O caráter emancipador do Direito em decisões como a da ADPF 132, que reconhece a união homoafetiva

12/12/2016 às 23:23
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O presente artigo pretende abordar o papel emancipatório do Direito especialmente no que toca às decisões que acabam inovando o ordenamento jurídico.

                                                                                                                  

  1. RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal - STF - sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 - ADPF 132 -, que reconhece a união homoafetiva, equiparando-a àquela entre heterossexuais, à luz do direito e sua finalidade, além da discussão sobre o seu caráter emancipatorio a partir das analises do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Além do mais, pretende-se analisar como a moral, costumes e preconceitos influenciam e produção do direito e orientam seu uso, tendo em vista que o próprio pode, juntamente com um aparato ideológico, legitimar e perpetuar os ideais, geralmente conservadores, de uma maioria, como o próprio Michel Foucault afirma em seu livro intitulado "Em defesa da sociedade".

                        Palavras-chave: Artigo, homossexualidade, direito, emancipação, minorias, moral, costume, preconceito.

2. INTRODUÇÃO

2.1 - Panorâma histórico da relação entre direito e homossexualidade.

Imensa maioria das leis homofóbicas que existiram e ainda existem nos ordenamentos jurídicos, as chamadas sodomy laws ou anti-sodomy laws, possuem sua origem no Colonialismo Britânico. O Brasil, contudo, apesar de não editar tais leis com o mesmo conteúdo preconceituoso, ainda tenta se livrar de toda a carga discriminatória oriunda do direito português, embasada na noção de pecado, presentes nas Ordenações, onde se havia uma clara junção entre Estado e Igreja. É nítida, portanto, a influência do colonizador europeu na colônia brasileira, no sentido de propagar sua legislação nessa. Todas as Ordenações do Reino de Portugal, sejam elas Afonsinas, Filipinas ou Manuelinas, possuíam, de forma expressa, dispositivos legais que condenavam à pena de morte por fogo aquele que externasse sua homossexualidade. As Ordenações Afonsinas (1446), por exemplo, consideravam a homossexualidade como um "pecado de sodomia" e condenavam o "pecador" ao fogo. O mesmo ocorria com o pecador nas Ordenações Manuelinas (1521). Porém, nessas, além da morte por fogo, todos os bens dele ficariam em posse da Coroa Portuguesa, mesmo que houvesse descendentes e ascendentes. Esses, por sua vez, seriam condenados pelo "crime de Lesa Majestade". Obviamente, não foi diferente nas Ordenações Filipinas (1603). Nessas ordenações, contudo, os filhos/as ou descendentes não sofreriam prejuízo acerca da sucessão.

Foi somente no Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, que a homossexualidade deixou de ser criminalizada.

3. DESENVOLVIMENTO

Boaventura de Sousa Santos questiona, em seu livro intitulado “Poderá o direito ser emancipatório?” se há uma relação entre o direito e a demanda por uma sociedade boa. Em suas análises, acaba por afirmar que logo quando o Estado liberal assumiu o monopólio da criação e da adjudicação do direito, e este ficou, dessa forma, reduzido ao direito estatal, a tensão entre regulação social e a emancipação social passou a ser um objeto mais da regulação jurídica. Ou seja, em vez de ser uma alternativa radical à regulação social tal como existe hoje, a emancipação social passou a ser o nome da regulação social no processo de autorevisão ou de autotransformação.

Segundo ele, não somente nesse livro, mas também em seu livro intitulado “ A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”, vive-se, na atualidade, simultaneamente em uma crise da regulação social e da emancipação social. É vivido um período em que se enfrenta problemas modernos para os quais não existem soluções modernas. A sociedade permanece focada nas idéias de ordem e de uma sociedade boa, entretanto o que ocorre é exatamente o oposto: elas caminham cada vez mais para a (des)ordem e os níveis de desigualdade e exclusão são cada vez maiores, apesar de todos os avanços tecnológicos objetivarem, em tese, demonstrar o oposto.

Boaventura versa sobre uma possível reinvenção do direito. Para ele, para que essa reinvenção ocorra, deve-se buscar concepções e práticas subalternas, que estão divididas em três tipos: 1 – concepções e práticas que, não osbtante pertencerem à tradição ocidental e terem se desenvolvido nos países do Ocidente, foram suprimidas ou marginalizadas pelas concepções liberais que se tornaram dominantes; 2 – concepções que se desenvolveram fora do Ocidente, principalmente nas colônias e, mais tarde, nos Estados pós-coloniais; 3 – concepções e práticas hoje em dia propostas por organizações e movimentos especialmente ativos no esforço de propor formas de globalização contra-hegemônicas. Segundo Boaventura, apenas essa modernidade subalterna fornece alguns instrumentos que permitirão a passagem rumo a um futuro progressista, na direção de uma ordem e de uma sociedade boas, que ainda estão por vir.

O que seria, então, a decisão da ADPF 132, equiparando a união de casais homosseuxais à de casais heterossexuais, senão essa própria reivenção do direito? É justamente nesse período de modernidade subalterna, vivido atualmente,  que o direito tem mostrado seu caráter emancipatório, tendo em vista as várias decisões que têm sido tomadas, como a da ADPF 54, por exemplo, que confere liberdade de escolha a mulher que desejar fazer a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. A modernidade dominante traz, em seu seio, um produto ideológico dominante também. Tal modernidade proporciona uma falsa ideia de “ordem” e “inclusão” justamente porque não há rompimentos do status quo. Essa transição paradigmática que se vivencia, atualmente, entre modernidades é de suma importância para essa passagem rumo a um futuro progressista.

