson Nery Junior, “obrigar alguém a realizar tratamento médico quando este é atentatório à sua dignidade e liberdade não possui respaldo nem na Constituição Federal nem na Legislação, assim, decisão nesse sentido será inconstitucional por violação expressa ao princípio da legalidade (CF, 5º.II).[23]”
Seguramente, a negativa ou imposição de barreiras ao tratamento sem sangue pelo médico, hospital ou operadora de plano de saúde imiscui-se da apontada ilegalidade, em flagrante ofensa aos direitos fundamentais do paciente, notadamente liberdade de consciência e de religião.
Como visto na análise de alguns julgados, há sedimentada jurisprudência que obriga os profissionais e entidades responsáveis pela prestação da saúde a diligenciar na busca do tratamento médico alternativo disponível.
Conclui-se que a garantia de proteção à escolha existencial a tratamento médico sem transfusões é manifestação de respeito ao pluralismo ideológico e clara expressão do maior valor jurídico tutelado num Estado de Direito, núcleo essencial dos direitos fundamentais: a dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LUIS ROBERTO BARROSO, parecer jurídico “LEGITIMIDADE DA RECUSA DE TRANSFUSÃO DE SANGUE POR TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE RELIGIOSA E ESCOLHAS EXISTENCIAIS” 05 de abril de 2010, Rio de Janeiro.
NELSON NERY JUNIOR, Parecer Jurídico “Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de direitos fundamentais”22 de setembro de 2009, São Paulo.
GILMAR FERREIRA MENDES e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, "Curso de Direito Constitucional", Editora Saraiva, 10a. Edição, 2015.
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO, Parecer jurídico "Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico Sem Transfusão de Sangue mediante os atuais preceitos civis e constitucionais brasileiros", 08 de fevereiro de 2010, São Paulo.
CRISTIANO VIEIRA SOBRAL PINTO, "Direito Civil Sistematizado", Editora Método, 6a. Edição, 2015
Notas
[2] Neste sentido, Autos n. 0010914-90.2012.8.19.0037, pela 1ª. Vara Cível de Nova Friburgo/RJ, Juiz MARCIO RIBEIRO ALVES GAVA, julgado em 22 de junho de 2012.
[3] LUIS ROBERTO BARROSO, parecer jurídico “LEGITIMIDADE DA RECUSA DE TRANSFUSÃO DE SANGUE POR TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DIGNIDADE HUMANA, LIBERDADE RELIGIOSA E ESCOLHAS EXISTENCIAIS”, p. 22, Rio de Janeiro, 05 de abril de 2010.
[4] Ibidem.
[5] Idem, p. 27.
[6] Idem, p. 42.
[7] TRF1. Agravo de Instrumento n. 0017343-82.2016.4.01.0000/MG. Decisão pelo Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, julgado em 16 de maio de 2016.
[8] 10ª. Vara Cível de Londrina. Autos nº. 0039082-53.2015.8.16.0014, Juiz ÁLVARO RODRIGUES JUNIOR, julgado em 03 de julho de 2015.
[9] TJ/SP. 6ª. Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento nº 0065972-63.2013.8.26.0000. Relator: Des. ALEXANDRE LAZZARINI, julgado em 09 de abril de 2013.
[10] TJ/SC. Agravo de Instrumento n. 2011.016822-7, de Joinville. Decisão pelo Relator: Des. PAULO ROBERTO SARTORATO, julgado em 25 de março de 2011.
[11] TJ/RS. DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL. Agravo de Instrumento nº 70032799041. Relator: DES. CLÁUDIO BALDINO MACIEL, julgado em 11 de março de 2010.
[12] TJ/SC. Apelação Cível n. 2011.042775-0, Relator: Des. Ronaldo Moritz Martins da Silva, julgado em 26 de abril de 2012.
[13] STJ. Recurso Especial n.º 735.750/SP, Relator Ministro Raul Araújo, Julgado em 14 de fevereiro de 2012.
[14] TJ/SP. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0573992-88.2010.8.26.0000, Relator: Des. Ribeiro da Silva, julgado em 06 de abril de 2011.
[15]TJ/PR. APELAÇÃO CÍVEL Nº 667638-2, Relatora: Des.ª MARIA APARECIDA BLANCO DE LIMA, julgado em 25 de maio de 2010. Ver ainda: STF. Suspensão de Liminar 710/SC. Presidente Ministro Joaquim Barbosa, julgado em 05 de setembro de 2013.
[16] SUPREMA CORTE DE ILLINOIS, Caso da Condição de Curatela de Brooks n. 38914, julgado em 18 de março de 1965, Tradução de Manoel Antonio Schimidt, São Paulo, 11/09/2000.
[17] TRIBUNAL DE ONTÁRIO, CANADA, Caso Malette v. Shulman, julgado em 30 de março de 1990. Tradução livre. Decisão no idioma original poderá ser acessada em: http://aix1.uottawa.ca/~srodgers/rtf/malette.rtf.
[18] SUPREMA CORTE DE MISSISSIPPI, Caso Brown Misc. n. 1954, julgado em 30 de outubro de 1985, Tradução de Manoel Antonio Schimidt, São Paulo, 11/09/2000.
[19] Ibidem.
[20] CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN ARGENTINA - Dados da decisão: A. 523. XLVIII. REX, T. 335, P. 799
Disponível em: http://sjconsulta.csjn.gov.ar/sjconsulta/fallos/buscar.html.
[21] New South Wales Supreme Court, Hunter and New England Area Health Service v A [2009] NSWSC 761, julgado em 06 de agosto de 2009. Tradução livre. Decisão no idioma original disponível em: https://www.caselaw.nsw.gov.au
[22] EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, Case of Jehovah´s Witnesses of Moscow and others v. Russia, julgado em 10 de junho de 2010. – Tradução livre. Texto original poderá ser consultado em: http://hudoc.echr.coe.int/eng#{"documentcollectionid2":["GRANDCHAMBER","CHAMBER"]}
[23]NELSON NERY JUNIOR, Parecer Jurídico “Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de direitos fundamentais”, p. 51, de 22 de setembro de 2009, São Paulo.