É lição comezinha nos meios acadêmicos, sobretudo no que concerne aos iniciantes nas letras jurídicas, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição Federal de 1988 (CF/88), até pela expressa identificação dessa assertiva no Texto Constitucional, especificamente no art. 102, caput), e que a palavra final em matéria constitucional, seja no controle difuso, seja no controle concentrado, realmente pertence ao Pretório Excelso. Contudo, sabe-se, também, correntemente, que o sistema brasileiro de controle da constitucionalidade de leis e de atos normativos não é algo assim tão simples como se apresenta, bem como é uma sistemática muito mais intrincada do que aquela que se afere e se vislumbra à primeira vista.
A questão que se apresenta – a de saber se os Tribunais Administrativos (TAs) podem examinar e analisar argüições de inconstitucionalidade de lei e de atos normativos, vale dizer, os TAs têm competência para tanto? –, pois, é mais um exercício dialético próprio e inerente ao Direito, visto que existe uma polaridade a respeito do assunto, qual seja, reitera-se, a divergência em face ao fato de os Tribunais Administrativos terem, ou não, competência para apreciar argüições de inconstitucionalidade de lei e de atos normativos. Destarte, após deparar-se com as duas correntes doutrinárias opostas e depois de ponderar acerca da contenda – mesmo porque o objetivo não é esgotar o assunto, mas, sim, suscitar a discussão –, cabe então admitir-se a uma delas expondo, detidamente, as razões para tal tomada de posição.
Não se olvida, pois, em asseverar que os TAs podem, sim, apreciar argüições de inconstitucionalidade de lei e de atos normativos com, evidentemente, certos e inequívocos limites. Por exemplo, jamais poderão arrogar-se na condição de julgar uma lei ou um ato normativo em tese, isto é, analisar pura e simplesmente texto de lei ou ato normativo de forma geral, abstrata e sem a presença de uma lide efetiva ao qual se possa subsumir este caso concreto. Poderão efetuar, à evidência, apenas a análise do referido diploma e/ou do aludido ato em vista aos efeitos emanados por estes e destes advindos, vale dizer, somente por meio do denominado controle difuso, ou incidental, ou de exceção, entre outros sinônimos, é que os TAs poderão atuar.
No momento em que a Carta determina que o STF é o guardião da ordem jurídico-constitucional brasileira, isto não significa afirmar que o Texto Magno deu ao Supremo uma ‘reserva de jurisdição’. Se assim o fosse, qualquer divergência, especialmente em sede de controle difuso, sobre matéria afeita à Constituição, como exemplo, entre outros, a privação de bens de particulares para quitação de débitos tributários sem o devido processo legal seria remetido para lá. Da mesma forma, a imposição de alíquotas progressivas sobre ‘impostos reais’, com exceção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), nos termos do inc. I, do § 1º, do Art. 156, da CF/88 (EC n.º 29/2000), e do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), como dispõe o inc. I, do § 4º, do art. 153 (EC nº 42/2003), deveria, por este raciocínio, ser apreciada diretamente pelo STF, algo inconcebível e inimaginável, haja vista as dimensões continentais do Brasil e o espetacular número de disputas judiciais envolvendo esta ou aquela afronta à Lei Maior.
Sucede-se, por conseguinte, que há no Brasil um sistema de competências hierárquico-constitucionais, isto é, vários ‘degraus’ de uma escala de controle de constitucionalidade que tem por ápice o próprio STF, sem exclusão da divisão do sistema jurídico pelas denominadas competências material e funcional dos diversos órgãos judiciários e administrativos. Neste sentido, há matérias que são comuns a todos (a própria inconstitucionalidade em sentido lato, como suscitado), sendo, portanto, dever funcional dos Tribunais examinar e deliberar sobre estas ofensas à Constituição. E há outras disciplinas que são específicas e que só determinado tribunal pode analisar, como é o caso do Tribunal do Júri, o qual é o único capaz de julgar, em sentido estrito, os crimes dolosos contra a vida, como prescreve o inc. XXXVIII, do art. 5º, da CF/88. Ou ainda, em termos de especificidade, somente o STF pode processar e julgar, originariamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) de lei ou ato normativo em tese federal ou estadual e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) de lei ou ato normativo em tese federal, como dispõe o art. 102, I, a, da CF/88.
Entre as matérias comuns e passíveis de serem apreciadas pelos Tribunais, estão os princípios da supremacia da Constituição, legalidade, juridicidade, segurança jurídica, igualdade, anterioridade, contraditório e ampla defesa, devido processo legal, ato jurídico perfeito, direito adquirido, anualidade, uniformidade geográfica, das imunidades e limitações ao poder de tributar, sem exclusão de outros não enumerados.
Todos os preceitos logo atrás citados emergem do Texto Magno e, justamente por este motivo, alicerçam todo o ordenamento jurídico. Suponha-se que um contribuinte paulista receba em sua casa a cobrança de uma taxa estadual (espécie do gênero tributo, conforme dispõe o inciso II, do art. 145, da CF/88) e descobre, posteriormente, que tal tributo fora instituído mediante um decreto expedido pelo(a) Governador(a) e não por uma lei estadual. Afrontado estaria, portanto, o princípio da legalidade. Para livrar-se da ‘incômoda’ taxação, bastaria ao contribuinte, antes de ir ao Judiciário – quase sempre mais oneroso –, socorrer-se do Tribunal de Impostos e de Taxas (TIT).
Paralelamente a esta constatação, confere-se que "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (inc. XXXV, do art. 5º, da CF/88). Ora, se o contribuinte do exemplo entender que o Tribunal Administrativo não lhe concedeu a tutela pleiteada, ele simplesmente pode levar o caso ao ‘patamar’ logo acima da esfera administrativa, qual seja, o próprio Juízo Monocrático. E assim por diante, recurso por recurso, até chegar ao STF, como já foi observado neste texto.