Boaventura de Sousa Santos versa também sobre o contrato social. Segundo o sociólogo, esse passa por um momento de crise. O contrato social possui três pressupostos: um regime geral de valores, um sistema geral de medidas e um tempo-espaço privilegiado. A crise desse contrato é detectável em cada um desses três pontos.

O regime geral de valores e o sistema geral de medidas, que é o que interessa para o desenvolvimento do raciocínio, estão em crise, basicamente, pelo mesmo motivo. O regime geral de valores baseia-se na ideia de bem comum e de vontade geral, que são princípios segundo os quais há uma agregação de sociabilidades individuais e de práricas sociais. Tendo em vista o caráter cada vez mais fragmentário da sociedade atual, que encontra-se dividida e polarizada segundo eixos econômicos, sociais, políticos e culturais, tal regime, do modo com é definido, não tem como resistir e suportar a tais alterações. O sistema geral de medidas, vale ressaltar, também vivencia uma crise por motivo similar.

A decisão da ADPF 132 apenas confirma essa crise do contrato social. Ao estabelecer um novo conceito de família, não mais restrito ao que outrora era o “correto”, segundo um regime geral de valores, tal decisão reitera o caráter plural da sociedade contemporânea, revelando que não se pode mais falar em um eixo maior responsável por conceituar tudo aquilo o que é certo e o que é errado, desviante. Tal decisão é importante também no sentido de constatar que esse regime geral de valores é um regime mutável, que está sujeito às variações da sociedade no decorrer do tempo.

Os valores da modernidade, segundo Boaventura, - de liberdade, igualdade, autonomia, subjetividade, justiça, solidariedade – mantêm-se, assim como suas antinomias. Porém, estão sujeitos a uma crescente sobrecarga simbólica, na medida em que significam coisas cada vez mais díspares para diferentes pessoas ou diferentes grupos sociais, com o resultado de que o excesso de significado gera trivialização e, consequentemente, naturalização. Uma família que se assenta em sob princípios mais religiosos pode considerar a decisão da ADPF 132 uma decisão errônea, que fira a igualdade e que não seja, de forma alguma, justa. Entretanto, já um casal homossexual que mantém uma relação estável há anos e agora pode usufruir de todas as garantias que a Constituição e o Código Civil lhe confere, assim como um casal heterossexual, crê na justiça e na igualdade através dessa decisão, pois agora estão em “pé de igualdade” e tem seus direitos amparados assim como qualquer casal heterossexual, que seria o casal “exemplo” da retidão ao regime de valores da modernidade dominante, que, de moderna, no sentido de inovador, possui apenas o nome.

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A globalização possuiu inúmeros efeitos negativos. Um deles foi o de propagar pelo mundo um sistema de dominação e exclusão. Todavia, ela também criou mecanismos para que movimentos contra hegemônicos surgissem, se percebessem na qualidade de rompedores do status quo e articulassem interesses comuns. O direito possui papel fundamental nessa parte, pois ele pode e, sempre que possível, deve ser usado como um mecanismo de emancipação social contra visões hegemônicas.

4. CONCLUSÃO

Conclui-se, a partir de tudo o que foi exposto no presente artigo, que o direito, apesar de servir como instrumento para legitimar uma ideologia dominante, possui um caráter emancipatório e pode ser usado como arma para romper com vários paradigmas, tendo em vista a própria atuação do Poder Judiciário no caso da ADPF 132, que tomou uma decisão quebra paradigmática e, através do seu ativismo judicial, concedeu direitos a muitos casais homossexuais, que outrora esperaram pelo Legislativo, que permanece “cochilando”.

Além do mais, a ADPF 132 nada mais é se não o próprio reflexo de como se dá a dinâmica social na atualidade. Se está diante de uma sociedade claramente plural, multifacetada e multicultural. Deve-se, através do direito, levar em consideração todos os pleitos dos múltiplos setores da sociedade, em especial aqueles oriundos das minorias, pois são elas quem são naturalmente desfavorecidas graças a uma série de preconceitos e costumes arraigados no cotidiano das sociedades.

É sabido que tais preconceitos e costumes regem, das mais variadas formas, a criação e o uso do direito. Entretanto, presenciar o direito regulando não sentimentos, mas as relações com base neles geradas de modo a redefinir padrões e recriar conceitos, já é bastante animador. Parabéns ao STF pela decisão, mais que sábia, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132.

“O seu juiz já falou

Que o coração não tem lei

Pode chegar

Pra celebrar

O casamento gay

Joga arroz (3x)

Em nós dois

Quem vai pegar o buquê (2x)

Maria com Antonieta

Sansão com Bartolomeu

Dalila com Julieta

Alexandre com Romeu.”

            Joga arroz – Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001, p. 119-188.

. SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, n. 65, p. 3-76, mai. 2003.

. http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-071-Artigo_Silvano_Andrade_do_Bomfim_(Homossexualidade_Direito_e_Religiao_da_Pena_de_Morte_a_Uniao_Estavel).pdf  - BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, direito e religião: da pena de morte à união estável. A criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa.

. BAHIA, Gustavo M. Franco; MORAES DOS SANTOS, Daniel. O longo caminho contra a discriminação por orientação sexual no Brasil no constitucionalismo pós-88: igualdade e liberdade religiosa. Mandrágora,São Paulo, v 18, n. 18, 2012, p. 5-25.

. POTIGUAR, Alex. Igualdade e liberdade: a luta pelo reconhecimento da igualdade como direito à diferença no Discurso do Ódio. Brasília: UnB, 2009. 142 f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2009, cap. 3. 

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Sobre o autor
Matheus Fellipe de Paula

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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