Noutra acepção, o contribuinte pode ir diretamente ao Judiciário, ‘ultrapassando’ o grau administrativo. Isto porque somente quanto às competições esportivas é que a CF/88, em seu art. 217, § 1º, obriga o denominado "curso administrativo forçado". Ou seja, primeiramente esgotam-se as instâncias administrativas (por exemplo, no futebol profissional, o TJD: Tribunal de Justiça Desportiva e o STJD: Superior Tribunal de Justiça Desportiva), para somente depois poder provocar o Judiciário.
Nos demais casos, fica ao alvitre do interessado, como é a situação das multas de trânsito, nas quais o autuado pode pleitear a tutela jurisdicional – nos Juizados Especiais Cíveis (JEC) ou no próprio Judiciário, dependendo dos valores – sem precisar passar pelas ‘famosas’ "Juntas Administrativas de Recursos de Infrações", as "JARIs".
Se, como visto, com exceção da Justiça Desportiva, a escolha cabe à pessoa, então isto significa que ela pode optar, inicialmente, pela via administrativa, sem se descuidar, obviamente, no âmbito judiciário, dos prazos pertinentes, como os 120 (cento e vinte) dias de que cuida o art. 18 da Lei n.º 1533/51, a Lei do Mandado de Segurança.
Sendo assim, não arrogar aos TAs a possibilidade de apreciar argüições de inconstitucionalidade feriria o sagrado direito ao contraditório e à ampla defesa expresso no inc. LV, do art. 5º, da Carta Magna. Este exame poderia ser considerado como uma espécie de "início de uma escalada", isto é, como a primeira alternativa na busca pela tutela almejada, até que, instância por instância, o caso chegue à apreciação do órgão máximo do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, qual seja, o próprio Supremo Tribunal Federal.
Ademais, ao apreciar argüições de inconstitucionalidade de lei e de atos normativos, os TAs tão-somente poderão afastar, em decisão fundamentada, os efeitos da lei ou do ato normativo ao caso concreto, bem como não poderão declará-la inconstitucional, algo somente permitido aos Tribunais do Judiciário (art. 97, da CF/88) e somente admitido ao próprio STF em controle abstrato. Se a parte vencida não aceitar a proposição expedida pelo Tribunal Administrativo, é possível levar a questão ao Judiciário. É suficiente, para tanto, hábil e tempestivamente, o ingresso com a medida cabível na órbita jurisdicional competente.
Vale lembrar que a diferença entre o controle abstrato e o controle difuso reside no fato de que neste há toda uma seqüência de discussões em torno de uma determinada situação e no âmbito de cada um dos graus de jurisdição. Enquanto que no controle concentrado, somente o STF, mediante representação direta expedida por qualquer dos legitimados do art. 103 da Constituição e sem exclusão da devida observância à chamada pertinência temática, poderá apreciar a argüição de inconstitucionalidade de lei e de atos normativos federais e estaduais em tese e afastá-los da ordem jurídica, fazendo as vezes de um ‘legislador negativo’. Ressalta-se, pois, que a decisão do STF neste tipo de controle tem ‘força de lei’ e que, por conseguinte, tem o condão de derrogar, no todo ou em parte, a que está (ou estava) em questionamento.
Na esteira da assertiva enunciada no parágrafo anterior tem-se, portanto, que o atingido por leis ou atos normativos presumivelmente inconstitucionais poderá, então, intentar em pleito, inicialmente na via administrativa, como uma espécie de "início da escalada" rumo ao STF.
Outro exemplo marcante que se traz à baila é a situação na qual o Estado de São Paulo, por meio de Lei, resolve instituir uma Taxa de Segurança Pública aos moradores de uma determinada região e, para tanto, efetua o respectivo lançamento.
Visando economizar, um contribuinte recorre ao TIT e este, ao suspender o lançamento por entender que é uma ‘Lei inconstitucional’, interpreta e aplica corretamente as normas pertinentes ao instituto em questão, restabelecendo, por conseqüência, o justo status quo ante. E o Estado deve respeitar a decisão! Ressalta-se que esta lei realmente seria inconstitucional, pois a segurança, sendo um serviço uti universi, é prestado de modo geral e indivisível; e, como as taxas, diretamente ligadas aos serviços uti singuli, não podem ter base de cálculo própria de impostos, o inc. II e o § 2º, do art. 145, da Constituição, desta forma, estariam sendo afrontados.
Se, porventura, o Tribunal Administrativo não deliberar pela inconstitucionalidade do tributo exemplificado, cabe ao contribuinte, irresignado, ir ao Judiciário buscar a dispensa do pagamento, naquilo que se poderia denominar de "segunda etapa da escalada" em direção ao STF.
Plausível, portanto, por este prisma, conferir aos TAs a competência para examinar e analisar as argüições de inconstitucionalidade de lei e atos normativos, da mesma forma que é consentâneo afirmar que tal apreciação não encerra a questão em si mesma, visto que não é proibido àquele que não se conformar com a decisão remeter a discussão ao Judiciário.
Entende-se, por derradeiro e como conclusão, que os Tribunais Administrativos são, com base na tese apresentada, os primeiros elementos da cadeia de competências hierárquico-constitucionais sistematizada pela ordem jurídica do Brasil.
E, como corolário, resta evidente que uma atuação inicial firme, imparcial, efetiva e responsável no sentido de impor e de fazer com que os princípios e normas constitucionais sejam sobremaneira respeitados, certamente seria uma proteção deveras significativa aos contribuintes brasileiros contra os sucessivos desmandos governamentais (quanto à tributação, especialmente).
E o Supremo Tribunal Federal agradeceria essa triagem inicial!